OS KONGO, OS ÚLTIMOS REIS E O RESIDENTE FARIA LEAL (I PARTE)

Por Dr. José Carlos de Oliveira (*)

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Introdução (Dois factos premonitórios)

 Primeiro Facto

Por volta do final de Outubro de 1989, estava eu iniciando a licenciatura em Antropologia no Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas em Lisboa quando, numa aula de Introdução ao Direito, ministrada pelo então assistente Adelino Maltez, a determinado momento o docente apercebendo-se do meu interesse sobre as “Coisas do Reino do Kongo” proferiu as seguintes palavras: “oiça lá oh rei do Kongo”…

 

  

Faria Leal (de gravata) no Lumbu do rei Tie King (1896) Foto de Família1

Uma breve nota sobre o Visconde de Kakongo – Após algumas reflexões, tenho quase a certeza que o europeu sentado ao lado de D. Henrique Tie king ou Telekeng, não é outro senão o visconde de Kakongo, o negociante João José Rodrigues Leitão Sobrinho a quem se deve o êxito do tratado de 29 de Setembro de 1883, celebrado por Guilherme Capelo com chefes indígenas da região de Kakongo (cacongo) e de Massabi. O prestígio do negociante era de tal forma relevante que afastou qualquer hipótese de sucesso dos concorrentes estrangeiros especialmente dos missionários do Espírito Santo que muito se esforçaram para que perdêssemos aqueles territórios afim de que fossem ocupados pela França, que a esse tempo já estavam no Loango e Ponta Negra, que confina com o Massabi2.

 Segundo Facto

Passou-se na foz do Arelho, (lagoa de Óbidos concelho das Caldas da Rainha), na praia, em frente à foz, na conhecida aldeia dos pescadores. Ia já a meio o Verão de 1991, alguns aficionados entretinham-se à pesca do robalo e douradas. Esse tempo de fartura de peixe já lá vai. Reparei num pescador mais afortunado, (ou mais sabedor), que não estava cinco minutos sem trazer para terra mais um robalo. Aproximei-me e meti conversa. Algo me dizia que aquele cabelo, fortemente encaracolado, teria origem africana. Ele tinha cerca de 35 anos, a conversa fluiu, e “chegar-se a Angola” foi um instante. “Pode não acreditar mas sou neto do rei do Kongo Alvaro Mbemba” (1891/1896) ao que eu respondi: “desculpe-me, o senhor é tão neto do rei do Kongo como eu sou neto do rei Jorge V de Inglaterra”.

Durante os fins-de-semana seguintes, encontramo-nos mais vezes no mesmo local e fomos ganhando confiança. Um dia disse-me: “Vou confiar em si, mostrar-lhe-ei um álbum de família, e mais, vou trazer-lhe também duas obras excepcionais sobre o Kongo, e a certidão de nascimento de meu pai. Então fará o seu juízo.

 A fotografia datada de 24/3/905 é de D. Pedro M´bemba, soba do Tuko e Rei do Kongo. Foi-me oferecida pelo filho do Conselheiro e Governador-Geral de Angola Dr. António Ramada Curto.”…

 Noutra ocasião e no mesmo pesqueiro, lá estava Paulo Jorge Midosi Moreira. Para além dos documentos mencionados trazia consigo um exemplar do Jornal O Século Nº 1, de 6 de Janeiro de 1881 e, de facto, lá constava um anúncio da ourivesaria Pedro Moreira na Rua Áurea nº 103 Lisboa, a confirmar a sua ascendência paterna. Trouxe-me ainda um convite para um sarau de piano oferecido à gente da classe alta por sua tia. Pedi-lhe então que me deixasse estudar os documentos.

