Por Bruno Pastre Máximo
“Nós colocamos o Rei no trono para proteger o povo e ele não faz isto, então eu devo ir lutar contra ele”. Álvaro Buta. (334)
A revolta liderada por Álvaro Buta é muito complexa, e não pretendemos esgotála ou simplifica-las com as questões que vamos tratar. Nosso objetivo é somente demonstrar a importância do lugar do Ntotila dentro da revolta, considerando assim como o lugar dele possuía um grande poder dentre os kongo a ponto de motivar uma grande revolta.
A instalação do colonialismo português no final do século XIX alterou a dinâmica regional, principalmente com relação a questão da mão-de-obra e a cobrança de impostos. Esta presença foi sendo gradualmente implantada na região de São Salvador, e tem como marco o ano de 1896, com a chegada do já citado residente Heliodoro de Faria Leal. Ele se instalou na cidade para aplicar o colonialismo para os povos da região, isto significando para eles a cobrança de impostos, o recrutamento de carregadores e mão-de-obra para envio as ilhas produtoras de cacau de São Tomé. A pouca presença militar, e principalmente a relação amistosa dos portugueses com o Ntotila, fez com que as políticas fossem cumpridas – com negociação – pelas lideranças locais, que pagavam o imposto de cubata e cediam homens para trabalho. O Ntotila no período da revolta era Martins Kiditu, trabalhando como intermediário destas relações.
Esta situação de aparente tranquilidade foi alterada com a saída de Faria Leal para a chegada do administrador Paulo Moreira. Este desde o começo de sua atuação tratava os líderes locais de forma bastante violenta, cometendo assassinatos, queimando aldeias e incentivando estupros com a finalidade de impor o seu poder e conseguir o máximo de mão-de-obra disponível. Buta acusou o administrador de cumplicidade com assassinato e roubo:
(…) carregador de nome Mvemba, devido aos maus tratos que no caminho sofreu da parte do Snr. Santos, recebedor, fora morrer ao seu povo apenas chegou. Que ele Buta viéra depois ao Congo pedir o angariamento dos seus 54 carregadores sendo-lhe então respondido pelo Snr. Paulo que nada tinha a receber pelos carregadores, pois que éra serviço do Governo.(335)
A tese de Jelmer Vos é primorosa e refinada ao narrar os eventos que antecedem a revolta, marcadas por esta questão, mas também um declínio na atividade econômica regional com o fim do ciclo da borracha no Congo Belga. Segundo Vos, foram as demandas excessivas por parte do colonialismo que dispararam a revolta de Buta, “É razoavelmente seguro dizer que a revolta em São Salvador foi disparada por uma combinação de uma demanda excessiva de impostos e trabalho e a violência na qual ambos eram coletados.” Temos como fonte principal dois autos de testemunho realizados pelos missionários portugueses e ingleses nos dias 11 e 12 de dezembro de 1913 sobre uma fundação ocorrida entre os partidários de Buta e o administrador Paulo. Neste auto fica bastante claro as questões principais da revolta e qual o papel do Ntotila. Buta sintetiza o motivo da revolta:
[Buta] Diz que este levantamento dos povos é motivado pelos pedidos constantes de carregadores para Cabinda que o snr. Paulo e o rei lhes vinham azendo, e também porque tendo sahido o ano passado carregadores seus para Cabinda até esta data ainda não voltaram. Péde pois que mais carregadores nãosejam obrigados a ir para Cabinda ou S. Tomé podendo no entanto ir aqueles que por sua vontade quiserem. Diz que tudo isto é ordenado pelo rei, e que logo que os carregadores chegam aos muros este lhes diz que nada tem com o caso, e que vão apresentar-se ao Chefe.(337)
O Ntotila então aparece como responsável direto das ações ocorridas, aquele que ordena as mazelas do povo, a personificação do agente colonial. Segundo Vos, neste período não exista uma clara distinção entre o que era política colonial e do Ntotila, por exemplo, a arrecadação “(…) de impostos era sempre associada com o Rei do Kongo”
O Ntotila usou do seu poder para impor sua política, ao ponto de que o próprio Buta foi ameaçado diretamente pelo Ntotila. Ele se encontrava muito “(…) sentido com o rei porquanto tinha-o ameaçado a ele Buta, que é seu parente, e ao Afonso Nkongolo, que é o seu pae, com a prisão e deportação para o Ambrizete.
