Por Ana Paula POLL *
Interpretado pela antropologia clássica, em meados da década de 1950, como um movimento de resistência ao colonialismo belga, o kimbanguismo tornou-se igreja. O lendário Reino do Congo dizimado na batalha de Ambuíla, em 1665, e berço de nascimento do fundador da igreja, Simon Kimbangu é contemporaneamente exaltado como ‘terra sagrada’. A esperança na reunificação do lendário reino, hoje dividido entre Angola, República Democrática do Congo e República Popular do Congo é reatualizada através de ‘hinos inspirados’, sermões do atual líder espiritual da igreja, em imagens e fotos de divulgação produzidas e utilizadas pelos fiéis durante as cerimônias religiosas realizadas em Bruxelas, Paris, entre outras capitais européias. A descrição do antigo reino como ‘terra sagrada’é parte de uma teologia bastante sui generis compartilhada pelos fiéis. Nela a África aparece como berço da humanidade e, portanto, o palco de uma cena célebre: a do pecado original. No entanto, na interpretação bíblica kimbanguista o pecado cometido por Adão, um homem negro, não acarretaria apenas sua expulsão do paraíso, mas, também a condenação de seus descendentes à danação e a subjugação frente aqueles que foram criados por Deus mais tarde, a saber, o homem branco. Essa interpretação poligenista da criação está fundada, sobretudo, na percepção da feitiçaria como pecado original e, obviamente, na re-apropriação do discurso racialista introduzido naquela região pelo colonizador.
Introdução
O presente ensaio é resultante das inquietações geradas no âmbito da realização do trabalho de pesquisa, desenvolvido ao longo do ano de 2005. Como objeto de estudo figurava a Igreja de Jesus Cristo por seu Enviado Especial Simon Kimbangu, ou simplesmente, igreja kimbanguista. O kimbanguismo tornou-se conhecido nos círculos acadêmicos após a publicação de “Sociologie de l’Afrique Noire”, na década de 1950. Analisado por Balandier (1951) como uma espécie de movimento político de resistência ao colonialismo belga, o kimbanguismo transmutou-se, ao longo do século XX, em igreja. Uma igreja que sobreviveu ao período colonial e, igualmente aos conflitos pró e pós-independência. As vicissitudes do kimbanguismo, que chegava ao Brasil de 1992, tornaram-no objeto de meu interesse antropológico.
Foi após o trabalho etnográfico acerca das cerimônias desta igreja, realizado no Rio de Janeiro, que parti rumo à Bélgica objetivando a compreensão da rede de sociabilidade que fora identificada. A escolha do novo local para a realização da pesquisa não ocorreu, estritamente, em função da relação colonial envolvendo a Bélgica na história do kimbanguismo, mas, sobretudo, porque deste país, provinha à maior parte do material fonográfico digitalizado que circulava entre os kimbanguistas que viviam na capital carioca. Deste modo, a Bélgica tornou-se meu destino. Os DVDs e CDs produzidos no coração da Europa ocidental divulgavam os ‘hinos inspirados’ contendo antigas e novas profecias atribuídas à Simon Kimbangu, o ‘enviado especial’, aos seus filhos e, mais recentemente, ao seu neto, Simon Kimbangu Kiangani, atual líder espiritual da igreja. Arquivos de imagem, alguns disponíveis no site da EJCSK2 na internet, também continham interpretações teatrais acerca da teologia kimbanguista. As encenações proféticas ora representavam o passado, ora apontavam o devir desta igreja, de seus fiéis e dos negros em geral.
A partir da circulação desse material e das mensagens veiculadas através deles era possível observar a rede de apoio mútuo que os kimbanguistas residentes na Europa, especialmente em Bruxelas, teciam, bem como, os conflitos produzidos no interior da igreja. Mas, sobretudo, era possível identificar a atualidade da EJCSK naquele contexto tão distinto do cenário onde o kimbanguismo emergiu. E através da análise dos fatores que contribuíram para sua continuidade, pretendi elaborar uma compreensão acerca da atualidade dessa igreja, dos sermões e, sobretudo, da interpretação bíblica disseminada entre os kimbanguistas que entrevistei em Bruxelas e em Saint-Denis.
