Os Bakongo em Luanda: Parentesco, Vizinhança e Sociabilidade

Bakongo no bairro Palanca. Imagem de Rede de Angola

Por Luena Nascimento Nunes Pereira(*)

Da “Baixa” ao Palanca

Rua do Casuno n.º 5, apartamento 11. A residência da antropóloga ficava nesta antiga rua, na subida da Cidade Alta, que abriga o Palácio do Governo e mais um conjunto de prédios coloniais remanescentes dos primeiros séculos da ocupação de Luanda. Nesta época, a Cidade Alta, sede do poder eclesial e temporal, vigiava distante a chamada “baixa”, área mundana do comércio e do porto, dos colonos, traficantes e seus escravos, dos grandes armazéns e sobrados de imensos terreiros e porões, que guardavam os produtos inertes bem como as “peças” a serem embarcadas e revendidas para além do Atlântico.

Hoje, a Cidade Alta já não é mais o abrigo do poder, que se exerce no longínquo Futungo de Belas, distante bairro na saída de Luanda para o sul, onde se instalou o complexo residencial e administrativo da presidência da República. O Palácio do Governo, prédio emblemático, hoje abriga algumas atividades do governo, como encontros cerimoniais e poucas reuniões. O casario colonial desta área foi em grande parte demolido pela acelerada urbanização nas últimas décadas da colonização e pela degradação dos imóveis, conseqüência da ocupação desordenada nos anos posteriores à independência. Agravou e ditou a decadência o pouco caso com a preservação histórica, tanto no tempo colonial como depois. Todavia, a Cidade Alta tem sido ultimamente reocupada pelo poder, desalojando um grande número de famílias ali residentes para a criação de um cinturão de segurança em torno do palácio, transformando várias casas em residência de militares.

É assim, de um pequeno, porém bem equipado apartamento, num dos poucos prédios da Cidade Alta, que esta antropóloga parte para o trabalho de campo cotidiano no bairro do Palanca. Para atravessar a parte da cidade até o Palanca, que fica na estrada de Catete (ou Avenida Deolinda Rodrigues 51) é preciso cruzar os “municípios” (52) da Ingombota, do Maculusso e da Maianga, séculos antes bairros de cubatas 53, hoje áreas cheias de prédios e trânsito difícil.

Do ponto de vista de quem mora nos bairros da periferia de Luanda, aonde chegarei em breve, a Baixa corresponde, atualmente, à parte da cidade onde estão os edifícios, grandes casas, o comércio organizado, as repartições do Estado, os prédios do governo, os serviços, e onde moram as pessoas mais abastadas. A “Baixa” já não é mais a faixa que acompanha a baía de Luanda, a Avenida 4 de Fevereiro, antiga Marginal, que se estende desde o início da Ilha de Luanda até o Porto, ladeando a baía, e as ruas adjacentes como Rainha Jinga(54)e Major Kanhangulo. A noção de baixa se expande hoje para o que antigamente se chamava de “cidade do asfalto”55, subindo até o Largo da Mutamba e os bairros das Ingombotas, Maculusso e Maianga, chegando até ao Largo da Sagrada Família, próximo ao elegante Alvalade, antes um bairro distante, no alto da Maianga, que era o bairro do subúrbio chique dos fazendeiros de café (ver mapa de Luanda 56).

Do Largo da Sagrada Família, passamos pelo hospital militar até o Largo da Independência, antes chamado Primeiro de Maio, palco de grandes comícios e manifestações políticas. Reformado em 200057, passou a abrigar a estátua de Agostinho Neto, o primeiro presidente de Angola, ladeada por chafarizes e bancos onde, no cair da noite, recém-casados, turistas e moradores da cidade tiram fotografias para guardar de lembrança.

