Do meu bornal de recordações – OS MERCADOS TRADICIONAIS.

 

Por Dr MANUEL ALFREDO DE MORAIS MARTINS.(Administrador da Damba 1945-1953).

 

Foi também num dos recenseamentos que entrei no contacto directo com uma das instituições económicas mais características da região que engloba os concelhos da Damba e do Zombo, este com sede em Maquela do Zombo, e se prolonga para além da fronteira com a República do Zaire. Trata-se dos mercados tradicionais, que são de criação muito antiga mas que mantiveram as suas características essenciais, não obstante as alterações, quanto aos artigos comercializados, determinadas pelo progressivo contacto com os comerciantes europeus. Em grande parte do concelho do Zombo e no posto sede do concelho da Damba, apesar da existência de estabelecimentos comerciais, os mercados mantiveram-se como centros importantes de negócio, mesmo para os artigos de importação vendidos nas lojas. Naquelas áreas administrativas o espírito comercial era a característica dominante dos seus habitantes e que se foi mantendo, adaptando-se com grande facilidade a todas as evoluções que a economia regional. foi sofrendo.

De trabalho de investigação de minha autoria8respigo os passos que reputo de maior interesse para o conhecimento dos traços essenciais do funcionamento dos mercados.

« São conhecidos vulgarmente por quitandas, mas o seu nome verdadeiro e nzandu, que também .significa «lugar neutro», « lugar de igualdade », « lugar de divertimento ».

A sua criação e o seu funcionamento obedeciam a regras fixadas pelo costume. Nenhum se podia fundar sem prévio acordo dos chefes vizinhos, que, em conjunto com o chefe interessado, escolhiam o local e proclamavam as leis que deviam reger o seu funcionamento.

Essas leis diziam respeito essencialmente à liberdade de comércio, à proibição da entrada de indivíduos armados, ao acatamento dos preços estipulados para certos artigos e a tantos outros pormenores, tudo tendente a dar ao mercado um ambiente de sossego, onde não eram permitidas rixas nem altercações, e, mais ainda, a transformá-lo em zona neutra, inviolável, gozando de certo modo um privilégio de extraterritorialidade. Havia penas .severas para os que não cumpriam essas leis, desde multas pesadas para os brigões até à condenação à morte para os que nele cometessem acções desonestas ou roubos.

Localizavam-se sempre em sítios elevados, bem arejados e a certa distância da aldeia.

A sua direcção competia ao «chefe do mercado», que marcava o momento do seu início, vigiava os preços, mantinha a ordem e impunha os castigos aos transgressores.

Além da sua finalidade principal, que era o comércio, os mercados funcionavam também  como locais de execução de criminosos, e era neles que se realizavam as cerimónias finais de alguns ritos de iniciação, como os da puberdade, da entrada na seita secreta do kipaxi e em certos feitiços especiais. Eram, além de tudo isso, como ainda hoje o são, os lugares de reunião predilectos, onde, à sombra tutelar ou nas imediações da figueira-brava (nsanda no falar quicongo) que fora plantada quando da sua criação, confraternizavam milhares de pessoas, ali atraídas não só pelas necessidades do comércio como também pelo natural desejo de convivência Era nos mercados que se marcavam encontros, que se ouviam e transmitiam as novidades, que se entrava em contacto com as novas mercadorias e com as novas ideias. Funcionavam como verdadeiros centros de difusão cultural.

Havia-os de duas espécies: uns, centrais, servindo bastantes aldeias e que, pelo bulício, pela multidão que os animava, pela presença de indivíduos vindos de longe e pelo valor das transacções, muito se assemelhavam às nossas feiras, e outros, mais pequenos, verdadeiramente locais, onde apenas ,se negociavam víveres e eram quase só frequentados pelas mulheres.

Os sistemas de negócio em vigor nos mercados foram variando com o decorrer dos tempos. A simples permuta primitiva cedo passou a coexistir com o emprego de moeda, representada primeiramente pelas búzios ( nzimbu ) e depois também por missangasde vidro por nós introduzidas, por barrinhas de latão, por espingardas, por cobertores, por medidas certas de tecido e por fim, já no final do século XIX, por dinheiro nosso ou do Estado Independente do Congo. Actualmente todas as transacções são realizadas a dinheiro.

Os mercados actualmente9 existentes na Damba e no Zombo em pouco diferem daqueles que se realizavam antes da ocupação efectiva  Alguns deles, os principais, são já antiquíssimos, a sua fundação é muito anterior a essa época.