Assim sendo, trata-se aqui de explorar o kimbanguismo contemporâneo, e contribuir para compreender a construção de uma identidade que emerge, sobretudo, a partir do lugar que o congo ocupa no imaginário dos kimbanguistas residentes na Europa. Esse estudo nos remete ao passado, bem como, assinala para o presente. Do colonialismo (dos séculos XIX e XX) ao mundo pós-colonial, do antigo Reino do Congo, dizimado na batalha de Ambuíla, em 1665, até Nkamba3 (na atual República Democrática do Congo) e à contemporânea Europa ocidental, esses recortes espaciais e temporais podem ser analisados para além da descontinuidade que também representam. Proponho aqui esse exercício.
África: O berço da humanidade, a terra prometida.
Durante a pesquisa de campo foram inúmeros os relatos que apresentavam a África como berço da humanidade. Entre os depoimentos destacavam-se: a reapropriação do antigo testamento para indicar com certa precisão a localização da terra prometida, o Congo4 , e a correlação entre essa narrativa bíblica e as constatações da paleontologia acerca da origem do Homo Sapiens ter se dado no continente africano. Esses foram o resultado do agrupamento dos discursos (após algumas alterações quanto à forma). Eles foram construídos a partir da análise de outras variações pouco substanciais que compuseram a narrativa dos meus informantes.
A descrição da África como berço da humanidade não era obtida apenas em entrevistas ao longo do desenvolvimento da pesquisa, ela também compunha uma parte central da cerimônia religiosa realizada habitualmente aos domingos. Nessa ocasião, invariavelmente, três fiéis ajoelhavam-se próximos ao púlpito representando: Angola, Congo-Brazzaville5 e Congo-Kinshasa6 . Essa representação era física, marcada pela presença dos três indivíduos7 perfilados de joelhos, mas, sobretudo, observava-se na composição daquela cena uma esperança projetada para o futuro, um vir a ser que não parecia representar ruptura com o passado, como veremos, pois está ligado a ele para que se cumpram as mudanças desejadas.
Os fiéis ajoelhados recitavam preces rogando para que o sofrimento das pessoas, daqueles países, fosse dirimido, para que o sofrimento em todo continente africano encontrasse seu fim e, esperavam a reunificação daqueles Estados num único: o Congo. Essa reunificação representava o cumprimento de uma profecia e com ela, ‘o fim do sofrimento do homem negro!’, dizia uma das preces. Essa exclamação não era reveladora apenas das idiossincrasias de um fiel ajoelhado frente ao púlpito, se tratava de uma narrativa recorrente durante esse momento ritual, bem como, na descrição acerca das expectativas daquela igreja para o futuro e, nos cânticos, chamados de ‘hinos inspirados’, revelados aos fiéis através da inspiração divina, geralmente em situações rituais.
Kimbangu não era apenas o anunciador da ‘boa nova’, segui-lo, assim como, aos seus ensinamentos seria uma forma de abreviar a redenção aguardada por todo um continente. Falava-se da salvação da alma dos indivíduos, mas, sobretudo, do fim do sofrimento de todos os negros, seja no continente africano ou alhures.
Exclamações como aquela, acima transcrita, representavam, portanto, um recurso discursivo capaz de explicar a manutenção da fé em Simon Kimbangu como salvador do homem negro, em geral e dos bacongo8 , em particular. Esse ritual que dá centralidade ao Congo reunificado é fielmente repetido nas cerimônias dominicais da igreja de Kimbangu – em Bruxelas e em Saint Denis –, ele torna vívida a história do reino dizimado por brasileiros e angolistas, como descreve Alencastro (2000), e destaca, simultaneamente, seu devir: o renascimento, através da reunificação dos países que no passado compunham seu território.
Essa ligação do kimbanguismo com o passado glorioso de um reino africano também foi destacada por outros pesquisadores que objetivaram compreender a transmutação de um movimento religioso em igreja e as razões de sua abrangência, principalmente, no ex-Congo belga pré e pós-independência. Em geral, tal ligação foi tratada como evidência de uma manifestação religiosa bacongo. Essa análise que remonta aos primórdios do kimbanguismo como campo de investigação antropológica e sociológica, apresenta certas limitações depois de algumas décadas. Limitações provocadas menos pela passagem do tempo, e mais, em função do movimento diaspórico experimentado pelo continente africano pós-colonial. Na Europa contemporânea a centralidade do discurso pró-bacongo teria sido sublimada pela construção do que Gampiot (2005) chamou de ‘identidade social positiva para os negros’. Para o autor de « Kimbanguisme et L’identité Noire », a construção de uma identidade social positiva não é resultante da simples réplica do discurso negro face ao discurso branco, mas, de uma auto-identificação baseada na crítica ao status minoritário do homem negro no mundo, o que entre outros fatores explica sua continuidade e vigor. Minha investigação aponta para outra conclusão no que diz respeito à contemporaneidade do kimbanguismo, sobretudo, na Europa, talvez porque diferentemente do que propôs Gampiot (2005), eu tenha analisado a elaboração da teologia que vem orientando as práticas e os discursos desses fiéis.