 Dias depois, no Instituto de Ciências Sociais e Politicas (ISCSP), falei com o professor da cadeira de História Económica sobre o assunto, recomendou-me o professor João Baptista Nunes Pereira Neto3. Solicitei-lhe que me recebesse, o que aconteceu no seu gabinete de professor catedrático; olhou de soslaio os documentos, em especial o invulgar, histórico e único álbum fotográfico sobre os últimos reis do Kongo, (uma substancial parte das fotografias tinham a ver com o funeral do “Rei do Kongo” 1896) e, sem mais delongas, despachou-me em grande velocidade para o seu assistente, doutor Freixo. Eu sabia lá que Pereira Neto era um professor catedrático, e neste caso, o responsável pela cadeira de Antropologia Social e Cultural no ISCSP. Pensei, sinceramente “o que é que este professor saberá das “Coisas de África”? Nada, simplesmente nada. Mal eu sabia que estava perante um alto e reputado responsável pela política colonial portuguesa de 1960 a 1974. Ainda sobre as fotografias do funeral parece aconselhável esclarecer:

 Nós chamamos-lhe funeral, mas o funeral é uma das cerimónias do ‘rito do óbito’ que é a designação atribuída ao conjunto de rituais fúnebres que têm a ver com o relacionamento entre a morte e a vida, isto porque os kongo, tal como a sociedade bantú em geral, não concebem a morte sem o renascimento. O óbito é um espaço físico e temporal que vai, desde o início das cerimónias até ao mais pequeno acto que se prenda com a pessoa do falecido.

 Hoje, que estou como peixe na água nestes assuntos, (segundo o prefácio de D. Francisco da Mata Mourisca à dissertação “O Comerciante do Mato”) continuo a não entender como é que o, actual Secretário-Geral da Sociedade de Geografia de Lisboa não foi sensível, ou não quis enxergar, o valor histórico de documentos únicos e proeminentes sobre o célebre reino do Kongo de há cem anos atrás. Este foi o Fio da Meada, da trama em que me haveria de envolver até hoje e, sabe-se lá até quando. Finalmente por volta de 1995, o citado Paulo Jorge indicou-me alguém que poderia ajudar-me de sobremaneira: o senhor Tenente-general José Manuel de Faria Leal, neto do senhor General José Heliodoro Corte Real de Faria Leal. Facultou-me a documentação e especialmente fotografias que, por si só, depois de analisadas, vão beneficiar o presente artigo.

 É com este sentimento que, ao fim de 20 anos, começo a escrever o presente artigo (o quarto) com a satisfação de um dever prestes a ser cumprido. Quando em 1991, olhava para o velho álbum de família do general José Heliodoro Faria Leal, que daqui em diante tratarei só por Residente Faria Leal, não fazia a menor ideia do que aquele documento histórico representava e o que queria transmitir.

 

O Ntotyla, (o rei) D. Álvaro, no trono em dia de Comemoração 18964.

 Metodologia Aplicada

 A transculturação é o processo de adaptação de duas ou mais culturas no mesmo espaço geográfico e dizem respeito aos contactos e aos cruzamentos dessas culturas diferentes. Este fenómeno, já foi profundamente estudado, tendo em conta as relações de grupos com culturas diferentes envolvendo as respectivas causas e efeitos das suas trocas económicas e culturais. Referiram-se aqui os antropólogos e sociólogos americanos Redfield, Linton e Herskovits que de 1900 a 1935, se dedicaram ao estudo das relações entre os diferentes grupos étnicos de imigrantes, através das suas trocas culturais durante períodos de longa duração. Em 1940 o etnólogo e musicólogo cubano Ortiz introduziu o dito conceito de transculturação no pensamento antropológico. No prefácio à obra de Ortiz, a ele se refere Malinowski observando:

 É um processo no qual se dá sempre qualquer coisa em troca do que se recebe. É um processo no qual as duas partes da equação saem modificadas. Um processo a partir do qual emerge uma nova realidade, composta e complexa, uma realidade que não é nem aglomeração mecânica dos caracteres, nem um mosaico, mas trata-se de um fenómeno novo, original e independente”.

 Em Casa grande e senzala (1933), o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre debruça-se sobre o fenómeno da “miscigenação” cultural e sexual dos índios, africanos e portugueses, que viria a evoluir assim para um povo novo. Emergia um novo paradigmao Lusotropicalismo.

 Para completar o enquadramento teórico deste artigo, uma vez mais apelo para a nocão do termo alemão Zeitgeist que significa espírito do tempo ou sinal dos tempos. Na realidade este espírito funciona num clima, num mundo intelectual e cultural de uma determinada época Zeitgeist significa, em suma, o conjunto do clima intelectual de um determinado período de tempo que, no meu entendimento como no de Malinowski, estão em causa as tradições mantidas por determinado povo ao longo dos anos!