Hoje, como sempre, realizam-se em todos os dias da semana conguesa, que sãoquatro: Mpângala, Konzo, Nkengue e Nsona. Portanto, em cada região há quatro mercados principais, distanciados uns dos outros até 30 quilómetros, e que tomam o nome do dia da semana em que se efectuam a anteceder o do local. Entre os Bazombo, são: Mpangala Zombo, nas imediaçoes de Maquela; Konzo -Kipemba, quase no limite norte do posto sede da Damba; Nkengue-Luvaka, na estrada de Maquela para S. Salvador; e Nsona-Bata  ,junto à fronteira, mas já em território belga .

Na vila da Damba também se realiza, duas vezes por semana, um mercado muito concorrido pela gente dos arredores e que tem a característica especial de funcionar num local especialmente preparado pela Administração, bem arborizado, cercado por uma sebe de buganvílias e onde alguns produtos são expostos à venda em bancadas de cimento e em pavilhões cobertos, simetricamente dispostos. Os indígenas, que antes realizavam o mercado segundo o padrão tradicional, aceitaram com todo o agrado a inovação.

Os mercados do Congo são os espectáculos mais coloridos, mais álacres e movimentados a que temos assistido em África .

Um observador atento tem neles material inesgotável para o estudo da população e da sua cultura. Ali acorrem homens e mulheres de todas as idades e condições, de perto e de longe, evoluídos e atrasados, comprando, vendendo, conversando ou passeando, vivendo, enfim, num ambiente próprio, num à-vontade absoluto e com autêntica naturalidade, uma das instituições mais características da sua cultura.

Ali se podem estudar os tipos físicos, as tatuagens, as mutilações étnicas, os adornos, os diversos vestuários, as formas de polidez e de cortesia, os sistemas de negócio, os produtos da agricultura, da colheita e das indústrias tradicionais, as modificações introduzidas pelo contacto em diversos aspectos da vida da gente do Congo e até, muitas vezes, as danças e as canções.

Quem ouvir de longe o ruído confuso do vozear de milhares de pessoas reunidas num mercado e, aproximando-se, deparar com a multidão compacta que enche por completo o vasto terreiro em que se realiza, pode ter a sensação de que tudo decorre sem organização e sem ordem. Mas se se misturar com os feirantes, se o for percorrendo com cuidado e atenção, indiferente ao penetrante odor composto de exalações dos corpos suados e do enjoativo cheiro da mandioca fermentada, cedo descobrirá que se enganou. Tudo está regulado, todos os produtos expostos à venda se agrupam por especialidades. Numa secção encontram-se os produtos agrícolas, onde dezenas de vendedoras, acocoradas no chão, oferecem a mandioca em raiz, com casca ou já fermentada, ou a sua farinha, o milho verde ou seco ainda na maçaroca, diversas variedades de feijão, molhos de folhas de couve galega ou de rama de mandioca, ervilha do Congo, pequenos tomates, quiabos, canas-de-açucar, batata doce e tantos outros.

Mais além agrupam-se os vendedores de carne de caça, fresca ou  seca, e de animais domésticos acabados de abater, sobretudo de porcos e cabras, não faltando os molhos de tripas ainda com restos da última digestão e que, mesmo assim, assadas nas brasas sem prévia lavagem, constituem um dos petiscos mais apreciados pela gente do Congo.

Perto, rapazes e mulheres expõem enfiadas de ratos assados, ainda com a pele e as vísceras, e grandes quantidades de gordas lagartas torradas ou grilos assados e peixes fumados enfiados em espetos de rama de palmeira. Mais além, montículos de sal e de jindungo sobre grandes folhas e cabaças ou garrafões de malavu de palmeira e de banvo de milho, cerveja gentílica, com os gargalos babados de espuma .

Um pouco à parte, fica a secção dos produtos da indústria tradicional; os ferreiros, em lugar de destaque, vendem as enxadas, os machados e as facas; ao lado, as mulheres expõem panelas de barro de diversos tamanhas, com ornatos geométricos feitos por incisão, cestos e peneiros de uma espécie de vime e bangos ou balaios de várias dimensões, confeccionados com tranças de caules finos e resistentes de uma gramínea e tão bem acabados que podem conter líquidos .

Homens ou rapazes vendem esteiras bem urdidas, apresentando algumas desenhos geométricos ou zoomórficos, e panos de mabela que foram comprar às terras do  Cuango .