No entanto, é inegável, para ambos, que apesar da sublimação do discurso pró- bacongo em face da inserção dessa igreja em um novo contexto histórico e político, a religião kimbanguista acomoda sua recomposição identitária sobre as histórias que foram contadas acerca do lendário reino do Congo. É, também, inegável que este ganha projeção e importância no imaginário dos kimbanguistas; inclusive dos que são descendentes de imigrantes e refugiados. Pois, embora, não tenham nascido em solo africano, para os kimbanguistas, a África abriga um lugar socialmente construído, o Congo. A imagem do lendário reino, bem como, a esperança na sua reunificação dá sentido e organiza práticas sociais e relações concretas entre os kimbanguistas e, entre eles e o entorno. Assim sendo, posso, seguramente, afirmar que para os kimbanguistas residentes em Bruxelas, o Congo não é apenas o território dos bacongo, mas, a terra prometida onde os negros podem buscar e aguardar sua redenção.
A constituição do Congo como berço da humanidade e terra prometida foi elaborada simultaneamente a construção de uma história (bíblica) comum e, produziram, portanto, uma identidade compartilhada, um sentimento de pertença a “família kimbanguista”, termo que ouvi inúmeras vezes durante a pesquisa de campo. Essa “família kimbanguista” produz uma rede de apoio mútuo que se traduz em acolhida para novos imigrantes, kimbanguistas vindos da África ou do Brasil, como observei, e que precisam iniciar suas vidas no velho continente.
Essa relação com o continente africano e, particularmente, com o lendário Congo ocupa o imaginário social sob diferentes perspectivas. Por exemplo, quando algum kimbanguista falece na França ou na Bélgica, a família almeja e torna-se uma honraria (para o defunto e seus familiares) realizar o enterro na África, especialmente, no Congo.
E como a memória social age de forma seletiva, também é possível identificar a centralidade do Congo (no presente) para os kimbanguistas através das narrativas sobre a história da igreja. Nelas o lendário reino aparece como lugar sagrado. Em minha pesquisa de campo, sempre que falávamos sobre o surgimento ou a história do kimbanguismo descrevia-se o episódio de extermínio desse reino. Tal episódio conta com a presença de uma personagem anunciadora da igreja congolesa, ora em questão, Béatrice9 Kimpa Vita. A profetiza é reverenciada, inclusive no catecismo da EJCSK, não só como opositora à dissolução do antigo reino, mas, como a anunciadora do salvador que seria responsável pela reunificação do Congo, prevista para ocorrer séculos mais tarde, Kimbangu.
Balandier (1992[1965]) em seu estudo sobre a vida no Congo do século XVI ao XVIII também apresenta a história da jovem heroína congolesa, de família aristocrática, que lutava pela unidade do território daquele Reino, quase um século após a batalha que decretou seu fim. O autor descreve sua condenação e morte, fora queimada sob acusação de heresia, aludindo-a ao papel da heroína francesa, Joana D’arc. E o faz, sobretudo, porque buscava razões para explicar como se forjara uma unidade política nos termos que procurava demonstrar ter ocorrido naquele local.
Para além da conexão entre Simon Kimbangu, a história pregressa do antigo território do Congo e a leitura bíblica da terra prometida como berço da humanidade, conexão re-atualizada através do ritual descrito acima, destaca-se o papel de Kimbangu na teologia elaborada durante a consolidação do movimento por ele liderado. Em princípio apresentado como profeta, sua nomenclatura foi alterada ao longo das últimas décadas do século XX, agora é chamado “enviado especial”, termo que compõe o extenso nome oficial da igreja kimbanguista. Mas, de fato, ele é apresentado pelos fiéis na capital carioca, em Bruxelas, assim como, em Saint Denis, como o Consolador, o Espírito Santo, anunciado por João10 em texto bíblico.