 Convirá acrescentar que utilizei os Factos Históricos de Arnold J. Toynbee, separando-os das interpretações, se por interpretações entendermos as especulações e generalizações precipitadas, daí que sejam importantes:

 Os Factos e documentos factuais

 Histórico-Sociológicos: os factos sociais, políticos, económicos e religiosos que se desenrolaram.

 Pessoais: as pessoas que intervieram, como intervieram e quem as “puxou”…

 Sócio-Culturais: as transformações que se manifestam, as motivações que acontecem em torno do Estado, da região, das comunidades e dos grupos, dentro da comunidade.

 Os fundamentos (as bases) ou os antecedentes

 Histórico – sociológicos: principalmente os que se prolongam e incidem no presente próximo como se encontra patente nos documentos.

 Pessoais: os intervenientes mais importantes, tanto os de que toda a gente fala como de outros de que se não fala mas se sabem serem importantes por testemunho directo.

 Sócio-culturais: o intercâmbio de ideias e de intenções ou significações ou projectos que foram acontecendo.

Sim, tudo isto está muito bem, mas que “espingarda e munições”, (leia-se método antropológico) utilizei paraconseguir resultados positivos?

 Como diz Malinowski “Flutuar em espírito, até às margens da lagoa de Trobiand e penetrar na vida dos nativos – vejamo-los a trabalhar, vejamo-los a divertir-se e escutemos as suas histórias…As histórias vivem-se junto dos nativos e não no papel… Precisamos de ter um bom conhecimento da sociologia, dos costumes e da concepção…

 Datas e factos relevantes

 1891 – Julho/30 – Tratado de delimitação de Fronteiras entre Angola e o Congo Belga (Estado Independente do Congo).

 1891 – Dezembro/31 – A população branca em toda a Angola era inferior a 10.000 habitantes, enquanto a União Sul Africana era já de 620.000.

 

 Fotografia retirada da obra George Grenfell and the Congo, Vol.I, pag 21

 

1892 – Dezembro – O tenente Cândido Sarmento e o geógrafo Baptista, George Grenfell, mandatário do Estado Independente do Congo, encontram-se na margem direita do rio Cuango e caminham para Leste para demarcação de fronteiras. Convêm recordar aqui que este assunto é de muito melindrosa abordagem e só por si daria um artigo de fundo.

 1893 – Agosto/3 – Acordo “secreto” entre a Inglaterra e Alemanha para dividirem entre si os territórios ultramarinos portugueses.

 1896 – Janeiro/20 – Foi oficialmente aceite a prorrogação do “Modus Vivendi” entre Portugal e a Inglaterra, baseado na decisão de 28 de Dezembro.

 

 O funeral de D. Alvaro M´bemba 1896

 1896 – Fevereiro – Chegada a S. Salvador do Residente Titular José Heliodoro de Corte Real Faria Leal. Encontrou um clima de relações pouco amistosas entre A BMS (Missão Baptista) e os representantes da Igreja Católica. Por exemplo, a missão de Pinda (Cabinda) a cargo dos Espiritanos teve que ser encerrada por perseguições surgidas e por serem acusados de não ajudarem as chuvas5.

 1896 – Novembro – O príncipe D.Pedro VI, do Congo, segue para Luanda e depois para a Huila, afim de ali fazer os seus estudos na respectiva missão católica.

 1899 – Agosto – O Residente Faria Leal avança de S. Salvador com 40 soldados e artilharia. Instala um posto no Cuilo, no rio do mesmo nome, a 20 quilómetros da margem esquerda do rio Kuango.

 1899 – Dezembro/31 – A Sociedade de Geografia de Lisboa faz estudos sobre o fomento das colónias portuguesas; a Escola Colonial, em Lisboa passa a ser responsável pela formação dos administradores coloniais.

 1901 – Abril/3 – Em S. Salvador morre o regente do Reino do Kongo, enquanto o herdeiro continuava a estudar na Huila.

 1901 – Maio/8 – O Residente Faria Leal convence os chefes locais a aceitarem o soba Pedro Mbemba soba do Tuco, como escolhido para suceder ao regente Henrique Nteyekengue, e convertido à fé católica em vez da portestante.

 1903 – Maio – O governador ordenara a prisão dum traficante de escravos do Bembe, a qual foi executada por Faria Leal, saído de S. Salvador.