Noutro local vendem-se as roupas e os produtos da indústria ocidental. É esta a secção em que predominam os prósperos comerciantes e os seus agentes. Alguns existem que movimentam por ano muitas centenas de milhares de escudos de mercadorias. Aqui se vendem casacos, calças, sobretudos, casacas, smokings, fardas berrantes e toda a casta de roupas usadas, idas da Europa e da América, e também calças, calções e camisas para homem ou quimonos para as mulheres, tudo obra dos alfaiates indígenas, e ainda tecidos de algodão pintados, de vivas cores e interessantes padrões. Não faltam também os cobertores de lã ou de algodão, as colchas, as carteiras, os cintos, os colares de missanga, os anéis de estanho, pratos, copos e outros utensílios de louça, vidro ou esmalte. Aparecem até, por vezes, fonógrafos e respectivos discos e, mais raramente, máquinas de costura de manivela. De tudo se vende e para tudo há compradores. Ainda há poucos meses um missionário da Damba me informou de que tinha encontrado à venda, numa das quitandas, alguns exemplares do Perfeito Secretário dos Namorados !

Como não podia deixar de ser, não faltam também géneros alimentares de consumo imediato, destinados a saciar o apetite despertado pelas longas caminhadas e pelo ar estimulante das frescas manhãs do Congo. Além das bananas, do amendoim torrado e da kikuanga11não faltam guisados de carne12 ou de peixe seco nadando em espesso molho de óleo de palma ou de amendoim, bem condimentado com sal e jidungo, e até frituras de uma mistura de peixe seco e farinha, à europeia, conservas em lata e café bem açucarado.

Tudo quanto dissemos dá uma pálida ideia da maravilhosa cena que um mercado representa ».

PROCESSO DE MUDANÇA NA ESTRUTURA DOS MERCADOS

Damba -Danças e cânticos

 

Anos mais tarde, quando já exercia as funções de administrador do concelho, vim a encontrar nos mercados tradicionais a inspiração para a solução de um problema que me preocupava.

Na Damba, a economia da população africana era do tipo agrícola, ultrapassando a fase de mera subsistência, pois havia pelo menos dois produtos já  com excedentes apreciáveis e que eram vendidos aos comerciantes europeus estabelecidos na sede do concelho e nas dos postos de Camatambo, 31 de Janeiro e Bungo Tratava-se do amendoim e do café. Para as populações residentes nas cercanias daquelas povoações, a venda dos produtos era fácil, mas para as dos sobados mais distantes era deveras penoso o seu transporte a dorso, muitas vezes por estreitas e mal andamosas veredas, apertadas entre altos capinzais, vencendo montes e vales e tendo de atravessar muitos cursos de água, quase sempre a vau, pois apenas nos rios mais largos e de mais fortes caudais haviam sido lançadas pontes pênseis, construídas com lianas.

A solução que encontrei foi a da adaptação dos mercados tradicionais à  evolução operada na produção agrícola, através da criação de mercados acessíveis a comerciantes europeus, em locais centrais das regiões mais povoadas, com maiores produções e situadas a maiores distâncias das povoações comerciais. Falei sobre esta iniciativa com os chefes tradicionais e com os comerciantes e todos a acolheram com agrado. Esses mercados, que funcionariam periodicarnente, nas épocas da colheita e preparação final dos géneros de maior interesse comercial, seriam fiscalizados pela autoridade administrativa, para se evitarem quaisquer abusos no tocante a pesos e preços.

As regiões produtoras mais distantes eram as do Mucaba, no posto de 31 de Janeiro, e as do Cusso e do Huando, ambas no posto sede do concelho. O Mucaba e o Cusso já eram servidos por carreteiras, em regular estado de conservação, mas o núcleo principal das aldeias do Huando ainda distava mais de três quilómetros da picada que servia quatro pequenas fazendas de cafeicultores europeus e outra de um razoável produtor africano.

Foi no decurso de diligências tendentes à criação do mercado desta última região que ocorreu o episódio que vou narrar.

Aproveitando a ida das autoridades tradicionais do Huando à sede do concelho e durante a conversa que com eles mantive, falei-lhes da conveniência que a sua gente teria se lá fosse criado um mercado. Logo manifestaram inteira concordância quanto aos benefícios que a concretização da ideia traria para os povos do Huando, mas também de pronto objectaram que de todo seria impossível a retirada do café e do amendoim vendidos no mercado, dada a inexistência de caminhos que permitissem trânsito de camionetas.