A revolta visava a destituição do Ntotila, que não cumpria sua missão de tratar o povo bem, protegendo-o das injustiças, um acerto de contas entre a elite kongo e o seu Ntotila. Vos observa uma importante continuidade deste movimento de luta contra a corrupção do Ntotila com movimentos de séculos anteriores.340 Segundo Buta, o objetivo era “(…) fazer guerra ao rei porque não os tratava bem, e além disso queria que os pertences do throno fossem entregues aos conselheiros na presença dos missionários afim de aqueles escolherem depois o rei que deve ficar.” Vos destaca o papel de Kiditu
Kiditu foi colocado no trono para terminar a corrupção do poder real sob reis anteriores, para governar com amor e ser um bom negociador em relação a Portugal. Estas tarefas mundanas estavam quase certamente enraizadas no papel do rei como um mediador dos poderes sobrenaturais. (…) era esperado do rei aplicar estes poderes obscuros para a proteção da ordem social. Mas Kiditu falhou em todas as frentes. São Salvador experimentou um período de
declínio econômico, a vida sob julgo colonial se tornou mais dura enquanto a coleta de imposto estava ligada ao recrutamento de trabalho e, o pior de tudo, Kiditu era tão corrupto quando seus predecessores.(342)
O envolvimento da administração portuguesa ocorreu quando Buta invadiu S. Salvador para guerrear contra o Ntotila, e este foi recebido a balas pelas forças portuguesas que mataram um dos seus homens. Neste dia Buta atacou a cidade, pilhando e queimando o bairro católico (incluindo o Lumbu), mas preservando as missões e a administração. As partes então decidiram realizar uma fundação para negociar. O Ntotila Kiditu foi deposto e fugiu na noite do dia 11, tendo a sua regalia sido depositada na missão católica. Uma trégua foi assinada entre o administrador português e os rebeldes, e as demandas foram enviadas para análise do governador do Congo, que acatou a maioria delas. Para a surpresa, no final de janeiro, com a chegada de novas tropas de Luanda, estes iniciaram uma série de prisões arbitrárias de protestantes com supostas ligações com os rebeldes, o que enfureceu Buta fazendo-o recusar a negociar com o governo.
Esta prisão dos catequistas batistas pelas autoridades portuguesas é vista por Vos como um elemento que explicita o papel destes na revolta. Segundo o autor, eles tiveram um papel proeminente na revolta:
Eles representavam uma classe jovem ascendente Kongo, de plebeus independentes. Este grupo viu a independência que ganharam como empregados no comércio da borracha e através de sua educação nas escolas missionárias, prejudicada pelas exigências cada vez mais opressivas do governo Português. Eles juntaram forças com os chefes rebeldes, na esperança de restabelecer a ordem política no Kongo. Plebeus e chefes podem ter conceituado esta ordem diferentemente. Plebeus talvez tenham desejado um retorno aos anos pré-1910 somente, quando o trabalho forçado ainda não era um problema no Kongo. Alguns dos chefes, no entanto, pareciam desejar uma a era pré-colonial, quando a sua autoridade sobre os dependentes masculinos e femininos, não importa quão delicada, ainda não era rivalizada por comerciantes europeus e missionários.(344)
A luta de Buta foi então reorientada para o conflito direto contra os portugueses visando expulsá-los. A cidade de Mbanza Kongo foi sitiada e atacada do dia 25 de janeiro de 1914 até 26 de fevereiro, destruindo a cidade quase inteiramente. A revolta foi combatida pelo governo de Angola que conseguiu derrotá-la. Do momento do estado de sítio de Mbanza Kongo possuímos um precioso mapa da cidade e dos ataques Considerando a revolta com relação ao Ntotila, fica bastante claro que ele não era somente simbólico-decorativo, mas visto e vivenciado pelos povos kongo da região como tendo um lugar importante de agente de intermediação entre o povo e os portugueses. O lugar do Ntotila deveria ser ocupado por alguém com capacidade, virtude e honra, sendo apto e responsável em lutar contra a opressão colonial.
O Ntotila permanecia neste momento como a figura de referência de governo, administração e justiça. O Ntotila configurava-se como uma instituição própria com restrições bastante claras sobre suas funções. Pensamos então, em considerar o Ntotila como um lugar, pois a sua existência estava vinculada diretamente com a sua presença em Mbanza Kongo, algo que era indissociável. A figura do Ntotila possui um lugar dentro da paisagem, pois ele é experimentado, vivenciado pelo povo que o relaciona com o poder de estar lá, de viver no palácio em Mbanza Kongo.
Os portugueses buscaram substituí-lo pela autoridade colonial, intento este que fracassou completamente, pois ao colocar Ntotila fantoches, gerou um sentimento de raiva e oposição de parte da população, que não aceitava reduzir a sacralidade e poder do Ntotila a um simples fantoche colonial. Podemos observar neste momento crucial a gênesis do movimento nacionalista kongo, em que buscavam através da valorização da tradição, e do Ntotila, a independência política. Os grupos que lutariam pela independência foram frutos diretos desta luta política de Buta, uma luta pela autonomia
do Ntotila.
O lugar do Ntotila permaneceu ativo e poderoso dentro da paisagem kongo, e fez com que parte destes revoltosos se consolidassem como uma elite política que lutaria contra o imperialismo português através da emancipação e empoderamento do seu elemento referencial de independência, governo, administração e justiça – Ntotila. Analisaremos melhor esta questão no próximo capítulo.
334 “We put the King on the throne to protect the people and as he does not do so I must go and fight him.”
BOWSKILL, J.A. An account of the WAR PALAVER between BUTA and his me non the one side and Sr
PAUL, Chefe de Posto, on the other. 11 de dezembro de 1913. p.13. Entrada no AHU: 12.00.00.999
335 AUTO (Referente a reunião entre Buta e o chefe do Posto. 11 de dezembro de 1913. p.4. Entrada no
AHU: 12.00.00.999.
337 AUTO (Referente a reunião entre Buta e o chefe do Posto. 11 de dezembro de 1913. p.13. Entrada no
AHU: 12.00.00.999.
342 VOS, Jelmer. The Kingdom of Kongo and its borderlands, 1880-1915. 2005. p. 247.
344 VOS, Jelmer. The Kingdom of Kongo and its borderlands, 1880-1915. 2005. p. 248.
Fonte: mbanzakongo.con
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