O legado dos mortos: (N)Kulumbimbi.

Por Bruno Pastre Máximo

 

 

 

 

 

Os mortos são os vivos por excelência; eles são dotados de uma vida que dura – buzingila – e de um poder sobre-humano, que os permitem de sair de suas vilas subterrâneas para influenciar para bem ou mal toda a natureza, homens, bens, plantas e minerais. Os chefes mais poderosos sobre o céu também os são sobre a terra; habituados durante sua vida mortal a ser honrado por seus sujeitos, eles desejam que continuem suas honrarias.

Nkùlu: antepassado, avô; pessoa de muita idade que conheceu os tempos antigos; patriarca; plural de ancestrais velhos. C. adj., Velho, antigo, tempo velho, antigamente.

Mbimbi: tronco de bananeira depois que já deu fruto; tronco de palmeira; figura: cadáver, pessoa morta.

A palavra (N)Kulumbimbi, segundo a definição de Laman, é da ancestralidade (Nkulu) com a presença dos cadáveres, do cemitério (Mbimbi), configurando um lugar de cadáveres ancestrais. Os mortos eram centrais para o cotidiano de um kongo no século XIX (e até hoje). Eram os mortos, conjuntamente a outras forças e divindades, que auxiliavam os viventes em todas as fases e detalhes de suas existências. “Para um kongo, a morte (lufwa) é como uma viagem (…), eles não morrem no sentido de fim da vida, mas “(…) como uma passagem de uma condição a outra, de uma sociedade visível a uma invisível. A memória dos antepassados é uma questão central entre os viventes, como explica Bortolami,

Uma parte importante da concepção religiosa tradicional se funda sobre o culto dos antepassados e sobre o conceito de morte e renascimento, na qual os antepassados interferem nos momentos importantes da vida cotidiana e na existência de cada indivíduo. Os Bakongo acreditam que os antepassados veem os vivos, os ajudam e os controlam. Podem ser bons ou ruins segundo segundo o relacionamento que os vivos possuem com eles (…)

Os ancestrais se comunicam com os viventes através de sinais no cotidiano, ou por meio de sonhos (ndozi), em que expressam suas necessidades e anseios. Os ancestrais são os verdadeiros chefes da terra: “Os ancestrais são os mestres e proprietários da terra e da água, das florestas e do cerrado, com todos os animais que vivem lá, e as palmeiras

Por todos estes motivos, os ancestrais deviam ser alvo de culto para não ficarem zangados e prejudicarem seus descendentes.

E o funeral deveria se planejado. A preparação para a morte era uma tarefa muito especial durante toda a vida, sendo um dos principais motivos da existência entre os kongo segundo Bentley, “É o grande desejo de um homem Congo ser enterrado em grande quantidade de tecido de algodão, e ter um grande funeral. Por isto ele negocia, e trabalha, e comete pecados, não medindo sofrimentos e esforços (…). A importância de acumular riquezas se dá pela necessidade de pagar cerimônias envolvendo o funeral, e principalmente, adquirir bens para acompanhar o defunto à sepultura. Quando uma pessoa morre, a primeira atitude a ser feita é comunicar os parentes do morto (do seu kanda). Se o morto é um chefe, inicia-se um processo de “mumificação” do corpo, primeiramente drenando os fluidos do corpo para depois “(…) ser colocado em uma estante, com fogo abaixo do corpo, e então é completamente defumado. O corpo é algumas vezes mantido por dois, três, ou mais anos antes de ser enterrado.”

Durante este tempo a família procura comprar animais e outros alimentos para então enviar os convites para o funeral, e estes convidados trazem mais comidas e presentes para o morto. O morto então é levado para a tumba, e enterrado com os seus principais bens. No caso do Ntotila, segundo Weeks, aconteceu a mesma coisa. Quando D. Pedro V morreu, em 1891, ele foi

(…) enrolado com todos os uniformes e tecidos caros dado a ele pelo Rei de Portugal. Então veio os tecidos que tinham sido acumulados durante anos, estilos e padrões há muito esquecidos, introduzidos por comerciantes cinquenta e sessenta anos antes, no qual penetraram desde a costa até o longínquo interior. De toda a riqueza que ele reuniu durante um longo reinado nada foi salvo da tumba, e o custo deste funeral, exceto o brasão e o manto, e os artigos de prata que eram considerados propriedade da coroa – tudo o resto foi enterrado para enriquecer seu último proprietário na terra espiritual.