 1904 – Dezembro/31 – No Congo Belga já estavam em funcionamento o Caminho-de-ferro de Matadi a Leopoldeville, num percurso de 400 quilómetros bem como a linha de Kindu a Jongolo com 350 quilómetros.

 1908 – Outubro/Novembro – O governo da Bélgica toma posse administrativa do Estado Independente do Congo, tendo ainda um ministro das colónias e governador geral, todavia Leopoldo II garantiu para si a posse de algumas companhias de enormes recursos!

 1908 – Dezembro/31 – havia então em Angola 845 funcionários públicos incluídos militares e religiosos. Havia pouco mais de 5.000 homens disponíveis, sendo uns 2.000 europeus, não esquecendo que entre todos eles uma boa parte eram o “refugo” da sociedade portuguesa continental “Condenados e vadios que despejam…os tribunais do Reino sobre Luanda…” A situação existente não oferecia qualquer segurança aos mais isolados do interior, estando em risco quase permanente e arbitrário a sua vida e as produções agrícolas e pecuárias, assim como a sua difícil comercialização e, até mesmo, a subsistência de muitas das povoações, ao que ainda se tinha que acrescentar as consequências da irregularidade e agressividade climatérica e quase nenhuma assistência nas doenças mal conhecidas e pior tratadas! (O mesmo número de militares existia em Março de 1961 aquando do inicio dos ataques da UPA.)

1909 – Dezembro/20 – Decreto sobre as condições da pesquisa de petróleo em Angola.

 1910 – Junho/24 – Morre o rei do Kongo Pedro Mbemba, tenente-coronel do exército português. Por influência do Residente Faria Leal foi eleito um sobrinho do falecido rei, Comba Lombo, em vez do legítimo herdeiro, D. Pedro, o tal que foi estudar para Huila, já nessa altura havia um terceiro pretendente, Manuel Martins Kiditu.

 1910 – Outubro/18 – Foi abolido o ensino da doutrina cristã e os juramentos religiosos.

 1911 – Fevereiro – O novo rei do Kongo Comba Lombo, não agrada ao povo que, novamente por interferência do já então general Faria Leal, (regressado a S. Salvador) passam a preferir Manuel Martins Kiditu.

 1911 – Maio/Junho – Os zombo entram em conflito com os soldados da guarnição. Faria Leal e depois o governador Silva Cardoso, concentram as forças em Maquela do Zombo. Estava em jogo além da cobrança do Imposto de Cubata, a distribuição das zonas de aliciamento dos carregadores… Houve um entendimento com os povos, não sendo necessário entrar em lutas… Mas no meio de tudo isto, uns e outros iam praticando o tráfico de escravos, às vezes sob a capa de “contratados”.

 1912 – Março/19 – O ministro inglês propõe o adiamento da chegada da Comissão Luso-Inglesa para se juntar à Luso-Belga, na demarcação das fronteiras de Angola.

 Documentação Geográfica e Geológica Concernente à Bacia do Congo

 Esta região africana, do ponto de vista ambiental, é caracterizada por ecossistemas da floresta tropical da bacia do rio Kongo ou Zaire6 e dos seus afluentes, com grande produtividade bruta. Abrimos aqui um parêntesis para acrescentar que rio Zaire ou N’Zadi é conhecido por ser ‘o encontro das águas’, porém, o que está em causa, é o significado que a palavra tem para os kongo.

  

 As chuvas na África Equatorial, escala de 1:25.000.000: 1. Precipitações de menos de 500 milímetros; 2. De 500 a 1.000 milímetros; 3. De 1.000 a 1.500 milímetros; 4. Mais de 1.500 milímetros. 7.

 Esta expressão subentende os rios que fazem esse encontro, por exemplo, o rio Nkisi (‘o dos espíritos’) ou o Kuango (‘o da força da vida’) fazem parte do grande Zaire. Regressando, ao estudo do meio ambiental, verificamos que a evapotranspiração (soma da quantidade de água transportada pelas plantas e evaporada pelos solos) tem um papel muito importante pode-se comprovar que a maioria dos fluxos de águas pluviais é assegurada pela evapotranspiração, de sorte que, a bacia do Kongo vive quase em economia fechada. A floresta tropical húmida do Congo tem uma superfície de mais de 1.500 quilómetros2, exigindo condições de vida muitoparticulares e drasticamente imperativas.

