Por Patrício Batsikama
1. Introdução
Começarei por tentar mostrar – documentalmente – a presença do independentista José Eduardo [dos Santos] na mira da PIDE/GDS e, no fim, fazer uma síntese dos documentos da realização da Assembleia Regional Extraordinária do MPLA em 1972 onde acho que os resultados [daquelas atividades] terão repercutido na sua indicação em 1979 como substituto possível de Dr. Agostinho Neto. Talvez com estes documentos, se pensa já na seguinte hipótese, que tentarei verificar: será a Assembleia Regional Extraordinária de 1972 algum “testamento virtual” que a memória reinventou a ponto de muitos jovens assim acreditarem.
Ao longo deste artigo tentarei mostrar a importância desta Assembleia, reunir as evidências que mostrassem como, paulatinamente, a figura de José Eduardo dos Santos aproximou-se a de Agostinho Neto na liderança do MPLA, e mais tarde do Governo onde ocupou as funções ministeriais estratégicos e de poder real.
Estudante de Minas em Baku
Tive acesso alguns documentos que encontrei nos arquivos da PIDE-DGS e Fundação Mário Soares: são listas nominais dos estudantes de Angola que se formavam nos países socialistas da Europa de Leste [e Cuba]. E a PIDE-DGS acompanhava-os.
No Doc.#1b [ver infra: página 29], a lista nominal dos estudantes perseguidos pela PIDE, encontra-se em quinta posição [e sublinhado] o nome de “DOS SANTOS, José Eduardo”, membro do MPLA e estudante em Bakou.
Importa chamar atenção sobre a maneira como os serviços secretos de Portugal colonial identificam-no neste documento: DOS SANTOS em maiúscula e José Eduardo em minúscula. Supõe-se que DOS SANTOS seja o apelido. José Eduardo é o primeiro nome [José sendo o nome de batismo].
Nos outros documentos da PIDE encontra-se também um outro militante do MPLA com nome de EDUARDO DOS SANTOS (veja o Anexo#2a; #2b), que é preciso não confundir com José Eduardo (veja o Doc. #5). O primeiro era médico, ao passo que o segundo é engenheiro em minas e formado em Bakou [as vezes com a grafia de Bacu: Doc.#4].
É muito provável que o nome completo do médico seja Eduardo Macedo dos Santos: neste caso Eduardo seria nome de batismo. De acordo com alguns dos seus companheiros, e a nossa modesta consulta arquivística prova-o, ele é chamado de Eduardo dos Santos. As vezes, Macedo aparece. Há quem diga que tinha também o nome de José Eduardo Macedo dos Santos, o que documentalmente ainda não encontrei, nas minhas humildes e limitadas buscas. Curioso ainda é ver que os veteranos de guerra que lá estiveram especificam que o nome de José é do atual presidente angolano. Em alguns discursos, o atual chefe de Estado chama-o Dr. Eduardo Macedo dos Santos.
O que está patente de forma clara é que José Eduardo – em todos documentos verificados por mim – é o engenheiro formado em Baku. Também, importa realçar que a partir de 1965, o médico Eduardo dos Santos tinha ficado fora do Comité Diretor do MPLA, por razões claramente conhecidas (A.F.M.S; Torre do Tombo: PIDE/DGS). De 1965 adiante José Eduardo ou Eduardo dos Santos é, de acordo com os arquivos consultados por mim e comparação que fiz com alguns depoimentos dos antigos combatentes, o atual presidente de Angola.
Nesta lista nominal encontrei nomes de alguns dirigentes ainda vivos e no ativo do MPLA.
A PIDE-DGS tem várias listas nominais dos independentistas angolanos onde figura o nome de José Eduardo dos Santos [nas suas variantes] classificados em diferentes caixas ora do MPLA, ora de Dr. Agostinho Neto. Mas dispõe também de apenas um pequeno ficheiro [caixa] reservado em José Eduardo dos Santos.
O arquivo da Fundação Mário Soares é interessante, e nele constam também documentos
com nome de José Eduardo assim como outros arquivos. Isso leva-nos a considerar alguns aspectos, que aliás, nos permitam perceber a importância dos documentos que aqui reproduzo.