O esforço dos kongo para acumular bens e riquezas necessárias para concretizar um funeral grandioso tinha como objetivo realizar “(…) um grande funeral que será falado em todo o distrito; pois eles acreditam que quanto maior o funeral melhor será sua recepção na terra dos espíritos.”

Desta forma, nem todos os mortos eram iguais. O impacto da morte entre os kongo estava diretamente relacionada com a posição do morto na sociedade dos vivos. Os mais honrados se transformavam em ancestrais, e, geralmente, estes eram os chefes de linhagem ou da elite. Para se tornar um ancestral, era necessária uma vida honrosa, como afirma Van Wing, “Homem que viveu honestamente segundo as leis e tradição, que morreu comido pelos ndoki ou chamado por Nzambi, se transforma em nkulu.” O nkulu (plural bakulu) é o habitante da vila dos ancestrais. Após a morte, o espírito, segue para um lugar semelhante ao que viveram, e de lá vigiam os seus descendentes. E como estamos estudando a cidade de Mbanza Kongo, em especial o lugar Kulumbimbi, é importante ressaltar a peculiaridade da situação, por ser a cidade a capital do Kongo dia Ntotila e centro referencial para a tradição.

A própria origem da cidade pode estar vinculada com um sepultamento de um ancestral, pelo menos de acordo com a tradição oral. Segundo Van Wing, o termo mbansa, comumente traduzido como cidade, está relacionado com o sentido de cemitério.

O principal cemitério é o lugar habitado pelo antepassado fundador da aldeia onde ele foi enterrado em sua própria cabana. Na sua morte, a vila foi transportada para outro lugar, mas eles voltaram para enterrar os mortos nas imediações do túmulo do fundador, e este lugar tomou o nome de mbansa.

A documentação histórica nos revela que a cidade Mbanza Kongo já era densamente povoada antes da chegada dos portugueses. O local de sepultamento dos reis não correspondia ao que hoje se chama Cemitério dos Reis do Kongo/Kulumbimbi. Eles enterravam os reis em uma floresta, um local chamado ambiro. Segundo carta do Ntotila Afonso I (Mvemba-a-Nzinga) de 1526,

(…) pedreiros e dez carpeteyros pera acabar allgüas obras de jgrejas, que começadas temos, em serujço e louuor de nosso Senhor Deus, principalmente hua de nossa Senhora da Vitoria, que começamos em hüa muy forte mata, honde antigamente se os Rex enterravam, segundo sua antiga jdolatria pollos grandes de nosso Reyno, é que tynhamos duujda o quererem comsentir. Os quães foram a jso tam cõformes e deligentes que cõ suas proprias mãos, cortauam a s grandes e grossas aruores e leuauam a pedra pera a obra aas costas, o que pareçeo ser por graça devina.

Nesta mesma carta podemos observar o movimento por parte deste Ntotila (e outros membros da elite) da construção de uma igreja no mesmo local do antigo cemitério dos reis. Esta intenção ia de encontro com os anseios de conversão dos missionários, que sabiam do poder de se construir uma igreja em cima de lugares sagrados. A questão da conversão do Ntotila e do cristianismo é um debate frutífero e muito complexo, que não pretendemos abordar neste trabalho. Ressaltamos, no entanto, que houve por parte do Ntotila um movimento de sobreposição de lugares com a finalidade clara de correlacionar a narrativa católica com a tradição, uma operação de combinação e reformulação dos lugares ancestrais, de acordo com Frommont. Segundo a autora, este movimento permitiu uma transformação, o antigo cemitério,

(…) não foi destruído pela construção da igreja. Pelo contrário, foi reformulado através da arquitetura como parte da reorganização emergente da cristandade no reino do Kongo. O cemitério de elite virou um espaço cristão que trouxe os antepassados dentro dos limites da nova religião; simultaneamente, dotou a igreja recém-construída com a presença venerável de fortes antecessores da elite atual, para quem túmulos ricos e elaborados realçados com marfins preciosos e têxteis uma vez tinha sido construídos. Na transformação, a função social e política do cemitério como marcador de prestígio e como monumento aos governantes passados permaneceu praticamente inalterado. A prática [de construir uma igreja] inaugurada com a ambiro [cemitério] foi expandido para todo o reino. No século XVII, o sepultamento em torno de igrejas era prática comum para a elite na capital e nas províncias igualmente. (…) A presença de antepassados concedeu emprestado às igrejas a aura de prestígio e potência que os cemitérios possuíam.na África Central fora do contexto cristão, enquanto canalizavam a potência invisível do falecido para o quadro de práticas católicas.