‘Kimbangu é nosso Deus! Nós os negros’, explicação várias vezes registrada por mim frente à interpelação acerca da natureza de Kimbangu. E seus três filhos, responsáveis pela rotinização do carisma do pai, e fundação da igreja, são descritos como a representação da santíssima trindade. Cada qual a reencarnação de Deus, ora pai, ora filho e, finalmente, Espírito Santo. Durante as últimas décadas do século XX, essa alocação bíblica de Kimbangu e de seus filhos foi negada pelos herdeiros de Simon Kimbangu, embora amplamente divulgada entre os fiéis.
Diangienda Kuntima, filho mais novo, e o que por mais tempo dirigiu a igreja kimbanguista, atribuiu em publicação intitulada, L’Histoire du Kimbanguisme, o caráter sagrado de seu pai ao fato dele ser um enviado especial de Deus na terra. Enviado, segundo Kuntima, para divulgar Sua mensagem e trabalhar em Seu nome. Mas, após a morte do último herdeiro, e com o subsequente conflito deflagrado pelos netos para a sucessão da liderança da EJCSK, a explicação que era regra entre os fiéis aparece em sermões oficiais divulgados no site da igreja. Para além das polêmicas geradas pela dupla interpretação, em Bruxelas e em Saint Denis não observei nada diferente da exclamação acima transcrita, “Kimbangu é nosso Deus!”.
Para Balandier (1970[1955]) o papel do kimbanguismo na década de 1950 não era só resultado da dinâmica social provocada pela introdução de uma nova organização societária caracterizada por elementos estranhos à cosmologia bacongo, mas, igualmente, pelas características dessa organização social representada naquele território pela administração colonial belga. E antecedida pela intensa exploração privada a qual fora submetido aquele território sob o comando do rei Leopoldo, L’État Independent du Congo foi descrito como um dos episódios mais sangrentos do colonialismo dos tempos modernos.
Não obstante as mudanças na representação acerca do sagrado que o kimbanguismo tornava evidente, a proliferação de movimentos semelhantes, ao longo da primeira metade do século XX, por extensa parte do território compreendido entre o norte de Angola, o Congo-Brazaville e o Congo-Kinshasa e, igualmente, combatidos pelas respectivas autoridades coloniais, levou Balandier (1970[1955]) à conclusão de que tais movimentos de inovação religiosa significavam efetivamente “uma tomada de consciência” em curso. Análises como essa e, as que se seguiram, objetivavam a compreensão do kimbanguismo a partir da análise da cosmologia Congo e da fricção interétnica inegavelmente produzida pelo controle europeu daquele território e mais tarde, pelas subsequentes décadas de contato direto com as administrações coloniais, leia-se dominação colonial.
Observei que a própria igreja e os padrões de comportamento que distinguem os kimbanguistas dos não-fiéis, sejam negros ou brancos, forjaram-se em meio ao diálogo que os Scholars produziram com líderes e fiéis dessa igreja, ora através do contato direto no campo de pesquisa, ora com a publicação e, consequente divulgação dos resultados das mesmas. Mas, faz-se necessário destacar que a teologia kimbanguista e a abrangência desta teologia entre os bacongo e, mesmo alhures, deveu-se, sobretudo, a apropriação dos episódios bíblicos contidos no antigo testamento. Episódios que também ofereciam uma história e memória coletiva aos negros sob o jugo da intensa dominação colonial. Entre eles a condução dos filhos de Israel da escravidão do Egito à liberdade na terra prometida, uma caminhada longa e penosa conduzida por Moisés. A vitória de Davi sobre o gigante, o indestrutível, Golias.
Gampiot (2005) analisou essa apropriação como uma espécie de arma ideológica necessária ao renascimento identitário, seja como bacongo, seja como homem negro. Assim o kimbanguismo que atribuía, com as lições de catecismo bíblico ministradas por Kimbangu, materialidade às passagens bíblicas, através da própria realidade objetiva dos colonizados, se tornava parte de eventos já sacralizados desde o início do trabalho missionário de católicos e de protestantes naquela região. Seguindo essa perspectiva, a leitura kimbanguista da mensagem bíblica foi determinante, sobretudo, no processo de construção de uma identidade negra. Afinal, não eram só os bacongo a serem subjugados pelo regime que as potências europeias instauraram naquele território, outros grupos étnicos também eram afetados pela política colonial praticada em todo continente.
