Os Bakongo em Luanda: – “Línguas, espaços e multietnicidade”

Por Luena Nascimento Nunes Pereira(*)

No mercado também é possível percebemos um pouco da dinâmica das línguas faladas. A língua preferida dos mercados e do bairro do Palanca é, sem dúvida, o lingala, compreendida por quase todos, independente de idade e do sexo. As mulheres mais velhas gostam também de se comunicar em kikongo, sua língua materna, e as jovens são muito fluentes também em português. Não foram raras as vezes em que vi mães falaram com seus filhos em lingala e eles responderem em português, ambos se entendendo perfeitamente. O mercado do Imbondeiro, sendo localizado próximo à estrada do Sanatório, tem presença predominante dos regressados do Zaire e também de zairenses. Noutros mercados no Palanca que envolvem, por exemplo, muitas mulheres do sul do país e de Luanda, se fala mais português (e encontramos menor oferta de produtos tipicamente bakongo, como a kizaca e a mbika, por exemplo).
Além dos mercados, outra forma de perceber a composição complexa da população do Palanca é visitando as igrejas. Também aqui é preciso prestar atenção em quais igrejas e onde os templos estão localizados. Apesar de tratar das igrejas a partir do terceiro capítulo, aqui chamo atenção apenas para a existência de igrejas com freqüência maior dos Bakongo regressados, como a igreja batista e a kimbanguista, bem como as diversas igrejas pentecostais vindas do Congo.

É fácil perceber qual o tipo de freqüência das igrejas do ponto de vista da região de origem pela observação das pessoas, suas roupas e modos, e pelas línguas faladas durante o culto. As línguas faladas e escolhidas para celebração também indicam se há intenção das lideranças das igrejas de abrigar uma composição étnico-regional mais abrangente, ou se a igreja se volta prioritariamente para a população Bakongo, fazendo as orações e pregações em kikongo e em lingala. Outra boa estratégia é visitar as igrejas católicas. Embora o português seja a língua quase obrigatória na liturgia e nos sermões, se prestarmos atenção aos cânticos, percebemos que eles são cantados nas diversas línguas da audiência presente.

O catolicismo é a religião dominante em Angola com uma distribuição étnico-regional mais ou menos uniforme: cerca de dois terços da população cristã são católicos e o cristianismo é majoritário em Angola, com mais de 80% da população. Entre os Bakongo, como veremos, o cristianismo tem uma adesão ainda mais vigorosa, aproximando-se dos 100%, embora o catolicismo, neste meio, passe de pouco mais da metade (Henderson, 1990: 138). Sendo assim, visitar as missas católicas nos fornece dados para percebermos a composição étnica do bairro ou de seus setores, pois a missa atrai a todos os grupos. Daí a percepção de uma grande participação Ovimbundu na parte do bairro mais próxima ao Bairro Golfe e de população luandense/Ambundu mais próxima ao Bairro Popular (há três igrejas católicas no bairro do Palanca).

O Palanca, apesar da evidente predominância de população bakongo (em torno de estimados 80% segundo algumas ONGs que atuam no bairro), abriga em seu seio grupos de outras origens étnicas. Isto significa que as relações a serem observadas dentro do bairro têm que levar este aspecto em consideração, ou seja, se trata da observação de uma população Bakongo/regressada em evidente contato com outras populações dentro de um bairro denominado outrora de “República do Palanca”, pelo alto número de organizações, associações e igrejas que pareciam fazer do bairro uma pequena sociedade autosuficiente, com uma cultura própria, e destacada do resto da cidade (Lukombo, 1997).

Parecia, na época da minha primeira visita ao bairro (1998), que deveria pensar numa comunidade que estabelecia relações para fora, com a sociedade luandense da forma “nós-eles” e para dentro, como uma comunidade étnica relativamente homogênea. Na realidade, as relações observadas dentro do bairro já traduzem um pouco da complexidade multiétnica na qual outras formas de sociabilidade e solidariedade ultrapassam a categorização étnica75. Os laços de vizinhança, por exemplo, vêm se revelando bastante fortes, ultrapassando muitas vezes em importância os laços de parentesco. A ajuda mútua, fundamental no cotidiano, se dá com mais freqüência entre vizinhos do que entre parentes.