Desta forma, as igrejas de Mbanza Kongo no período de governo centralizado (1491-1666) foram sempre associadas com sepultamentos de ancestrais, e mais precisamente de Ntotila que escolheram estes locais para serem enterrados. As igrejas de Mbanza Kongo serviam, segundo Tshiluila, sobretudo como “(…) lugar de sepultamento para os reis e onde eles rendiam culto aos mortos pelo qual o rei estabelecia o seu poder legitimando-se ao recordar os seus laços com antecessores falecidos.”

Enquanto estas igrejas estavam funcionando existia uma correlação direta entre as duas religiões, mas, e depois do abandono das igrejas após a batalha de Ambuíla em meados do século XVII? Como ficaram estas relações entre sepultamentos e as igrejas em Mbanza Kongo? Alguns documentos dos séculos XVIII e XIX nos revelam que as ruínas das igrejas continuaram a ser locais importantes de sepultamento, tanto para os nativos como para os portugueses. O missionário Rafael Castello de Vide relata o sepultamento de um padre no Kulumbimbi,

No mesmo dia de tarde fomos depositar o seu corpo na Igreja, e os escravos da Igreja e muitos fiéis lhe assistiram toda a noite, cantando seus Rosários: no dia seguinte, lhe cantámos o ofício de corpo presente, e Missa, e o ofício da Sepultura, como se costuma aos Religiosos, e o enterrámos na Capela Mor da Sé, e o lugar destinado a sacerdotes.

O relato de Castro nos revela que as sepulturas eram visíveis no século XIX no Kulumbimbi, “Nesta Igreja se acham enterrados os reis católicos do Congo, e vi duas

catacumbas de bispos, uma ainda tinha ossos, mas não pude saber de quem eram (…). O viajante Jayme Pimentel cita a existência de túmulos dentro das ruínas do Kulumbimbi. “Ainda lá existem, apesar do seu estado de ruína, três catacumbas – duas de bispos e uma do vigário geral do reino do Congo, ali falecido em 18 de julho de 1746.”

O tenente Zacharias Silva Cruz também comenta sobre sepulturas dentro do Kulumbimbi, “ (…) corpo da igreja para a capela-mor. Nestas está a sepultura de um Padre, segundo dizem os pretos. Tem letras gravadas na pedra, mas gastas e ininteligíveis. O adro do edifício era imenso (…) Também está cheio de sepulturas, coberta com as ruínas.” A informação de Castello de Vide reforça que mesmo o local estando em ruínas no final do século XVIII, ele permanecia com ligação ao cemitério, sendo vivenciado pela população enquanto tal. O texto de Silva Cruz revela que o conhecimento sobre os sepultamentos era compartilhado pelos locais, e não somente uma interpretação sua.

Podemos afirmar que existiam pessoas na cidade de Mbanza Kongo que no século XIX associavam o lugar Kulumbimbi a sepultamentos. Esta função foi ainda mais reforçada se aceitarmos outros dois elementos, o primeiro, a informação de Faria Leal, que relatou que durante a tomada de São Salvador em 1856 os mortos foram enterrados no lugar: “O terreno [do Kulumbimbi] porém, minado a grande profundidade por aglomerações de esqueletos humanos, enterrados comumente na tomada de S. Salvador por Baptista d’Andrade (…).

O segundo, e mais importante no nosso caso, é um elemento linguístico verificado pelos missionários batistas que estiveram em Mbanza Kongo. Eles perceberam que a palavra em kikongo utilizada para nomear a estrutura da igreja era nzo ankisi, ou seja, traduzida pelo povo como casa dos fetiches

Os antigos missionários [Católicos] fizeram ainda um erro terrível na palavra na qual eles adotaram para igreja, nzo ankisi; esta é a palavra comum usada para sepultura, que é um eufemismo significando casa do feitiço.