Há dois aspectos que é preciso assinalar aqui para perceber este documento [Doc.#2]:
(i) Em Bakou havia vários estudantes, mas aqui é apenas destacado uma só pessoa. O presente documento consistia na Informação no. 54/21720-65/G.P.-3o do processo 110.00.30: o documento em si associa-se a um dossier individual (ofício 1544/66-RS-2a). Apenas líderes ou pessoas capazes de mobilizar multidão parecem ter ficheiros individuais com anexo de vários outros documentos de informações adicionais [ver: Docs #3; #4 e #5]. Prova disso é o Doc.#5 onde ainda são legíveis os nomes dos seguintes dirigentes: Daniel Júlio Chipenda, Maria Mambo Café, Augusto João Borges e José Eduardo.
(ii) Em 1966, ano que foi produzido este documento acima referido, Congo Kinsâsa e Congo Brazzaville [e Zâmbia em 1970/73] eram duas plataformas geoestratégicas mais próximo e de extrema importância na região que simbolizavam os poderes de Washington e de Moscovo [em disputa]. A figura de José Eduardo dos Santos já era conotado como um dos suspeitos capaz de dinamizar a guerrilha na Ia e IIa Região do MPLA. Os documentos anteriores e posteriores as atividades de 9-16 de Abril de 1972 apresentam as primeiras evidências [ver infra: capítulo III] e vários autores perceberam disso depois (Conceição, 1999; Malhazes, 2009; Shubin, 2008).
Escolhi estes documentos por dois motivos. Primeiro: o movimento independentista angolano é pormenorizadamente conhecido pela PIDE/DGS a partir das fontes bem verificadas. A origem, as habilitações literárias e influências políticas dos líderes foram as questões que foram cautelosamente estudadas pelos especialistas da PIDE/DGS. José Eduardo dos Santos termina a sua formação acadêmicas em Junho de 1968, e em Agosto/Setembro estará em Brazzaville, com patrocínio dos soviéticos. As relações Kinshasa/Lisboa precisavam desta valiosa informação por causa da afinidade ideológica americana. Segundo: o palco de Congo Brazzaville era, do ponto de vista geoestratégico, a conquista do comunismo na África centro-meridional que se completaria com Angola. O poder de Washington ainda desconhecia que Kremlin mapeava a guerra fria em África, com Angola especificamente (Stockwell, 1979; Sá, 2011; Shubin, 2008; Milhazes, 2009). A sua vez, MPLA tinha-se consciencializado de que: “Angola, [era] chave da Libertação da África Austral”.
Outros documentos que indicam a presença do independentista José Eduardo dos Santos noutros espaços não interessam tanto o meu limitado trabalho que preze no facto de que Congo Brazzaville ter-se-ia o seu “bastião” onde ele conquistou a conspicuidade perante os militantes quer para a elite partidária, quer para as massas quer para comunidade internacional. Será por isso que focarei a Assembleia de Dolisie em 9-16 de Abril de 1972.
Documento que segue [Doc.#4] faz parte do relatório de 18 de Março de 1970. Este documento interessa-nos por informar sobre a presença do independentista José Eduardo em Brazzaville no mês de Setembro de 1968. Quer dizer, logo depois de terminar os seus estudos acadêmicos em Junho de 1968.
Assembleia Extraodinária Regional de Dolisie em 1972
No arquivo da Fundação Mário Soares, na pasta n.o 04317.001.017 encontramos interessantes cartas em duas línguas [portuguesa e francesa] da autoria de diferentes militantes do MPLA. Elas abordam temas interessantes, como: racismo, tribalismo, divisões internas, etc. Destas preocupações, resultaria a Assembleia Extraordinária Regional.
Mas antes disso convinha recuar bocado no passado: no dia 1 de Abril de 1970, o presidente do Comité Diretor – Dr. Agostinho Neto – assinava a Ordem de Serviço 8/70, cujo teor foi o seguinte:
“São nomeados membros do Comité de Coordenação Político-Militar, criado pela Ordem de Serviço n.o 6/70, de 20 de Fevereiro de 1970, os seguintes membros efectivos do Comité Directo:
(1) Camarada IKO [Henriques Tales Carreira];
(2) Camarada Monimambo;
(3) Camarada Sango;
(4) Camarada Tchiweka [Lúcio Lara].