O sistema pluvial da bacia do Kongo ou do Zaire reparte-se com as seguintes médias anuais: em primeiro lugar, as zonas de precipitação inferiores a 500 milímetros, em segundo lugar, as zonas de precipitação de 500 a 1.000 milímetros, em terceiro lugar, as de precipitação entre 1.000 e 1.500 milímetros e, finalmente, as zonas com precipitação além dos 1.500 milímetros.

 

 Escala1:15.000.000. – 1. Floresta virgem, 2. Espaço dos planaltos de savana;
3. Estepes com Matas arbustivas esparsas; 4. Estepes pobres e sem árvores;
5. Vegetação de pântanos; 6. Limites da área de extensão de palmeiras de dendem;
7. Limites das grandes plantações de Bananeiras.

 Todos os fenómenos de tal abundância de chuvas encontram a sua explicação, em relação à sua situação geográfica, face ao Equador e à distância do oceano Atlântico, não esquecendo os regimes de pressões e ventos com a zona As árvores são de proporções gigantescas com lianas entrelaçadas, por vezes em terrenos pantanosos, chegando a atingir 60 metros de altura, frequentemente encostadas umas às outras, sendo conhecidas mais de 3.000 espécies. As palmeiras, especialmente, a que fornece o vinho [raphia vinífera], bem como a que fornece o óleo de palma, a [Elaeis guineensis] e ainda, a bananeira fazem parte da dieta das populações humanas e não só. Por todo o lado, transpira a humidade, sendo considerada uma ‘floresta-esponja’, assim designada pela força brutal da evapotranspiração. De manhã, erguem-se densas brumas do solo saturado de água, as trovoadas são breves, mas chove quase todo o ano8.

De salientar, são os dados colhidos em alguns trabalhos de campo de reputação internacional incontestável, em especial a obra de Harry Johnston:

George Grenfell and the Congo, que trata os primeiros dados científicos9. Johnston, autor supra-referido, ocupa-se de transmitir oficialmente a descrição vivencial do missionário e geógrafo George Grenfell e do seu estudo sistemático do ecossistema da bacia do Zaire. Devemos destacá-lo como a figura central da missionação inglesa dos últimos vinte cinco anos do século XIX e ainda alguns anos da primeira década do século XX. Durante mais de trinta anos, Grenfell, descendente de outros Grenfell, proprietários de fundições de ferro e de minas de carvão, e também de destacados comandantes militares Ingleses, exerceu a sua acção na Bacia do Congo. São de Harry Johnston as seguintes palavras: “It is possible, however, that as the events of the last twenty five years recede from us into history no Grenfell will have left a more famous name than the missionary-explorer[…]”10.

 Tomando como dado primacial o facto do missionário Grenfell, ser descendente de uma linhagem ligada às fundições de ferro, e consequentemente metais preciosos (e pedras preciosas), não admira que o primeiro ministro James Brownlow William Gascoyne-Cecil, terceiro marquês de Salisbury ( este titulo é de suma importância para a continuidade dos Salisbury no poder), enviasse estrategicamente para a Bacia Convencional do Zaire George Grenfell.

Pela indicação acima e pelas relações seculares entre ingleses e portugueses de uma coisa estou certo, este artigo tem em vista contribuir para analisar, sintetizar e adicionar, com o maior rigor possível, aos estudos sobre os Kongo, já anteriormente publicados (sendo esses raros), documentos factuais histórico-sociológicos e sócio-culturais que se foram prolongando no tempo e incidem ainda, no presente próximo, de forma a se entender o progressivo comportamento das populações envolvidas com o grupo Kongo ao longo dos tempos.

