Por Luena Nascimento Nunes Pereira
Devemos agora descrever sucintamente como transcorre o óbito entre os Bakongo, tal como visto por mim em diversas ocasiões em Luanda. Deve-se levar em conta que o ritual vem sendo praticado na área urbana e diversos elementos foram adequados de um meio originariamente rural para um cotidiano bem diferente.
O óbito tem início com o anúncio do falecimento da pessoa, anúncio este que deve se estender inclusive para familiares que estejam em outras províncias, pois o ritual deve contar com a presença das pessoas mais velhas das diferentes linhagens que compõem a família do morto e que assumem um lugar de importância dentro do grupo de parentesco.
Dependendo da importância social do falecido – se for um mais-velho que esteja à frente de um grupo familiar – e das posses da família envolvida, o velório pode durar vários dias.
As famílias envolvidas – do lado materno e do lado paterno – devem se concentrar na casa do morto, lá ficando durante todo o período. Vizinhos, amigos e parentes mais distantes visitam a casa durante o dia e a noite, de modo a confortar os familiares, sendo que as mulheres, com freqüência, permanecem a maior parte do tempo e pernoitam no local.
Os familiares do falecido se organizam de forma a receber o público que acorre ao local, periodicamente tomando a palavra, num anúncio público, proferido em voz alta, para explicar às pessoas presentes quem era o falecido, de que morreu, como e quando será encaminhado o funeral. É escolhido um entre estes familiares, geralmente do lado paterno, o Yala Nku, que é uma espécie de porta-voz da família, que tem a tarefa de receber todos os visitantes na medida em que estes chegam. Uma panela ou um vaso é disponibilizado para contribuições, pois as duas famílias são responsáveis pelo sepultamento e pelo sustento de todos os visitantes e familiares que pernoitam no local.
As noites são sempre muito movimentadas, cheias de cânticos, louvores, orações. Verifica-se a presença de fiéis das igrejas freqüentadas pelo falecido e/ou por membros da sua família. Em diversos momentos, o Yala Nku toma a palavra para narrar o acontecido, apresentar as famílias envolvidas e explicar aos visitantes quais os procedimentos que estão sendo adotados para garantir a boa continuidade do óbito. Os visitantes, por sua vez, através da palavra de um mais-velho presente, respondem e agradecem a acolhida. A noite anterior ao funeral é a de maior movimentação, acompanhada de mais cânticos e danças e discursos que as noites anteriores.
O funeral é realizado alguns dias após o falecimento168. Uma grande cerimônia é organizada após o retorno do cemitério. Nesta hora é anunciada a data de um encontro, no qual os familiares resolverão os problemas pendentes relativos ao falecido.
Dias depois, ou até uma semana depois, as famílias do falecido tornam a se reunir, com a presença das famílias da viúva(o) e de seus filhos. Nesta reunião, são tratados os assuntos relativos ao morto e à sua descendência. Trata-se de uma das situações clássicas de resolução de “problemas familiares”, nos quais o recurso ao conhecimento tradicional, veiculado através de provérbios, parábolas e máximas é acionado.
São discutidos e encaminhados assuntos de dívidas, problemas sob responsabilidade do morto que não foram resolvidos, herança e questões “espirituais” envolvendo o morto e seus filhos. Neste momento, assuntos sobre feitiçaria (as hipóteses sobre as causas da morte do falecido devido à feitiçaria já teriam circulado à “boca pequena” durante todo o velório) podem emergir e serem resolvidos.
É somente a partir desta reunião que os familiares mais próximos do morto poderão “levantar”, ou seja, “despir o óbito”, e voltar à vida normal169.
A partir deste modelo, feito através de dados fornecidos por pessoas com quem conversei e pela minha observação em outros óbitos, vamos agora descrever o ritual escolhido para análise, que foi o óbito do tio materno da vizinha do meu guia. Foi este tio que a recebeu quando esta voltou, em meados dos anos 1980, de regresso do Congo.
Este óbito teve de especial o fato do falecido ter sido um pastor importante da igreja kimbanguista, a mais importante igreja messiânica em Angola, de origem congolesa, como já vimos. Neste óbito, portanto, a igreja teve uma participação mais efetiva, sobretudo no dia do funeral.