No Largo da Independência inicia a Avenida Deolinda Rodrigues, que corta Luanda para sudeste, em direção ao município de Viana, na fronteira de Luanda, até a cidade de Catete. Uma das mais antigas e importantes vias que saem da cidade, ela passa por bairros importantes e também imensos musseques, como o Cazenga. Do lado esquerdo desta movimentada avenida está o bairro da Vila Alice (hoje Nelito Soares), seguido pela Citadela (onde, mais atrás, está o estádio de futebol), o bairro da Terra Nova e o bairro dos Congolenses. Do lado direito, no começo da avenida, vemos um conjunto de prédios do governo, o Bairro do Cassequel (onde por detrás fica o Bairro da Polícia) e, finalmente, o Bairro Popular, pertencente ao município de Kilamba Kiaxi, ao qual também pertence o bairro vizinho, o Palanca, que situa-se em frente a fábrica de tabacos da FTU, onde termina a linha do nosso candongueiro(58). Mais adiante, à esquerda, está o município Cazenga, antigo musseque que abriga atualmente diversos outros bairros como a Cuca (da fábrica de cerveja de mesmo nome) e Hoji A Henda(59).

Para entrar no bairro do Palanca de automóvel há duas opções. Podemos ir pelo Bairro Popular (oficialmente Bairro Neves Bendinha 60), cuja estrada principal em 2001 se encontrava em obras e praticamente intransitável, ou seguimos contornando o Palanca pela Estrada do Sanatório, até chegar na nova estrada que sai desta, cruzando o Palanca perpendicularmente, cortando o bairro em dois até os fundos do Bairro Popular.

É esse o caminho que fazia sempre que lá ia de carro, o caminho mais longo, mas mais direto e melhor para o carro (a estrada era melhor), no confuso e desordenado trânsito de Luanda. Este caminho mais longo, com trânsito livre, não leva mais do que 20 minutos.

Bairro ou Musseque?

A palavra musseque vem da língua kimbundo, mu=lugar, seke=areia. Refere-se ao terreno arenoso e vermelho característico da paisagem de Luanda. Os musseques são os chamados bairros de construção precária e ocupação “desordenada”, formados por becos e vielas abertos pelos africanos expulsos dos bairros referidos acima nas primeiras décadas do século XX, quando da chegada mais intensa de colonos portugueses em Luanda. Também lá foram residir aqueles que chegavam da área rural. Os musseques, portanto, equivalem às nossas favelas, caracterizados pela ausência de urbanização e saneamento, opondo-se à “cidade do asfalto”, a cidade urbanizada, que concentra os equipamentos urbanos modernos, com seus serviços e comércio formal.

A conceituação de musseque, segundo Ladeiro Monteiro (1973), está ligada à habitação “provisória”, de cubatas feitas predominantemente de pau-a-pique, por vezes madeira e telhado de zinco. Socialmente, ainda segundo Ladeiro Monteiro, verifica-se uma comunidade culturalmente homogênea, posto que se trata de uma população proletarizada, muitas vezes recém chegada do meio rural, cujo modo de vida estaria sendo progressivamente desarticulado pelo contraste com o modo de vida ocidental e o seu domínio. A população do musseque teria sido marcada pela proletarização e pequena estratificação social, pela perda parcial das características comunitárias e tradicionais do seu meio étnico de origem61 (Monteiro, 1973: 30).

No intermédio entre a “cidade do asfalto” e da “cidade de areia”, estão os bairros populares, bairros operários ou antigos musseques posteriormente urbanizados, cujos exemplos são o Bairro Operário, o Bairro Popular, Prenda e parte de famosos musseques como o Cazenga.

Esta distinção do tempo colonial ficou defasada pela forma de reocupação dos espaços após a independência, quando a saída de meio milhão de colonos portugueses e milhares de angolanos deixou prédios e casas que foram tomados por parte da população que vivia nos bairros menos favorecidos. A rápida reocupação da cidade, logo após a independência, ocasionou a degradação do equipamento urbano e o progressivo inchamento da cidade, agravado ainda com o recrudescer da guerra civil, a desorganização da economia rural e o esvaziamento paulatino das áreas rurais.

Com a guerra civil e a desintegração social no campo, Luanda passou a abrigar cada vez mais população vinda do resto do país, chegando atualmente a contar com 1/3 da população de Angola. Nesse sentido, desde a década de 1980, a periferia de Luanda veio sendo intensamente ocupada, com a construção de bairros que não seguiam necessariamente a lógica anterior dos musseques, inclusive com a utilização de outros materiais de construção como blocos de cimento.