Estou empenhado em conseguir discernir sobre as motivações de uns e de outros, usando para isso memoriais de conhecimentos fundamentais como a linguística e, simultaneamente, relatos testemunhais de gente importante como o padre António Barroso e o general José Heliodoro de Corte Real de Faria Leal. Poderei comprovar, que na bacia do Rio Zaire incluídos os seus afluentes e confluentes existem zonas de invulgar riqueza em cobre, onde existe sempre uma percentagem, mais ou menos interessante de ouro. Os comerciantes e exploradores ocidentais estavam muito atentos a estas sensíveis questões. Por outro lado, e simultaneamente, sabe-se que entre os kongo, o termo mubire tem a ver com os ferreiros cirurgicamente escolhidos, pelos portugueses aquando da fundação e arranque da siderurgia “Nova Oeiras”, em Angola, no século XVIII. Como dizia, se procurarmos atentamente, vamos encontrar correlações entre os termos kikongo munto ambi e mubire, ‘homem mau’, expressão que designava todos os grandes ferreiros conhecidos. Finalmente deve ter-se em conta que os interesses britânicos estavam envolvidos no cerne da questão: as resoluções da Convenção de Berlim de 1884/85, e igualmente muito atentos ao avanço das politicas do avanço franco-belga na região. A França dominava a Norte do Maiombe, mais concretamente a região dos kubaogué e tshogo, e o rei Leopoldo II, da Bélgica, criava a Association lnternationale Africaine, embrião do seu futuro Estado Livre do Congo, formalizando, deste modo, a proprietização do território congolês) sendo vontade dos interesses britânicos conter quer este domínio quer o já evidente avanço bismarko-prussiano. Era a pronunciação da Conferência de Berlim de 1885 ainda hoje em prática.

Os políticos africanistas portugueses estavam a par de toda esta movimentação (faziam o que podiam) mandavam para o terreno a sua possível elite militar, por isso, o Governador-Geral de Angola, ao escolher para ajudante de campo o jovem tenente José Heliodro Corte Real deFaria Leal meditou certamente, e muito, na escolha. Veremos como se houve Faria Leal entre os interesses do rei do Kongo, da Baptist Missionary, representada pelos sucessores de George Grenfell e da Igreja Católica através dos sucessores do missionário António Barroso, para não falar das denominadas “Casa Holandesa” da “Casa Alemã”.

A Trama da Conjuntura Política Internacional na Bacia do Zaire

 Portugal é um pequeno país (no sentido de chão dos antepassados) e sempre o foi, no meio de grandes espaços e povos de maior amplitude política, demográfica, económica e social da Europa. Devemos ter presente que, os povos da dimensão portuguesa, só raramente se agigantam, como por exemplo, aconteceu nas circunstâncias geopolíticas que determinaram os acontecimentos no período do terceiro quartel do século XIX até aos anos 70 do século XX. Todavia a diplomacia portuguesa sempre soube adaptar-se aos apoios exteriores de que sempre necessitou em cada data a fim de viabilizar a vida dos seus compatriotas ao longo dos séculos, e “…esta diplomacia é talvez comparável à do Vaticano, esta a mais notável no exercício do poder dos que não têm poder, porque a palavra é o seu instrumento, o diálogo o método, a noção do tempo e a do a-tempo, a moderadora das urgências11. Sim, mas parece importante recordar aqui dois velhos ditados transmontanos 1º “Para lá do Marão mandam os que lá estão”, 2º “Quando o pau é desigual, mais vale fugir, do que ficar mal”.

 Imagem muito divulgada da Conferencia de Berlim 1884/85

 A desproporção de meios humanos, científicos e económicos, entre Portugal e a Inglaterra, como potências colonizadoras, eram enormes. A este propósito, transcrevemos as palavras do professor Santa Rita do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, em Lisboa:

 (…) A África do Noroeste foi explorada principalmente por viajantes ingleses, com o objectivo de conhecer os territórios em volta do Sara e fazer a ligação do vale do Nilo, com os territórios a ocidente. Foram as viagens de Richardson, Overweg e Vogel que reconheceram o Chade, o Yola, o Benué, Bornu, Tombuctu, o Socoto, Say, o Níger, o Uadai. Estas viagens realizaram-se de 1849 a 1870 e custaram a vida a muitos dos exploradores: Hornemann morreu no Bornu sem que se soubesse em que circunstâncias; Houghton foi assassinado pelos Bambaras; Mungo Park morreu afogado no Níger; Clapperton morreu no Socoto; Laing, descobridor das nascentes do Níger e o primeiro europeu que nos tempos modernos, entrou em Tombuctu, morreu assassinado depois de sair desta cidade; Overweg morreu no Bornu; Voguel foi assassinado no Uadai (…) O outro grande problema de geografia africana envolto em lendas desde os mais recuados tempos foi o da origem do Nilo. Esclareceram-no Burton e Speke (…).” 12

A Europa estava então perante um surto de aumento da sua população ligada a uma diminuição drástica da mortalidade. De 1850 a 1914, emigraram cerca de cinquenta milhões dos seus habitantes, tendo a Inglaterra sido a nação mais afectada por esta questão.