Lusaka, 01 de Abril
O Presidente do Comité Director
Dr. Agostinho Neto”.
Esta coordenação político-militar tinha, entre outras, a missão de mapear a capacidade humana existente, estimar as vontades e motivações locais assim como a disponibilidade logística e propor estratégia de lançar uma guerra com cobertura nacional sobre a Libertação de Angola.
A situação geográfica da Zâmbia e nos contextos econômicos de 1968-1973 não permitiu as autoridades daquele país arriscar algum embargo dos seus patrocinadores, nem lhes interessou perder boa vizinhança com os países que têm acesso ao mar. A titulo de exemplo, a Zâmbia sempre precisou do caminho de ferro de Benguela, e com isso evitar toda corte na parte do governo colonial português e dos E.U.A.
A Namíbia ainda era cedida primeiro a ONU e depois ao governo sul-africano cuja política não compactuava com os ideais do MPLA.
O Zaire de Mobutu – país com qual Angola partilha perto de 2600km de fronteira (Batsîkama, 2014c) – era o palco americano. Já nos tempos de Kasa-Vubu [1962] a instalação do MPLA foi diplomaticamente negada pelo concurso da FNLA.
Apenas Congo Brazzaville (Batsîkama, 2014c) tinha um regime de inclinação socialista. Lúcio Lara (Tchiwaka) e Henriques Teles Carreira (Iko Carreira) lançaram-se para Brazzaville,
depois desta Ordem de Serviço e outras imperativas da guerrilha, com propósito de radiografar e oxigenar as Ia e IIa Regiões do MPLA.
A Ia Região estava paralisada e a crise alastrava-se para a IIa Região: a revolução entrava em
perturbação por causa de várias razões e dos problemas mal resolvidos no passado. As cartas [em francês e português] dos militantes indicam claramente a indignação da Juventude angolana revolucionaria face a vários problemas: divisões, tribalismo, racismo, etc.
Mas esse problema, em 1972, não era alguma novidade. Dez anos antes, em Outubro de 1962, a liderança do MPLA estava em crise logo que começava as suas atividades nas regiões vizinhas. A reunião da elite do MPLA em Novembro de 1962 provaria isso. Fizeram presente nesta reunião: “Agostinho Neto, Mário de Andrade, Viriato Cruz, G. Viana, Matias Migueis, V. Lopes, Videira, C. Pestana, Graças Tavares, Manuel Lima, Eduardo dos Santos, Anibal Melo e Boavida”. Jean Michel MabekoTali, no seu denso trabalho de Doutoramento, fala com detalhes pertinentes sobre o MPLA perante à si próprio (MabekoTali,
2001).
Em Abril de 1972 realizou-se uma Assembleia Extraordinária do MPLA em Dolisie, no Congo Brazzaville, e nos documentos consultados por mim, encontrei o nome de José Eduardo como Presidente da Mesa e Agostinho Neto como vice-presidente da Mesa [ver o Doc.#7].
Ouvi algumas opiniões que se tratava de Macedo Eduardo dos Santos, o médico. Vários documentos consultados por mim mostram que este médico tinha de fato uma certa influência entre os militantes do MPLA. e entrou algumas vezes em pugilismo com o outro médico, Agostinho Neto. Além das suas claras divergências, importa salientar que MPLA sempre foi um partido de várias divergências paralelas onde as acepções divergentes eram reenquadradas [caso forem construtivas] na ideia principal do “Movimento amplo”.
Mas convém especificar que o José Eduardo que participou nesta Assembleia Extraordinária de 1972 era o engenheiro e não o médico. Três razões nos levam a confirmar isso: (i) documentos da PIDE indicam que Dr. Eduardo dos Santos estaria já fora da liderança [demitiu-se] desde 1965; (ii) testemunhos oculares consultados por mim especificam que o nome de José Eduardo era reservado ao engenheiro e não ao médico; (iii) de 1968 até 1975, Congo Brazzaville foi uma das regiões laborais do atual Chefe de Estado angolano, e os serviços secretos do colonialismo português – tal como indicam os arquivos nos dias de hoje – mostravam interesse de acompanhar as tensões.