O óbito se passou na casa do falecido, no bairro do Cazenga, um dos musseques mais antigos de Luanda cuja composição étnica é bastante diversificada. Toda a rua em frente à casa foi tomada por pessoas que lá acorreram para pernoitar e ouvir a palavra dos mais velhos sobre a morte do pastor. Participei do velório apenas na última noite. As pessoas permaneceram toda a noite, conversando, cantando e rezando. Diversas esteiras foram estendidas no chão e muitas mulheres dormiam ali, cobertas por seus panos coloridos. Bancos eram trazidos das igrejas próximas e as casas da vizinhança procuravam apoiar oferecendo seus quintais e quartos para o pernoite dos visitantes. Os corais da igreja kimbanguista cantaram até as cinco horas da manhã. Durante este tempo, houve também muita conversa “mundana”, risos, encontros de conhecidos, parentes, notícias de amigos que vinham de outros bairros e de parentes acabados de chegar das províncias. Conversas sobre as causas e as “reais causas” da morte do falecido também circulavam.
Durante a noite não se distribuiu comida, apenas café. Contribuições eram depositadas numa panela, disponível desde o início do velório. As pessoas da família contribuem diretamente. Os amigos costumam oferecer o dinheiro a um dos parentes que, por sua vez, entregam o dinheiro aos mais velhos.
Se habitualmente é grande a participação de corais e a pregação dos pastores das diversas igrejas ligadas aos familiares envolvidos no óbito, o fato do falecido ter sido um pastor da igreja fez com que esta participação fosse bastante mais intensa. Sendo o óbito um ritual totalmente conduzido pela autoridade familiar, cada intervenção de pessoas, corais, pastores era controlada e a palavra era cerimoniosamente pedida e concedida. Desse modo, os “donos” do ritual estabeleceram os limites e os momentos de sua conveniência para a participação das igrejas, afirmando sua primazia e autoridade.
Mesmo assim, a sucessão de cânticos, louvores e pregações estendeu-se por toda a noite, pontuada pelos discursos dos chefes de família e por outros rituais e cânticos tradicionais, tais como a dança em volta da cama do falecido, que é posta para fora da casa, e sobre a qual se inclinavam a viúva, as filhas e outras parentas.
Na manhã do dia do funeral, a igreja kimbanguista teve seu ápice na participação da cerimônia, com seus fiéis comparecendo em peso e definindo o caráter do funeral. Os fiéis, que incluíam muitos familiares, eram identificados pelo uniforme da igreja, marcante pela cor verde. Um imenso toldo roxo protegia o caixão onde jazia o corpo do falecido, trazido naquela manhã da casa mortuária, cercado pelas parentas e fiéis da igreja. Um cortejo contínuo de mulheres passava em torno do féretro e, ao fundo da rua, a fanfarra da igreja tocava, acompanhando em diversos momentos os hinos religiosos.
O espaço da autoridade familiar se mantinha, porém mais restrito, do outro lado da rua, em torno da mesa sobre a qual jazia a panela que recebia os donativos. Era um espaço eminentemente masculino (em oposição ao cortejo em torno do caixão) que discretamente acolhia os parentes que chegavam para o funeral.
No quintal da casa do falecido, bem como em duas casas vizinhas, se cozinhava freneticamente. Após o enterro, todos deveriam retornar e participar de um grande banquete. Para a ida ao cemitério costumam-se alugar ou pedir emprestados às igrejas participantes caminhões abertos e o máximo de carros particulares possível para apoiar a todos que acorrem ao cemitério.
Durante o enterro foram feitos vários discursos e lidos um trecho da Bíblia e uma pequena biografia do falecido. Um parente fez um apelo ao espírito do falecido que, de onde estiver, possa vingar a pessoa que fez mal a ele, se a morte tiver sido causada por feitiço. A desconfiança ou acusação de feitiçaria não pode surgir publicamente até o funeral, embora possa ter corrido à “boca pequena”, como de fato ocorreu, durante o velório.