 A política colonial seguida era filha do desmesurado desenvolvimento industrial, impulsionado por grandes homens de negócios na mira de matérias-primas. “La politique colonialle est fille de la polítique industrielle”13As suas unidades fabris necessitavam das matérias-primas e viam, em África, uma fonte de recursos de excelente qualidade e baixo custo. Engendraram assim a máquina que iria proporcionar todos os avanços tecnológicos do século XX. Criaram políticas económicas apropriadas e uma das grandes chaves estava na exigência duma política diplomática que reduzisse os riscos materiais e humanos de investimento dos Estados Ocidentais no cobiçado continente. Bem depressa surgiram conflitos relacionados com os espaços a ocupar. Perante esta “Fièvre coloniale” houve que esclarecer e precisar as condições de ocupação; daí a Conferência Colonial de Berlim (dita convenção de Berlim) que atingiu severamente as aspirações portuguesas face ao contencioso Franco-Belga relativo à ocupação do Congo.

 

 Fotografia de Veloso e Castro 1908

 Para se efectivarem as relações internacionais na “(…) occupation du Congo. La France acquiert des territoires situés au nord du Stanley Pool, et le roi Léopold II reçoit la souveraineté personnelle sur L’Etat Libre du Congo. La conférence qui officialise la liberté de commercer dans le bassin congolais, l´interdiction de la traite et la protection des missions prévoit également que toute occupation territoriale devra être signifiée aux autres puissances et s’accompagner d’une présence effective sur les lieux. Le partage de l’Afrique continue donc, matérialisé par des conventions qui reconnaissent aux parties des zones d’influence (…). 14

 Houve que preparar instituições especializadas, nestes assuntos, e as Sociedades de Geografia foram das mais importantes instituições a intervir no terreno, através dos seus investigadores. Além das Sociedades de Geografia de Berlim e de Frankfurt, criadas respectivamente em 1828 e 1836, como ainda as fundadas em Munique, em 1869, Bremen, em 1870, e Hamburgo, em 1873, cujos boletins publicavam numerosos estudos sobre territórios ultramarinos, instituíram-se sociedades especialmente destinadas a advogar a expansão alemã. Uma das mais notáveis foi a “União para a Geografia Comercial e Progresso dos interesses Alemães no Estrangeiro”, com sede em Berlim e sucursais nas principais cidades do império, tendo estendido a sua influência até ao Brasil, Argentina e Austrália. O seu objectivo era estudar os territórios em que estavam estabelecidos, dando informações acerca das suas condições económicas e sociais e promover a ida de emigrantes para esses territórios: tudo se passou de forma semelhante com a Inglaterra e a França15.

 

Fotografia de Veloso e Castro. Passagem do Rio Gambo, 1905.

 Nada do que fica assinalado, diminui a coragem e a audácia dos exploradores portugueses. Simplesmente, a atitude dum povo de menores recursos, teria que ser forçosamente consentânea com as suas reais capacidades no assunto, se queria dar seguimento à sua política em África. O Portugal económico e político foi seguindo na pegada das grandes nações europeias face à colonização; também lhe cabiam parte das razões expansionistas: por motivos de ordem demográfica, técnica, económica e até outras muito questionáveis. Por tudo o que se disse, dever-se-á compreender a questão do célebre Mapa Cor-de-rosa.

 A nação portuguesa enfrentava então uma grave crise económica e vislumbrava nas colónias africanas, a solução para os seus graves problemas. Porém, a prosperidade e desenvolvimento, criados especialmente pelas exportações agrícolas e a substituição das importações sob protecção moderada viram as expectativas goradas pela recessão capitalista do início do terceiro quartel do século XIX. Gervase Clarence Smith (1990:84-87), refere que “ (…) As receitas públicas diminuíam, o défice da balança de pagamentos crescia de forma alarmante, as reservas de ouro baixavam e o país já não conseguia baixar a sua dívida externa. (…) À medida que a crise se agravava, Portugal ia reagindo como os outros países da Europa Ocidental, começando por proteger o mercado interno e procurando depois novos mercados protegidos, através da expansão colonial. (…)