De acordo com as informações que o governo colonial português teve acesso, a Assembleia
Extraordinária Regional de Dolisie foi convocada por, entre outras razões, rever o descontentamento de alguns militantes do MPLA face ao Comité Diretor e à liderança de Dr.Agostinho Neto.
Os anexos #1 [d, e, f] indicam as razões que levaram a realizar a Assembleia Extraordinária de Dolisie: (i) racismo; (ii) tribalismo; (iii) desmobilização dos guerrilheiros; (iv) falta de coesão e amizade [companheirismo]; (v) contra-revolução nas Ia e IIa Regiões.Se reunirmos a maior informação contida nos documentos patentes nos arquivos da PIDE/DGS e da Fundação Mário Soares, percebemos quatro pontos levados ao êxito:
(a) O Comité Diretor foi salvo das intempéries políticas e militares
(b) A unidade foi salva em nome da tolerância e disciplina partidária;
(c) O companheirismo poderia afastar índices de racismo e tribalismo;
(d) A formação dos militantes e guerrilheiros.
De acordo com o que se pode perceber na resolução destes problemas, a assembleia preferiu
não abafar a diversidade das acepções, mas insistiu na consolidação de uma liderança forte. Nasorientações finais, percebe-se da disciplina partidária [formação ideológica] e do contexto político da época. Foram optadas decisões draconianas – justificáveis na época – para alcançar os objetivos do MPLA nesta região [ver: Doc.#9].
Entre 1964-1968, a JMPLA sob égide de José Eduardo optou pela rentabilização dos militantes, através da formação, para melhor fazer face ao colonialismo português. Esse assunto está patente no documento final dessa Assembleia de Dolisie/1972. Por outro, a estratégia de resolver o conflito na base de um amplo diálogo onde todas as vozes emitissem as suas diferentes opiniões [o que requer formação]. Essa metodologia permitiu que se fizesse real radiografia dos problemas pertinentes que perigavam a guerrilha do MPLA naquelas regiões.
Durante sete dias sucessivos, a Assembleia reuniu uma média diária de 85 militantes. No total foram 108 delegados presentes. É preciso antes de tudo considerar dois fatos: (i) desmotivação dos guerrilheiros face as injustiças e paralisação da Ia Região; (ii) desencontro das acepções –facultado pela realidade regional onde se encontrava o MPLA rodeado das filosofias políticas anticomunistas – desconfortava o Comité Diretor. Com média de 85 militantes diários e durante uma semana, a Assembleia tornou-se num sucesso face a reunificação dos militantes face aos riscos da dissidências.
O perigo foi evitado, por ter disciplinarmente congregado as partes, embora não resolvido na raiz (Mabeko-Tali, 2001-I:276-279). Primeiro, porque era, na gestão humana, necessário que todas as vozes se exprimissem para melhor conhecer o problema. Segundo, para buscar solução na base das evidências e convergir o maior número possível dos constituintes nesta solução como forma de integrar as divergências. Mas tudo na base dos estatutos e disciplina partidários. É assim que interpretei – na primeira instância – os documentos consultados [desde a Assembleia em Dolisie/1972].
Reinterpretação dos Documentos
Ao assumir a presidência da Mesa da Assembleia, sendo Agostinho Neto o seu vice-presidente, o êxito desta Assembleia [evitar dissidência e prevenir separatismos] terá criado um aureolo em José Eduardo dos Santos, que viu [posteriormente] o seu nome mencionado na Comissão de Inquérito criada no fim das atividades.