Mas, a proposta que ensejou minha pesquisa não era compreender como o kimbanguismo forjou certa unidade em torno da negritude, em oposição ao administrador colonial branco, como destaca Gapiot (2005). Tratei de compreender como se exprime essa ‘nova’ religião, mantida num contexto pós-colonial e, principalmente, bem longe (compreenda-se aqui, plano espacial) do local e das condições em que emergiu.
Mas para compreender a continuidade da fé em Kimbangu como salvador do homem negro, e particularmente, dos kimbanguistas, eu também precisei fazer o caminho de volta ao passado para, só então, analisar a centralidade que o antigo testamento ganhava nas cerimônias contemporâneas. Analisando a apropriação kimbanguista do antigo testamento, foi possível compreender o lugar do Congo e do próprio Kimbangu na teologia construída ao longo de quase um século de existência desse movimento religioso. Assim como, também foi possível compreender que desta apropriação emergia uma explicação bíblica da diferença, já tão acentuadamente marcada pelo colonialismo, entre os brancos e os negros.
Essa explicação bíblica da diferença, em função de sua capacidade de produzir uma compreensão muito particular e elaborada nos termos daqueles que vivenciaram (e continuam a fazê-lo) as consequências mais nefastas resultantes dessa distinção, consegue manter todo seu vigor na atualidade. E sua manutenção tem relação direta com o status minoritário do homem negro no mundo, sobretudo, seu status no atual contexto europeu. Continente que tem recebido considerável fluxo de imigrantes e refugiados africanos, principalmente, no período pós-colonial.
A produção das desigualidades
A construção de uma identidade negra no seio da igreja kimbanguista, uma ‘identidade social positiva’ como insiste Gampiot (2005) teria sido resultante da autoidentificação produzida a partir da crítica (resultante da apropriação das histórias do antigo testamento) ao status minoritário conferido ao homem negro. Para Gampiot (2005), como destaquei acima, não se tratava de uma simples réplica ao discurso de supremacia branca amplificado em tempos coloniais. A auto-identificação se dava com a apropriação de passagens retratando a libertação dos judeus do cativeiro, ou a vitória de Davi sobre Golias, e as mensagens e profecias de Kimbangu apontavam um devir promissor para os negros, como na bíblia, um devir promissor para os que foram escravizados e subjugados pelo agigantado (armas, automóveis, sistemas de controle de pagamento de impostos sobre a produção) administrador colonial.
Contudo, dentre as apropriações do texto bíblico que ouvi nos sermões, nas preces, nos cânticos e, mesmo, li em publicações de circulação restrita, entre os pastores e os fiéis, a interpretação ‘sui generis’ da origem da humanidade parece ser o ponto nevrálgico da teologia kimbanguista e suspeito que seja o fator primordial, dentre outros, obviamente, a tornar as mensagens, desta igreja, atuais em plena Europa ocidental.
De acordo com as narrativas kimbanguistas acerca da origem da humanidade, trata-se de uma gênese poligenista. O homem negro e o homem branco teriam sido criados por Deus em dois momentos distintos. A primeira criatura humana foi negra e originária da África, especificamente no território do lendário Congo. Para reforçar a autenticidade dessa leitura bíblica acerca da localização do primeiro ser humano sobre a face da terra, meus entrevistados citam artigos de jornais divulgando recentes conclusões arqueológicas.
A criação do homem branco só ocorreu mais tarde, foi posterior a expulsão do homem negro do paraíso. Essa expulsão, tradicionalmente explicada no ocidente cristão pela relação sexual entre Adão e Eva, ganha surpreendente versão quando se trata de Eva e Adão negros. A expulsão do paraíso fora provocada pela utilização da ‘mauvaise intelligence’, ou feitiçaria. Um pastor me disse certa vez: “ se Deus nos ordenou: ‘crescei-vos e multiplicai-vos’, como poderia nos castigar por cumprirmos o que nos ordenou?”. Ele alegou que o primeiro ser humano, invejoso de seu criador almejou Seu poder e Sua sabedoria, e para alcançá-la estabeleceu acordo com forças maléficas conquistando, deste modo, mesmo que parcialmente, um poder que deveria ser prerrogativa do Criador. Expulso do paraíso o homem negro teria amargado por milênios o castigo por seu pecado. Castigo que se estende aos dias atuais.