O desmantelamento da economia sob controle estatal, e a aguda crise econômica que se seguiu à adoção da economia de mercado, consolidou uma maior diferenciação social com uma marcada concentração de renda por um setor da sociedade angolana, processo mais visível na capital.

Sendo assim, pode-se caracterizar a ocupação urbana da cidade em quatro sistemas (adaptado de Colaço, 1992): um centro “moderno”; uma área de transição, composta por bairros populares com algum tipo de estrutura de saneamento e serviços essenciais (água e luz); a periferia, identificada tanto pelos antigos musseques, cada vez mais inchados, como por novos bairros, e o cinturão verde de Viana e do sul de Luanda, áreas que vêm sofrendo uma ocupação crescente, especialmente esta última, com o mega empreendimento residencial chamado “Luanda Sul”.

O projeto “Luanda Sul” inclui vários condomínios de médio e alto padrão, acompanhados de vários tipos de serviços, inaugurando um novo tipo de ocupação, controle e concentração das terras urbanas de Luanda pelas elites econômicas, ocasionando o seu afastamento residencial do centro da cidade para o subúrbio. Evidentemente, junto com os avanços na construção de Luanda Sul, avança também à volta um sem número de bairros precários e pequenos musseques.

Assim, a referência atual a musseque como bairro degradado, pobre e periférico concorre com a alusão mais comum de “bairro”, referindo-se a quaisquer bairros periféricos, ficando musseques como a menção aos tradicionais musseques nascidos no tempo colonial, como o Sambizanga, Cazenga, Rangel, Marçal, Lixeira, entre outros.

A caracterização de Ladeiro Monteiro de uma população relativamente indiferenciada, posto que proletarizada e aculturada, também não corresponde à realidade, pois nos bairros encontramos populações bastante diversificadas, tanto pela origem nas diferentes regiões do país como pelo tempo de chegada a Luanda. Embora provenientes na sua maioria de regiões rurais, há também populações vindas de outros centros urbanos. Das populações com experiências diferentes de urbanização, inclui-se os regressados do Congo/Zaire, vindos da cidade de Kinshasa, que trazem um aprendizado de vivência urbana anterior e distinto de Luanda (Pereira, 1999: 12).

————————————————————————————————————————

(51) – Deolinda Rodrigues foi uma militante do MPLA, morta durante da luta de libertação. Há várias ruas e praças e bairros cujos nomes foram mudados por ocasião da independência, mas continuaram a ser referenciados pelos moradores pelos seus antigos nomes. Com o multipartidarismo e o abandono da ideologia marxista pelo partido no poder, alguns nomes foram de novo rebatizados, alguns tomando os anteriores nomes coloniais.

(52) –  A divisão administrativa da cidade de Luanda alterou-se com a elevação da cidade, antes município, a província. Assim, os bairros maiores passaram a categoria administrativa de municípios, subdivididos, por sua vez, em comunas e em bairros.

(53) – As cubatas eram as modestas casas de pau-a-pique, adobe e outros materiais onde residiam os africanos, nestes que eram os bairros afastados da baixa, a cidade propriamente dita, onde residiam os colonos. A incorporação destes bairros à cidade seguiu o acelerado crescimento urbano de Luanda, no século XX, que implicou na expulsão progressiva dos africanos para bairros mais afastados, os musseques, dos quais falaremos adiante.

(54) – Antiga Rua Direita, a primeira rua de Luanda. A Rainha Jinga governou Matamba, um dos reinos da área kimbundu no século XVII. Enfrentou ferrenha disputa contra os portugueses pela autonomia da região. É considerada heroína nacional e um símbolo da resistência africana contra a dominação estrangeira dentro e fora de Angola.

(55) – A cidade do asfalto se opunha aos chamados musseques, onde vivia a maioria dos africanos, no tempo colonial, em meados do século XX, assinalando a clássica oposição colonial entre cidade branca e cidade negra.

 

(*)Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

Comentário

Seja o primeiro a comentar

Deixe uma resposta

O seu endereço de email não será publicado.


*


Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.