Em 1972 as relações entre Agostinho Neto e os dirigentes da URSS não eram boas (Milhazes, 2009: 41). Em África, o MPLA encontrava sérios problemas internos que já sabemos quais eram. Ângelo Ferreira faz observar alguns no seu informe (Doc.#8). Havia, também, problemas externos: isolamento do MPLA face as cláusulas da ONU e da OUA com relação aos apoios logísticos e diplomáticos aos movimentos independentistas. Tiago Morreira Sá conta-nos uma história onde o Keneth Kaunda intervém a favor de Jonas Savimbi junto do presidente americano Gerald Ford, ao detrimento do MPLA de Agostinho Neto (Sá. 2011).
Desta feita, José Eduardo dos Santos na presidência da Mesa da Assembleia pode parecer
uma estratégia de aproximar as partes descontentes. Ainda assim, tudo dependeria da capacidade e competência dos integrantes desta mesa de Assembleia. Talvez seja a partir deste exercício que a URSS tenha começado a esperançar nele (Conceição, 1999: 153), entre vários outros dirigentes treinados de acordo com a ideologia socialista. Este apoio tornar-se-á claro, nos apoios recebidos em 1974 a Brazzaville transitando a partir de Dar-Ès-Salam. Mas quando assumirá a presidência de Angola, ele incluirá no seu programa e de forma paulatina os E.U.A., tal como o seu antecessor já tinha começado.
Com relação as consequências pós-Assembleia de Dolisie/1972, a figura de José Eduardo [dos Santos] foi aproximada não só do Comité Director com alguma consideração, mas e sobretudo associavam-se a figura de Agostinho Neto com a do jovem José Eduardo na liderança do MPLA, quer para os participantes de Dolisie, quer para os integrantes de outras regiões político-militares.
Com relação aos líderes da JMPLA [Daniel Júlio Chipenda, por exemplo], José Eduardo era considerado como obediente/moderado, atencioso/discreto e tecnicista/calculista nas questões politicas e de conflitos.
Nas conclusões da Assembleia de Dolisie, a ossatura solucionadora do conflito interno se apresenta desta forma:
(1) “A acusação não tem fundamento”. Na filosofia sobre a resolução dos conflitos,desmentir as acusações em comum acordo, logo no princípio, indica a vontade de salvar o conjunto. É a impressão que se tem aqui sobretudo quando a alínea(b) do ponto 1, recomenda um contacto direto entre a massa e o Presidente do Movimento.
(2) Os pontos 3 e 4 das conclusões desta Assembleia de Dolisie traça uma estratégia de engrossar a fileiras do MPLA com proposta de bolsa de estudos: muitos, ao ingressar, pensavam beneficiar de alguma bolsa de estudo no Estrangeiro.
(3) Os pontos 5o, 7o, 8o evitam estrategicamente os possíveis separatismos, lembrando aos intelectuais e mestiços que devem participar efetivamente em frente do combate. Estes pontos, também, pretendem resolver o problema de descriminação de classes sociais a partir do Ensino básico.
(4) O ponto 6o salvou Agostinho Neto como presidente: este líder explicou-se perante as acusações de exclusão. E a Mesa da Assembleia concluiu que as explicações foram satisfatórias.
Comparar as acusações [a partir de algumas cartas e de testemunhos oculares] com estas
conclusões – sem esquecer-se da participação massiva dos militantes nessa Assembleia – leva a construir uma hipótese segundo a qual a competência da Mesa da Assembleia terá partido de uma Autoridade moral ou econômica ou política ou ainda acadêmica perante a massa. Face as acusações diretas ao Dr. Agostinho Neto (que foi vice-presente da Mesa), talvez José Eduardo representasse essa autoridade.
Mas, de facto, que autoridade teria ele? Moral ou econômica? Política ou acadêmica? No mesmo documento, José Eduardo consta na lista da Comissão de Inquérito. Daí, talvez tenha essa autoridade moral. Pela sua formação e onde se formou [Baku/URSS], duas autoridades aqui estariam associadas: acadêmica e política. Com a presença de Agostinho Neto na mesa, acho muito provável que este conjunto dos traços do poder (autoridade moral, acadêmica e política) na pessoa do Presidente da Mesa seria a razão do êxito dessa Assembleia Regional Extraordinária de Dolisie/1972.