Vários episódios históricos contidos no antigo testamento me foram relatados para demonstrar que o homem negro não se redimira e, ao continuar empregando a feitiçaria, perpetuava sua maldição ao longo do tempo. O mais surpreendente acerca dessa leitura tão particular do livro de Gênesis é a distinção ontológica entre os negros e os brancos. Pois, sobre essa distinção esta baseada a argumentação que explica a diferença entre eles e, o status minoritário do homem negro no mundo. Trata-se de uma maldição que não afetou apenas Adão, mas, todos os seus descendentes, e entre eles, não figura: o homem branco.
Os brancos jamais utilizaram sistematicamente o feitiço, não acreditam na sua eficiência ou no poder que ele acarreta. Eles não carregam no corpo a herança maldita de seus antepassados. Diferentemente, objetivando um conhecimento somente acessível ao Criador, o homem negro havia condenado seus herdeiros na linha sucessória à danação. Essa é uma interpretação capaz de explicar o status minoritário do homem 11 negro diante do colonizador e, usada para fazê-lo na contemporaneidade diante dos novos desafios encontrados pelos fiéis no cotidiano europeu.
Concomitante a análise da representação kimbanguista da Criação observei que os termos desenvolvimento e modernidade eram utilizados para reforçá-la. Assim, para os kimbanguistas com quem convivi em Bruxelas o desenvolvimento e o progresso tecnológico perpetrados pelo homem branco têm explicação fundada num plano religioso.
As benesses do desenvolvimento seriam vetadas aos negros, pecadores contumazes pelo uso indiscriminado e contínuo da feitiçaria ao longo da existência da humanidade. Não participando das ações para o progresso, pois, seu “bloqueio mental” – termo empregado durante entrevista – era uma punição pelo pecado cometido, castigo estendido às gerações seguintes. Os negros tornaram-se, então, escravos, submissos e subjugados pelos brancos. O desenvolvimento apresentava-se, deste modo, como um recurso discursivo capaz de atestar as consequências reais e contemporâneas do mal cometido no passado pelos seus antecessores que ao utilizarem a “mauvaise intelligence” não poderiam ascender socialmente, como foi feito pelos brancos ao longo dos séculos.
Apenas a rejeição à feitiçaria e a adoção da prática ascética seriam caminhos seguros para que os negros pudessem ascender socialmente. Na perspectiva dos kimbanguistas, essa conduta representaria a possibilidade de encerrar o castigo imposto pelo Criador aos pecadores, o que acabaria com o ‘bloqueio mental’ e permitiria o franco desenvolvimento pessoal e coletivo das novas gerações.
Assim, todos os instrumentos técnicos que historicamente representam desenvolvimento econômico, entre eles os mais citados: automóveis, aviões, eletrodomésticos, e muitos outros foram apresentados pelos meus interlocutores como obras realizadas pelos brancos com o intuito de atestar que os negros haviam sido de fato amaldiçoados pelo pecado cometido, e que deveriam, portanto, se redimir. Um castigo tão severo, destinado àqueles responsáveis pelo pecado original e aos seus descendentes, explicaria o fato de que apenas o homem branco foi o elaborador intelectual e executor de projetos que culminaram na proliferação de bens considerados símbolos do desenvolvimento.
No entanto, é preciso tecer considerações importantes sobre essa leitura particular do pecado original, acima descrita, e sobre a denominação que recebera dos fiéis. “Mauvaise Intelligence” foi traduzida por um pastor da EJCSK como “la sorcellerie”. Para ele a continuidade de seu uso ao longo das gerações tem impedido a redenção do homem negro. Kimbangu aparece, então, como Consolador, O Espírito Santo que os conduziria ao almejado perdão, marcado pela reunificação do Congo e ascensão social de todo um continente, a África. Mas esse perdão também dependeria paradoxalmente da conduta dos kimbanguistas. Ou seja, apesar de uma herança maldita, marcada pela cor da pele ou pela distinção racial (remetida ao episódio da criação) entre os brancos e os negros, seria possível alcançar o perdão e livrar os negros da maldição através da adoção de uma conduta ascética e da rejeição da feitiçaria.
É importante ressaltar que a feitiçaria tornou-se uma categoria de análise para antropologia que tem conceituado sobre a mesma ao longo de seu próprio desenvolvimento. Trata-se, portanto, de uma área da vida social absolutamente “contaminada” por concepções que foram trazidas à antropologia por pesquisadores como Evans-Pritchard (1937). A distinção entre dois conceitos que Pritchard traduziu como sorcery e witchcraft – em português: feitiçaria e bruxaria, respectivamente – influenciou sobremaneira os estudos acerca de religião e política.