No retorno à casa do falecido, foi tomada mais uma vez a palavra e alguém, que não o Yala-nku, em nome dos convidados, relatou como transcorreu o acompanhamento do funeral. O Yala-nku recebeu a palavra e anunciou a data do Mbokino – o encontro familiar – convidando a todos os parentes, sobretudo os da família da viúva. Foi servida a comida, após a qual os convidados foram se dispersando, ficando na casa apenas os parentes mais próximos que, de luto, devem permanecer em resguardo até a reunião171.
Uma semana depois do funeral teve lugar o Mbokino, também na casa do falecido. Estavam presentes a família paterna (Kise) do falecido, cujo porta-voz era o condutor da reunião. Estavam também a família materna (Kanda) do falecido, a da esposa (e, conseqüentemente, dos filhos) e o Kise da esposa. Acompanharam também as famílias dos avós (Kinkaka) do falecido e da esposa.
A reunião familiar obedece à estrutura das reuniões familiares em geral – vista nos casamentos, nas resoluções de problemas familiares, etc. A família anfitriã (neste caso a família paterna do falecido) recebe as pessoas e fala em primeiro lugar. A cada problema exposto para debate a parte interpelada sai para fora da casa (para o quintal ou para a rua) para conversar entre si e voltam à reunião com uma resposta obtida por consenso. A cada resposta, a outra parte também se retira para decidir se concorda e aceita o exposto, configurando-se numa reunião longa, ritualizada e cheia de intervalos172.
No caso do óbito, a conversa se dá, basicamente, entre a(s) família(s) do falecido e a(s) da viúva. É o momento de tratar da herança deixada pelo falecido, como serão encaminhados os filhos e dependentes menores (não casados) e é quando a família da viúva expõe problemas e pendências existentes.
Sendo a viúva uma senhora de idade, lhe foi permitido tomar a palavra. Neste momento, ela expôs uma série de dificuldades enfrentadas dentro de casa, como casos de doença, desemprego, problemas espirituais, sobretudo o caso das filhas que não conseguiam manter seus casamentos.
Após esta exposição, os objetos pessoas do falecido foram inspecionados por suas famílias (Kanda e Kise). Reafirma-se assim o poder das linhagens materna e paterna que têm o direito de tomar os bens – móveis e imóveis – do morto podendo deixar pouco ou nada na posse da viúva e dos filhos que deveriam contar, para seu sustento, com o apoio da sua própria matrilinhagem. Todavia, indicando a tendência de reconhecimento do poder paterno, as famílias do falecido decidiram apropriar-se simbolicamente dos objetos do morto – a saber, uma lâmina de barbear, uma calça e uma camisa – demonstrando assim boa vontade para com a viúva e os filhos que deverão continuar na posse dos bens do falecido, para com eles garantir seu sustento.
A Kanda e o Kise do falecido aspergiram água pelos cômodos da casa, simbolizando a limpeza e a liberação da casa e da família da sombra do morto e de qualquer malefício ou perturbação que pudesse pairar com o espírito do falecido.
Seguiu-se então o ritual de limpeza da viúva. Foram trazidos um pano e um lenço novos, um chinelo e um sabonete. A viúva foi abençoada e liberada para sua nova vida de solteira. Ela deu uma volta em torno de um parente seu, o que simboliza o retorno da viúva à sua família. No entanto, ela foi entregue de volta à família do marido, indicando a permanência da aliança feita entre as duas famílias quando do casamento.
Depois, decidiu-se sobre a herança do falecido. Todos os bens ficaram em poder da esposa e seus filhos e o filho mais velho tornou-se o responsável pela condução de seus negócios (uma pequena moagem e um galpão).
A partir destas cerimônias, obrigatórias, as famílias tornaram a discutir os problemas colocados no início da reunião pela viúva, os problemas que acometiam sobretudo suas filhas. Começou daí um ambiente difícil, quando pesadas críticas foram feitas às filhas do falecido que teimavam em se casar fora da tradição e/ou com pessoas estranhas ao grupo (Bakongo) e permaneciam, após o fracasso do casamento, na casa do pai, depois de adultas e com seus filhos, o que é contra o costume. A família paterna do pai, que dirigia a reunião, argumentou que não era da sua alçada a resolução do problema dos filhos do falecido, posto que eles representam a Kinkaka (o clã avô) destes, sem poder de decisão. Pediuse então que a Kanda e o Kise dos filhos (respectivamente a Kanda da viúva e a Kanda do pai) procurassem resolver o problema.