Testamento virtual de Agostinho Neto
Partindo de hipótese que se deva existir um “testemunho” para legitimar José Eduardo dos Santos para suceder ao poder em 1979, é antes de tudo interessante verificar dois aspectos:
(a) Comparação entre a elite do MPLA presente naquela Assembleia Extraordinária Regional em 1972 e a elite do Comité Central do MPLA que elegeu em 1979;
(b) Relação institucional, em 1975/1979, entre a Presidência da república e as pastas ministeriais ocupadas por José Eduardo dos Santos, por um lado. Por outro, o nível de
confiança – a título pessoal – entre os dois no mesmo período (1975-1979).
Comparação da Elite em duas rupturas históricas
O quadro a seguir mostra-nos duas realidades produzidas em dois tempos diferentes e nos
contextos diferentes.
Elite na Assembleia Dolisie: 1972
Política – Agostinho/Neto – Tchiwaka (Lúcio Lara) – Nvunda
Militar – Iko Carreira;- Pedalé -Nzaji, – Pedro Sebastião
Sóciocultura – Eurico -André Capita
Elite na Assembleia do Povo: 1979
Política - Lucio Lara – Nvunda
Militar – Pedalé -Iko Carreira- Pedro Sebastião
Nota-se aqui que perto de 66% da elite política, sociocultural e militar que esteve presente na Assembleia Extraordinária de Dolisie em 1972 fez parte, também, do Comité Central e a Assembleia do Povo em 1979 que elegeram José Eduardo dos Santos como presidente do MPLA-PT. É compreensível que a Assembleia Extraordinária Regional em 1972 tenha exercido uma certa influência nos órgãos eleitorais do MPLA/Governo em 1979. Mas não limitar-se-ia por aí.
Curioso ainda é que uma percentagem considerável dos antigos estudantes da antiga URSS participe, como membros do Comité Central, nas eleições partidárias em 10 de Setembro de 1979.
Ao reunir essas informações pensa-se aqui passar a ideia de que a sua eleição como presidente do MPLA-PT – que lhe deu acesso a Presidência da RPA no dia 21 de Setembro de 1979 – parece-nos explicada pela anatomia social dos seus eleitores [oriundos de Dolisie, ou de Brazzaville ou ainda da URSS].
Relaçâo instituicional entre Presidência e pastas ministerias
O ministério das Relações Exteriores de qualquer país é a sua carta de visita nas arenas
internacionais de decisão. É um pelouro ministerial do poder (poder financeiro, poder
acadêmico/tecnocrático e de prestigio) e requer confidência da Presidência por, entre outras, três razões: (i) segredo do Estado; (ii) lealdade do emissário; (iii) instrumento para mecanizar a
geoestratégia do país em termo de relações bilaterais.
Antes da independência de Angola, José Eduardo dos Santos era o coordenador do Departamento das Relações Exteriores e assumiu as funções ministeriais nos dois primeiros anos da RPA (1975-1976). O reconhecimento de Angola para OUA e ONU [durante o seu mandato] levou o Governo do MPLA em colocar, à disposição deste jovem engenheiro das minas, todo capital humano (Paulo Jorge, por exemplo, auxiliando) e livre-trânsito para alcançar vários espaços diplomáticos africanos, asiáticas, americanas e europeias.
Com a ausência física de Agostinho Neto, Angola precisava de alcançar dois grandes objectivos: (i) consolidar as instituições da sua soberania e proteger as suas fronteiras; (ii) garantir a sua independência (política, econômica, cultural…) libertando a África meridional da opressão colonialista para manter boas relações de vizinhança. Em ambos os casos, precisava-se de outra figura já conhecida no mapa diplomático: o perfil de José Eduardo dos Santos – homem de confidência de Agostinho Neto – terá sido a carta que mais convenceu a maioria quer para fazer face as brisas imperialistas americanas, quer para reconquistar a amizade junto da URSS.
***
Do ponto de vista do historiador, ainda é difícil localizar este “testamento” enquanto papel/documento que terá deixado o primeiro presidente de Angola para o seu sucessor. Além do MPLA-PT ter as suas regras de sucessão nitidamente diferentes, acho pouco provável que tal documento tenha existido e, caso na verdade tenha existido, deve ainda estar guardado num cofre a mil chaves.