De fato, a forma de ocupação no bairro segue, como em outros bairros, uma lógica na qual parente puxa parente, ou seja, há uma tendência de parentes morarem perto, construindo suas casas próximas uns dos outros (Ladeiro Monteiro, 1973: 97). Um mesmo quintal pode abrigar duas ou três casas nas quais moram famílias aparentadas, reproduzindo, por vezes, a forma de moradia prevalecente na área rural. Todavia, esta caracterização inicial veio se transformando. Primeiro pelo próprio crescimento do bairro, que não permitiu que todos os parentes vivessem próximos. A regularização da ocupação do terreno pelo governo e a concomitante desregulamentação econômica foi aos poucos tornando o bairro objeto de especulação imobiliária, empurrando famílias mais pobres para bairros mais distantes. Foi se tornando cada vez mais difícil a ocupação informal, da forma livre feita nos primeiros anos da década de 1980, principalmente considerando que este bairro localiza-se numa periferia bem próxima do centro. Outro motivo de espalhamento dos parentes para outros bairros é o casamento. As jovens famílias saem de perto das suas famílias de origem na medida em que conseguem construir suas casas em outras partes do bairro ou em outros bairros.

Sendo assim, percebemos que uma rede de relações parentais pode se estender por toda a capital. A rede de parentes que consegui acompanhar, entre as famílias do Palanca com quem convivi, se estendia para os bairros do Cazenga, Hoji A Henda, Petroangol, Mabor, Golfe, Sapu, Congoleses (Terra Nova), Rocha Pinto, todos bairros com predomínio ou grande número de Bakongo/regressados, e também para bairros como Samba, Xicala (também na orla de Luanda) e os bairros do centro de Luanda, além do Bairro Popular.

Se a rede de parentesco se estende por toda a cidade, conseqüentemente, a possibilidade de auxílio cotidiano entre parentes vivendo em bairros distintos e distantes diminui. Daí cresce em importância os laços de vizinhança e a ajuda mútua dentro das comunidades de fé, ou seja, as comunidades organizadas das igrejas que, por sua vez, também convergem com os laços de vizinhança.

A ajuda na doença, a contribuição para a compra de um remédio, o emprestar dois quilos de fuba para o almoço do dia, a ajuda na fila da água, o cuidar das crianças enquanto a amiga vai a um encontro na igreja, olhar a barraca da vizinha ou mesmo a cotização para a compra de produtos para revenda são exemplos de ajuda entre vizinhas, que se podem se tornar ainda mais fortes no caso de também serem freqüentadoras de uma mesma igreja.

Por outro lado, o espalhamento dos parentes pelos diversos bairros aumenta também a rede de relações, a circulação de pessoas e, potencialmente, a rede de alianças. Os parentes espalhados por diversos países – Congo, Angola, África do Sul, países da Europa, Brasil, etc – ajudaram na montagem da rede comercial nos primeiros anos de retorno. Mas ressalto aqui o enfraquecimento da ajuda trocada no cotidiano familiar.

Falar em relações interétnicas é falar também em casamentos interétnicos. Um tema interessante quando se supõe que a endogamia é um traço fundamental na construção da identidade e da reprodução de um grupo organizado com relação a uma origem e uma cultura comum. Diria que parece ser mais fácil (ou mais visível) a entrada de mulheres de fora no grupo do que a saída de mulheres bakongo para fora do grupo. “O homem puxa”, diziam os jovens do bairro com quem conversei informalmente sobre namoros e casamento e, claro, olhando do ponto de vista interno ao grupo, não vemos as pessoas que saíram e pouco ouvi falarem sobre elas, apesar de imaginar que possa haver vantagens não desprezíveis sobre a rede de alianças para fora do grupo. Apesar disso, não obtive outras informações sobre estas mulheres.

É interessante notar, entre os casamentos interétnicos, um bom número de casamentos entre homens bakongo e mulheres ovimbundu. Não pude obter dados mais afinados desta realidade, não pesquisei junto a cartórios e, talvez, nem fosse possível, a partir dos dados oficiais, aferir os casamentos interétnicos. Segundo os próprios casais que entrevistei, os Ovimbundu teriam costumes parecidos com os Bakongo, como a organização familiar, a importância dada ao casamento e aos preceitos necessários ao matrimônio (existência do dote e contraprestações entre famílias, que vamos discutir mais adiante). Seriam assim, segundo informantes, “culturas mais próximas entre si” do que entre os Ambundo de Luanda.