Na saída destes dois grupos foi dada a palavra aos filhos do falecido. A filha mais velha então declarou estar sonhando com os tios, que sonhava deitar-se com eles, o que significa uma acusação de feitiçaria aos tios, irmãos do pai. Ela indicou os acusados, que estavam presentes no Mbokino. Seguidamente, outras filhas narraram seus problemas, de desemprego persistente, doenças inexplicáveis e casamentos instáveis.
As famílias retornaram a casa e a Kanda dos filhos relatou a acusação que a moça havia feito aos tios. A família paterna do falecido lamentou que tal assunto tivesse vindo à tona, avisando que estes problemas deveriam ser resolvidos em consenso. Acusou o falecido de que, por ser pastor, dificilmente consultava ou pedia ajuda às famílias para resolver os problemas, preferindo resolvê-los no âmbito da igreja. Esta postura de indiferença à família extensa teria ocasionado o acúmulo de problemas dentro da casa.
Foi lembrado também que quando morreu o primeiro marido da filha mais velha talvez não se tivesse feito a cerimônia de lavar a viúva – poderia estar havendo perseguição do espírito deste marido à esposa acossada. O Kise do falecido reclamava que a Kanda do mesmo tratara dos assuntos de forma irregular, sem falar com o Kise. Ele deveria ter chamado a Kanda dos filhos, seus próprios Kanda e Kise, para resolver os problemas de forma adequada.
A Kanda do falecido, por sua vez, argumentou que foram os filhos que erraram e que o marido da filha acusadora não era mukongo (ou não era uma pessoa ligada à tradição), que as filhas arranjavam maridos fora do grupo, e não apresentavam seus parceiros a toda a família. Houve também comentários paralelos de que um dos filhos do falecido não tinha ido ao óbito e teria saído da família.
Na saída seguinte, os acusados foram interrogados e negaram a acusação de serem feiticeiros. Um dos tios acusados, irmão do pai da mesma família materna, tomou a palavra argumentando que, por ser um pastor, seria incapaz de praticar feitiço. O outro acusado, um irmão do pai, mas de mãe diferente, não se manifestou. Desta discussão, saiu um sub-grupo que discutiu entre si, evidenciando a dificuldade do problema posto e as diferentes famílias implicadas, já que os acusados eram de diferentes Kanda, embora de mesmo Kise.
As famílias acusadas retornaram à reunião e negaram a acusação. Decidiram então por uma evo cação aos espíritos que ameaça publicamente o espírito do feiticeiro. Através de orações e imprecações, feitas pelo tio pastor acusado, foram feitas ameaças ao feiticeiro, acusado de atuar disfarçado com a imagem de inocentes. Anunciou-se que uma “pedra de 350 kg” subiria aos céus e cairia em breve na cabeça do feiticeiro. “Tudo o que é fechado na terra é fechado em cima” foi a frase utilizada para “encerrar” o assunto do feitiço. O chefe da família da viúva rezou com os filhos, abençoando-os, procurando “fechar os caminhos” aos maus espíritos.
Depois deste ápice dramático, a reunião voltou a sua atenção aos pequenos problemas deixados pelo falecido, como o de uma sobrinha que tinha desfeito o noivado, cujo ex-noivo reclamava parte dos bens que já tinham sido entregues. A reunião se encerrou, ao final de quase quatro horas de debate, e a família do falecido foi liberada para seguir sua vida cotidiana.
Estavam à espera, fora da casa, membros da igreja kimbanguista que, ao final da reunião, foram autorizados a entrar para rezar junto à viúva e seus familiares e abençoar a família enlutada.
Semanas depois, visitando o mais-velho que dirigira a reunião, soube que primogênito do falecido estava preso por ter sido encontrado molestando sexualmente uma filha ou sobrinha – que na linguagem da feitiçaria, significa que ele estava usando a criança para fazer feitiço. Isso foi considerado a prova de que, afinal, tinha sido ele o feiticeiro que utilizara a imagem dos tios para enfeitiçar a irmã (praticando incesto com ela).
Extrato de: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda” – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
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