– Tendes razão, mas está nas vossas mãos a resolução do problema, disse-lhes eu, pensando em tarefas já levadas a cabo e tendentes a melhorar as condições de vida das populações e que tinham sido iniciadas a partir de sugestões ou conselhos meus. Não impunha procedimentos mas levava os chefes e os anciãos a decidirem por si. Falo nos anciãos porque eram eles, na verdade, quem tudo decidia, em regime de autêntica gerontocracia..

Esta minha actuação era como que uma antecipação do sistema que mais tarde foi sendo  posto em prática, na África e noutros continentes, sob a designação de desenvolvimento comunitário.

Trocadas rápidas palavras entre os circunstantes, logo o soba retorquiu:– Está bem, já estamos a ver onde o senhor administrador quer chegar. Nós vamos beber água e depois damos a resposta .

Ir beber água era, na linguagem corrente da região, trocar impressões tendentes à obtenção de um consenso na procura de solução de problema melindroso e de interesse colectivo.

Passado algum tempo, não mais do que um quarto de hora, foi o soba chamar-me ao meu gabinete, para, no pátio anexo à Administração do Concelho, continuarmos a conversa interrompida. Sentados uns e acocorados outros na sombra tutelar de frondosa mulemba, logo o soba Malungo me dá conta do veredicto:

“-Olhe, senhor administrador, estivemos a beber água, os nossos mais velhos e os sobetas13  todos falaram as suas maneiras e pensamos que nós e o senhor temos a mesma ideia. Para que o mercado se possa fazer, temos de abrir uma picada14. É trabalho que leva tempo, mas vamos chamar gente de todos os nossos povos e depressa chegaremos ao fim. Só lhe pedimos que mande um cipaio15 esperto para dirigir o trabalho do pessoal.”

Imediatamente combinei com o soba os pormenores do empreendimento, garantindo-lhe que em breve iria escolher o traçado da picada, e que levaria comigo o cipaio  encarregado de dirigir os trabalhos. Igualmente ficou assente que a Administração forneceria as ferramentas necessárias, bem como os géneros para alimentação do pessoal. Às povoações do sobado caberia o fornecimento da mão de obra .

Pouco tempo depois iniciaram-se os trabalhos, que decorreram com regularidade até à sua conclusão, e, na data aprazada, coincidente com o termo da preparação dos produtos a transaccionar, realizou-se o primeiro mercado, que teve pleno êxito, satisfazendo vendedores e compradores e excedendo até as previsões mais optimistas.

Nesse ano e no seguinte vários mercados se realizaram, tanto no Mucaba como no Huando, e os resultados obtidos permitiram o amadurecimento da ideia de que se justificaria a criação, em cada uma dessas regiões, de povoações comerciais. Sondados os respectivos sobas, sobetas e anciãos, bem como os comerciantes estabelecidos na área do concelho, todos acolheram com entusiasmo a iniciativa e imediatamente se encetaram as diligências burocráticas tendentes à sua concretização oficial, propondo-se para a primeira a designação da própria região, Mucaba, e para a segunda a de Lemboa, porque assim se chamava a aldeia à beira da qual se implantaria.

Logo que foi legalizada a sua criação, através de portarias do Governo Geral publicadas no Boletim Oficial, iniciou-se a implantação de arruamentos e dos talhões onde os comerciantes interessados construiriam os seus estabelecimentos, com residência anexa. De imediato começou a azáfama das construções e bem depressa abriram as primeiras lojas.

Por servir uma região mais populosa e com maior produção de café, a povoação do Mucaba mais rapidamente se desenvolveu e nela veio a ser instalada, pouco depois, a sede de um novo posto administrativo.

Mas o que há  a destacar de tudo quanto atrás fica dito, foi a pronta aceitação de uma iniciativa que traria ao grupo nítidas vantagens, mas para cuja concretização era necessário um real empenhamento da comunidade, traduzido em mobilização de mão-de-obra abundante e por um período bastante dilatado, dada a inexistência, naquela época, de meios mecânicos que suprissem ou reduzissem substancialmente a necessidade do emprego de trabalho braçal. A autoridade administrativa lançou a ideia e garantiu o apoio, mas foi o povo, através dos seus legítimos representantes, que tomou sobre si a parte mais gravosa da tarefa. E tudo foi decidido rapidamente, num curto recolhimento destinado, apenas, a … ir beber água .

 

 

 

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