Outro espaço importante de relações interétnicas e, mais que isso, de socialização do grupo Bakongo no contexto mais amplo, transétnico, é o da escola. Há, no Palanca, escolas públicas e privadas, estas mantidas por ONGs, igrejas e por iniciativa de particulares mas, em todas, o português é a língua única de ensino. Não tive qualquer informação de escolas bilíngües em Luanda ou Angola, para além daquelas escolas estrangeiras, como a escola francesa. Sendo assim, a escola promove um nivelamento entre os alunos que não encontramos paralelo em outros espaços como igrejas, por exemplo. É a escola o principal disseminador do português entre as crianças, independente da iniciativa dos pais de reforçar este processo através da língua falada em casa ou de promover o uso das línguas maternas, seja na igreja, seja no convívio familiar.

Segundo dados do INE (Instituto Nacional de Estatística) de 1998 (apud UNICEF, 2001: 23) mais de 25% dos angolanos tem o português como sua língua materna76. Isto faz do português a segunda língua materna de Angola, atrás do umbundo (língua materna dos Ovimbundu, grupo majoritário em Angola, com cerca de 40% de falantes). A mesma pesquisa revela que os falantes de kikongo somam 8,5%, sendo que a população de origem bakongo abrange, historicamente, 12% da população angolana (Redinha, 1971: 13). Se a população bakongo não diminuiu proporcionalmente ao resto da população angolana, seria caso de pensar que a identificação de origem étnico-regional não passa apenas pela fluência na língua materna. Isso é ainda mais importante se considerarmos a enorme parte da população angolana – majoritariamente jovem – que não conhece outra língua que não o português e que não necessariamente poderíamos classificá-la como “sem pertencimento étnico”, visto que outros elementos como origem dos pais, local de nascimento, pertença cultural, auto-atribuição são outros critérios de identificação étnica.

No caso dos Bakongo, me parece pertinente supor que a relativa perda da fluência em kikongo se deve, em primeiro lugar, à sua substituição pelo lingala, durante o longo exílio dos angolanos no Congo, e a continuação do uso do lingala no retorno a Angola como língua de grupo no contexto da inserção em Luanda (L. Pereira, 1999). O aprendizado do português pela camada mais jovem parece, atualmente, ser o fator determinante para o relativo esquecimento do kikongo.

O fator lingüístico, embora muito comentado e discutido pelos meios de comunicação angolanos tem sido muito pouco tratado em políticas públicas de promoção, ensino e pesquisa destas línguas. As pesquisas (inclusive a citada, da Unicef, elaborada num levantamento de dados para outros fins) não têm o aprofundamento necessário para um diagnóstico mais claro da dinâmica das línguas em Angola.
Penso que há muitos outros aspectos a serem levados em consideração, sobretudo a partir do fim da guerra, quando é possível às pessoas voltarem às suas áreas de origem, ainda que por um período do ano, restabelecendo um trânsito entre os meios urbano e rural, que tem sido, até agora, feito numa só direção. O maior trânsito entre os espaços urbano e rural poderá conferir uma nova dinâmica às línguas maternas, revitalizando-as e relativizando o uso exclusivo que tem sido feito da língua portuguesa77.
No caso do kikongo, há ainda que apontar para uma revivescência da língua, empreendida por parte das elites bakongo, cientes da secundarização do kikongo em prol do lingala e do português (Pereira, 1999: 117). Esta revivescência se percebe em algumas igrejas e nas reuniões familiares, lugares fundamentais de exercício da língua materna e do conhecimento por ela veiculado, como veremos no quarto capítulo.

 

 

(75) Há que se tomar em consideração também a própria composição do grupo bakongo no Palanca, em relação às diferentes levas que chegaram à cidade. Há uma nítida diferenciação entre aqueles chegados nos primeiros anos da independência, com seus filhos nascidos em Luanda, dos chegados mais recentemente do Congo. São trajetórias de vida bastante distintas espelhadas por formas também distintas de inserção na sociedade luandense.

(76) – O português é falado ou compreendido por estimados 75%, ou mais, da população angolana.

(77) – Como a pesquisa de campo foi concluída em 2001, não pude averiguar estes movimentos populacionais no atual tempo de paz e este impacto nas línguas maternas. Isso pode ser tema para uma próxima investigação.

 

(*) – Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

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