Considerando a distinção, acima mencionada, bruxaria seria a possibilidade de fazer mal aos outros sem a consciência daquele que o causa, o bruxo ou a bruxa. Feitiçaria, por outro lado, seria a capacidade de fazer mal aos outros a partir de um ato consciente executado pelo feiticeiro ou pela feiticeira. No caso que analiso aqui, ‘mauvaise intelligence’ ou ‘sorcellerie’ certamente implica na consciência ou agência dos que supostamente querem fazer mal aos outros, pois é possível renunciá-la. Foi assim que os traduzi como feitiçaria.
Enquanto a bruxaria é herdada, e se manifesta numa substância existente no corpo, a feitiçaria pode ser empregada por qualquer um, pelos motivos mais escusos possíveis. Assim os acusados de bruxaria não podem ser culpados necessariamente pela maldade cometida. Os feiticeiros, em contraste, são sempre acusados e responsabilizados pelas suas ações. Há, então, um problema, embora ‘la mauvaise intelligence’ seja empregada conscientemente pelos que não querem ou não podem seguir os mandamentos de Kimbangu, há nela algo de inerente como na bruxaria entre os azande: é hereditária, pois é um atributo dos homens e mulheres negras. Assim, ao mesmo tempo, acaba sendo semelhante à feitiçaria descrita por Pritchard, uma vez que se supõe que os fiéis tenham certa responsabilidade pelo seu uso. Como vimos, o Kimbanguismo prega que a salvação depende da rejeição por completo da utilização da “mauvaise intelligence”.
Assunto difícil de ser abordado entre os kimbanguistas, o discurso sobre a “mauvaise intelligence” é composto muito mais por reticências do que por frases completas, pois ela aparece, na narrativa dos meus informantes, como uma maneira de retardar o devir próspero anunciado por Kimbangu. A salvação do homem negro está diretamente associada ao desprezo pelo feitiço. O não cumprimento dos mandamentos torna alguém alvo da feitiçaria e, ao mesmo tempo um potencial agente do mal, pois, como afirma um pastor kimbanguista « La sorcellerie est le mal par excellence ». Aqueles sujeitos à “l’emprise de satan” estão muito distantes da libertação anunciada por Kimbangu e re-anunciadas por seu neto Simon Kimbangu Kiangani:
“Nous devons obéir à Dieu le Saint Esprit, appliquer ses enseignements pour que la souffrance de l’homme noir prenne fin. Si nous obéissons à Papa Simon Kimbangu, ça sera le début du processus de la libération, la libération totale de l’homme noir11 . ”
As forças místicas ou a feitiçaria não desapareceram da vida social na bacia do Congo contemporâneo, como afirma Gampiot (2005), ao contrário, as acusações de feitiçaria parecem ser responsáveis pelo aumento de crianças abandonadas nas ruas de Kinshasa. Sob acusação de ministrarem o feitiço, esses jovens são expulsos de suas casas e afastados de suas famílias. “Les enfants sorciers” tornaram-se objeto de estudo sociológico e alvo de especulação dos meios de comunicação. Os kimbanguistas reconhecem a ação nefasta produzida pela feitiçaria e, assim, reafirmam sua fé em Kimbangu.
Para MacGaffey (2000) a tradução de termos como kindoki, toro, iloki, bandoki por bruxaria e a alocação dessa categoria de análise antropológica nos domínios da magia, religião e superstição têm impedido a observância de suas particularidades. Assim como, têm dificultado a percepção de sua relação com a constituição do poder no interior da vida social na bacia do Rio Congo, pois, em geral, eles são objetos de análises que questionam sua racionalidade.
Seguindo raciocínio semelhante, penso na teologia kimbanguista, pois apesar de envolver uma apropriação bíblica muito particular, ela não deveria ser analisada exclusivamente a partir dos domínios da religião, ou o que seria pior, da superstição ou da mera re-atualização da crença na eficácia da feitiçaria. Penso que estamos diante de um poderoso instrumento de resposta às relações de poder instituídas, sobretudo, como política internacional no século XIX, trata-se do colonialismo. Mas, como diria Gampiot (2005), esta não é uma simples réplica ao discurso de supremacia dos brancos. Penso que esta é uma resposta que incorpora o discurso racialista do colonizador. Pois, constitui-se a partir da concepção da “mauvaise intelligence” como pecado original redefinindo, assim, as razões da diferença ontológica entre os brancos e negros. Através dela é possível explicar racionalmente as razões da desigualdade, por óbvio, uma racionalidade distinta daquela empregada pelo colonizador, mas, suficiente para explicar a condição dos colonizados, e, mais, projetar-lhes um devir melhor.