Mas pode admitir-se um certo testamento virtual: a aproximação de dois líderes debitaria de
forma clara em 1972. Em 1974 a URSS apoia o MPLA através de Brazzaville e José Eduardo dos Santos que lá trabalha será eleito Coordenador das Relações Exteriores, com o apoio de Agostinho Neto. Entre 1975-1976 é ministro das Relações Exteriores. No Io Congresso do MPLA em 1977, ele é reeleito Secretário do Bureau Político para Educação, Cultura e Desportos. Perante estes factos, a memória colectiva ou individual tem as suas formas peculiar de registar os factos.
De acordo com Pierre Nora e partindo das nossas análises sobre a História de Angola, a memória sobre os acontecimentos antropomorfiza-se de duas formas: ora apropria-se dos múltiplos espaços onde os factos são consumados; ora expropria-se dos múltiplos agentes que produzem os factos. Nos dois casos, ela dinamiza-se continuamente. Ora a institucionalização desta memória já codificada prende-se nas ferramentas de legitimidade. No caso específico que nos concerne aqui, o testamento indica uma ferramenta de legitimidade urbana [da modernidade] angolana: no passamento físico de detentor do poder, o sucessor é aceite na prova de alguma evidência material.
Assim é, na minha opinião, o caso do testamento virtual que levou os membros do Comité Central a eleger José Eduardo dos Santos em Setembro de 1979, para o cargo de presidente do MPLA-PT. Pode se formular uma tese complementar, partindo da fundamentação do poder. Isto é, só é eleito aquele cujos eleitores reconhecem nele reunir os traços do poder. Ora, Max Weber (1864-1920) e Robert Dahl (1957-) acham que:
“O poder é uma relação entre um qualquer A e um qualquer B, na qual A induz B a agir de um modo que B não faria, senão fosse por acção de A. Diz-se então A dispõe ou exerce algum poder sobre B. O poder é uma relação entre actores. Desta forma, o poder que o actor A possui sobre o actor B depende, então, como uma relação desigual, que permite a um actor obrigar outro a praticar uma acção que este não realizaria sem a intervenção do primeiro”.(Barracho, 2008:18).
As características do poder são:
(a) Autoridade: A autoridade moral ou carismática, precisa-se que ela seja legitimada pelas normas da colectividade.(b) Prestígio: notoriedade, capital social e cultural que o distinguem da massa populacional.
(c) Domínio: know-how, tecnicidade, capacidade em resolver ou lidar com os problemas que a massa busca solução.
Desta feita, eis os traços da personalidade, que José Eduardo dos Santos trazia com ele na
véspera das eleições partidárias em 1979:
(a) Membro do Bureau Político MPLA: capital social/cultural
(b) Membro do Comité Central do MPLA: capital político/acadêmico
(c) Ex-Ministro das Relações Exteriores: capital tecnicista/know-how
(d) Preferido dos Russos: formado em Baku e foi responsável de ajuda logística e militar dos Russo no Congo Brazzaville, na Tanzânia e mesmo em Luanda [em 1974/1975] (SCCIA, infor.#47; Shubin, 2008; Conceição, 1999; Malhazes, 2009)
(e) Elemento convergente das tradicionais divergências do MPLA: pela seriedade administrativa e gestão humana (arquivos da PIDE-DGS; AFMS).
Com estes traços do poder, ele era o favorito.
Conclusão.
Interessante para nós aqui foi sistematizar estes dados – por demasiado hipotéticos que
apareçam – para ver como as fontes [e o método para a sua análise] se comportam por si. A
Assembleia de Dolisie/1972, o contexto histórico em 1979 e os traços de poder que José Eduardo dos Santos traziam em Setembro de 1979 elucidam a sua preferência na substituição de Dr. Agostinho Neto no MPLA-PT, e consequentemente como presidente da República Popular de Angola. Pensamos ser este cenário que, nas dinâmicas da memória/história, metamorfosear-se-ia num suposto testamento legitimador que terá deixado o primeiro presidente de Angola.
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