Segundo Bentley, este erro aconteceu devido aos padres católicos antigos tentarem traduzir nkisi como sagrado, ou seja, casa sagrada. No entanto, o sentido de nkisi é muito maior que o de sagrado, e o mais interessante no nosso caso, é a constatação pelo autor que a palavra nzo ankisi possuía o significado entre os kongo de Mbanza Kongo de sepultura (grave em inglês). O próprio nome carregava o sentido de que a igreja era antes de tudo um lugar de sepultamento, revelando que o poder do lugar vinha também da sepultura dos mortos.

Todas estas ligações entre igreja e cemitério, que evidenciam uma importante continuidade histórica de enterramentos, se completam para consolidar o significante mais importante para os kongo de Mbanza Kongo do século XIX e XX para o lugar Kulumbimbi: o sepultamento dos Ntotila.

O atual cemitério dos reis do Kongo, que se encontra ao lado das ruínas da antiga sé Catedral, com a sua atual forma é relativamente recente. Não conseguimos precisar a data da sua construção, mas considerando as informações presente nas descrições do século XIX, a construção do cemitério deve ter iniciado no século XIX. O relato de Silva Cruz nos informa do sepultamento do Ntotila Henrique II, que aconteceu em 1857, e no entanto, não relata a existência de um cemitério dos reis. O autor esteve em Mbanza Kongo no falecimento de Henrique II, e presenciou os preparativos do seu funeral. Ao chegar na cidade o Ntotila se encontrava já morto,

O significado de nkisi é muito complexo e diversificado com relação ao período histórico analisado, o local de estudo e forma de tradução para as línguas europeias. Adotamos o significado utilizado por Frommont, “Nkisi (plural minkisi), como definida em detalhadas etnografias dos séculos XIX e XX, é ‘uma força pesonalizada da terra invisível dos mortos’ que ‘tem escolhido, ou tem sido induzida a submeter a si próprio a algum grau de controle humano efetuado através de performances rituais’ por um ‘especialista iniciado,’ o nganga (plural banganga). O termo nkisi, recordamos, era usado em contexto dos princípios do cristianismo no Kongo para transmitir a ideia de ‘sagrado’ e ‘santidade’.” FROMONT, Cecile. The Art of Conversion. 2014. p. 201.

(…) sobre uma tarimba alta coberta de panos e na parte superior com o manto real, que é de gorgorão lavrado, cor de laranja e forrado de seda branca, tendo o cabeção, desta mesma seda, semeado de estrelas de prata, e com alamares deste metal dourado. Aos pés um crucifixo de marfim, do tamanho de um palmo.

O local de sepultamento do Ntotila, segundo o autor, foi escolhido pelos padres após a morte,

Estive com o duque de Bamba, em sua casa, e disse-me que desejava que os reverendos Padres marcassem o lugar para a sepultura do rei, e que esta fosse fechada pelos nossos pedreiros. De tarde fomos todos a isto, e escolheu-se o lugar para a cova no adro da Sé, ficando o duque a mandar abrir.

Segundo o autor, o desejo dos kongo era que o sepultamento ocorresse simultaneamente com a eleição de um novo Ntotila, situação que demoraria meses. Isto não aconteceu, pois, os padres não poderiam esperar tanto tempo para dar missa ao defunto, e então, para “aproveitar” a presença tão rara de párocos católicos, eles enterraram o Ntotila.

Pelas 7 horas da manhã fomos para a banza, proceder à encomendação. Estava ali a rainha, com uns 100 pretos armados, os fidalgos e o povo. A cerimônia fez-se com bastante recolhimento, da parte dos indígenas. Os Padres celebraram missas, por alma do defunto.

O enterro, às pressas, não permitiu que fosse feito grandes cerimônias (ou o autor as omitiu), mas de toda forma, se estivermos correto que Henrique II tenha sido o primeiro Ntotila enterrado solenemente no Cemitério dos Reis do Congo, o seu sepultamento demarcou um “novo” lugar fundamental para resignificar Kulumbimbi, presenciado e experimentado pelo povo que ali estava presente. Após ele todos os outros Ntotila foram enterrados no local, como o já citado enterro de D. Pedro V, e o seu sucessor, o Rei D. Álvaro XIII. Este morreu em 1896, e após as cerimônias de preparação do corpo, foi “(…) enrolado [com] mais de 1 metro de diâmetro, sendo depois colocado sobre uns bancos com fumeiro por baixo, onde se conservou até o dia do enterro (…)” e enquanto isto, mandaram os seus conselheiros avisar os povos amigos,

(…) e reunidos em S. Salvador quarenta sobas com sete batuques e mais de oitocentas pessoas, foi o rolo metido num formidável caixão de madeira, forrado de veludo preto, tendo na tampa uma enorme cruz branca, e conduzido para o cemitério dos reis, junto das ruínas  da primitiva Sé do Congo.”