Mas também, trata-se de uma resposta capaz de construir uma realidade objetiva em consonância com o status dos negros na Europa contemporânea, a saber, um mundo dividido entre os brancos e negros. Como destacamos acima, não se trata de nenhuma inovação, essa divisão já foi inúmeras vezes incitada. Mas, a partir dessa teologia ganha nova lógica, capaz de elucidar a condição pregressa e atual dos ex-colonizados, assim como, perpetuar a divisão racialista por um caminho que reconhece e explica a condição do homem negro no mundo.
E o fato marcante é que essa explicação permanece atual em plena Europa ocidental, a desigualdade entre brancos e negros, e os racismos mais odiosos das primeiras décadas do século XX não foram totalmente afastados, apesar dos esforços enveredados nesse sentido. As diferenças entre brancos e negros em Bruxelas ou em Paris não representam meras distinções culturais como nos querem fazer crer alguns analistas, trata-se da manutenção de uma desigualdade ontológica que se reproduz, sobretudo, com o fluxo de imigrantes e refugiados que aportam naquele continente.
E quanto mais essa desigualdade é tornada evidente, seja através de políticas públicas que afetam diretamente as formas de sobrevivência dessa população, ou de manifestações sociais contrárias à presença dos africanos nesses países, mais a apropriação kimbanguista do antigo testamento atualiza-se e ganha projeção na Europa.
Conclusão
Esse movimento religioso tornado igreja ao longo do século XX é capaz de oferecer uma explicação para o status minoritário do homem negro no mundo, explicação diferente daquelas que emergiram juntamente com o discurso racista do colonizador. Nessa resposta para o infortúnio é possível encontrar, também, a certeza da redenção, pois, tanto um quanto outro fazem parte de uma apropriação bastante particular o texto bíblico.
Concomitante a essa leitura bíblica, uma história, um lugar e um sentido de unidade foram produzidos. O lendário Congo ganhou nova vida na Europa contemporânea, onde imigrantes e refugiados africanos aguardam sua reunificação, um sinal da ‘libertação total do homem negro’. O retorno à terra prometida é desejado, mas, todos os que vivem em Bruxelas ou em Paris sabem que só será, de fato, possível quando o ‘bloqueio mental’, a maldição que acompanha o homem negro, chegar ao seu fim. Kimbangu representa apenas o início desse processo de libertação, é preciso que os descendentes daqueles que foram amaldiçoados renunciem o pecado, entre eles o mais grave, “la mauvaise intelligence”.
Analisando a importância das cerimônias kimbanguistas, entre elas, a que descrevi no início desse ensaio, penso que o mito europeu da supremacia racial, que acabou por fundar a relação entre colonizados e colonizadores, não foi plenamente superado. A interpretação kimbanguista acerca da origem da humanidade é um exemplo de suas vicissitudes. Parafraseando Sahlins, temos aqui a metáfora histórica de uma realidade mítica.
Como afirmou Hacking (2006) os efeitos provocados nas pessoas pelo processo classificatório podem alterar a lógica empregada para a taxonomia, ou seja, as próprias classificações. Nesse caso, tornou-se evidente que o sistema classificatório perpetrado pelo regime colonial produziu um mundo dividido entre os brancos e os negros, por óbvio, uma divisão desigual. Através da teologia kimbanguista, pude observar como essa divisão ontológica, entre negros e brancos, ganha novos contornos.
Como Gampiot (2005), eu penso que através do kimbanguismo construiu-se uma identidade social positiva para os negros ao se projetar o perdão e, um futuro promissor, para os que foram amaldiçoados no passado. Mas, findo o colonialismo, também é inegável afirmar que estamos diante de uma apropriação muito particular do discurso racialista, capaz de re-atualizar a distinção ontológica entre os negros e os brancos.
*Com o título”o Lugar do Congo na Europa”, trabalho apresentado na XXVII Reunião brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de Agosto de 2010, Belém, Pará, Brasil.
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