Mesmo havendo a proibição de se realizar a defumação do morto após 1896, por ordem dos portugueses, para o funeral do Ntotila Bemba (D. Pedro VI) foi aberta uma exceção, dando a possibilidade para a presença do povo e da elite participar, e assim seu corpo ficou em exposição por dois meses até ser enterrado no cemitério.

A morte de Johnny Lengo, Pedro VII, também foi envolvida em celebrações, incentivadas principalmente pelas autoridades portugueses bastante afeiçoadas com o Ntotila. Em 1955 ele faleceu, e seu corpo foi velado,

(…) no Paço Real, o corpo do saudoso rei por várias e ininterruptas turmas de europeus e nativos, estando à frente o sr. Administrador do concelho Manuel Martins. O funeral realizou-se no dia imediato pelas 10 da manhã sendo procedido de missa cantada de “Requiem” na capela das Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria (…). Incorporaram-se nele pessoas de todas as camadas sociais, católicos e não católicos, todos tendo assistido às solenes exéquias com profundo recolhimento.

A presença da elite e do povo era uma necessidade nos enterros dos diferentes Ntotila, nos diferentes períodos, e esta presença consolidou a narrativa do lugar Kulumbimbi como um cemitério de ancestrais, e principalmente dos Ntotila. É um lugar poderoso, que deve ser tratado com respeito, ou os ancestrais podem se enfurecer e prejudicar os viventes. Devem ocorrer celebrações anuais para louvar os ancestrais, como descreve Van Wing:

Todo ano, no começo da estação seca, realiza-se lá no cemitério uma cerimônia em honra dos ancestrais. Onde não há chefe coroado, é o chefe da aldeia quem o substitui. Primeiro, desmata-se o cemitério; limpa-se os túmulos e corta-se os arbustos mbota que os encobrem; coloca-se no lugar os objetos tombados, junta-se alguns pratos novos. Nos quatro cantos da aldeia, homens disparam tiros de fusil. Em seguida o chefe é trazido, todos os homens livres se organizam em um meio círculo diante dos túmulos. O chefe, então, percorre muito lentamente o cemitério e asperge o vinho de palma de uma cabaça; depois ele faz uma prece aos ancestrais. Ele começa por aclamar o nome legendário do grupo, e depois recita os nomes de todos os chefes e de todos os ndona.

Os cemitérios devem, portanto, serem bem cuidados e honrados, pois possuem poder. Se um ladrão roubar algum túmulo, deve ser sacrificado e o seu sangue oferecido ao morto para acalmá-lo. Barroso nos relata um caso emblemático sobre o poder do cemitério:

(…) conheci um preto que todas as vezes que desejava dizer ao Ntotila cousas desagradáveis e pesadas, embriagava-se fortemente e depois dizia as ultimas, fugindo logo para o tumulo de um Ntotila, para assim evitar o castigo que merecia. Vestígio sem dúvida dos antigos frades, que tinham para os desgraçados o seu refúgio; ainda hoje á sombra do altar ninguém seria preso.

Por este trecho fica evidente o enorme poder que existe nos cemitérios e nos túmulos dos reis dos Ntotila. O lugar é santo e inexpugnável, tendo que ser respeitado apesar das ofensas praticadas. Um poder emana do lugar: são os poderes dos bakulu! O Ntotila não mexe com estes pois sabe do poder que eles possuem. Será porque é uma igreja como afirma Barroso? Possivelmente isto contribui no sentido dos portugueses, mas sustentamos que principalmente é porque as igrejas que estão em cima dos mortos!

O lugar Kulumbimbi defendemos, foi configurado a partir destes elementos apresentados. A existência das ruínas da igreja – entendida como sinônimo de sepultamento nzo a nkisi – a presença dos jazigos, os sepultamentos, os ossos, os corpos dos reis, tudo isso associado com as cerimônias funerais, criaram a experiência de sobrepor mesmo sentidos e percepções através do tempo, dando o significado que defendemos que é o principal na definição do lugar, e também dentro da paisagem de Mbanza Kongo.

 

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