Muito do êxito das acções realizadas, pelo Ocidente, dependia da qualidade dos homens indigitados para o cumprimento do dever na circunstância. Da continuidade do que corresse de feição ou da capacidade dos mesmos emissários em convencerem os potentados à assinatura de acordos, que os comprometessem na linha de conduta desejada, dependia a continuidade das negociações. O cariz diplomático e religioso sempre foi um instrumento decisivo nestas circunstâncias. O agente indigitado pelo estado, neste caso português, devia conhecer a ambiguidade das relações, como nos exemplos do nosso artigo foram os casos do missionário António Barroso e do Residente em Banza Kongo, Faria Leal. O terreno das relações entre mentalidades e pontos de vista diferentes tornava-se, de repente, escorregadio e perigoso. Tudo se podia perder num instante. A ponderada orientação e coordenação, nos múltiplos aspectos citados, era crucial nas delicadas funções de chefes de missão, devendo possuir a sensibilidade, a flexibilidade aliada ao tacto, espécie de sexto sentido, em grande parte produto do traquejo da adaptação à função exercida. O talento, a sagacidade, a capacidade de observação e de estudo eram atributos essenciais para a compreensão de tão delicados assuntos, tão vastos e tão perturbadores. Sempre foi fundamental um encanto pessoal, para além da inteligência e conhecimento das técnicas dos meios-tons, condições consideradas excelentes para o segredo do êxito diplomático, e essas características foram formando a grande experiência de Faria Leal como o homem certo para tão difícil tarefa.

Continua…

 * Doutorado em Antropologia Social e Cultural pela Universidade de Coimbra. africaprint@sapo.pt.

 

 1 Este cognome Tie King era assim grafado pelos ingleses, os portugueses conheciam-no por Telekengue. A fotografia pertence ao acervo da família Faria Leal.

2 Enciclopédia Portuguesa Ilustrada de Maximiano Lemos, tomo 6. Veja landana pag.311.

3 Depois de uma primeira e mal sucedida dissertação de mestrado, e só o título diz tudo “O Trabalho Compelido e a Cultura Obrigatória do Algodão” estava, pelo assunto em estudo, destinada ao fracasso. A conselho do então bispo do Uije D. Francisco da Mata Mourisca (a quem enviei para Angola o documento) dirigi-me ao professor João Pereira Neto que, já me conhecendo o suficiente, aceitou ( e quanto mais não seja, só por isso lhe estou muito grato) orientar a nova dissertação de mestrado intitulada “O Comerciante do Mato”. O Departamento de Antropologia de Coimbra viria a publicá-la merecendo menção especial do Doutor René Pélissier (Docteur D´État Ét Lettres) na sua Bibliographie Internationale Critique (1990-2005) Angola, Guinées, Mozambique, Sahara, Timor, etc.pag.609.

4 Em baixo, à direita, o com o cotovelo apoiado na pela de Leopardo está o tenente José Heliodoro de Faria Leal. Note-se o padre católico vestido com batina. Esta fotografia foi a 1ª que me foi entregue pela família Faria Leal.

5 Logo na 1ª pag referindo-me ao Visconde de Kakongo, os missionários espiritanos do lado da França, fizeram tudo para prejudicar o tratado com os kakongo e os Massabi. A melhor forma foi ameaçar com falta de chuva na plantação de amendoim e do feijão. E assim procederam.

6 Zaire ou ainda Nzadi, porque o consideraram e bem, os seus habitantes que ele fosse ‘o encontro das águas’, aquilo a que nós chamamos afluentes e confluentes.

7 Blache, Paul Vidal et L. Gallois (1927-1948) Les conditions naturelles. Géographie Universelle. A. Colin. Paris. Tomo XI (2), p. 19 A mancha mais escura assinala a zona de influencia do reino do Kongo.

8 Blache, Paul Vidal et L. Gallois (1927-1948) Les conditions naturelles. Géographie Universelle. A. Colin. Paris. Tomo XI (2)

9 Tendo em consideração as dificuldades de contactos com fins estratégicos para a concretização de informações secretas que levariam aos resultados da ‘Conferência de Berlim’, uma vez que, as informações logísticas, técnicas e ambientais eram inexistentes na floresta equatorial.

10 Johnston, Harry (1908) George Grenfell and the Congo. Hutchinson & , p. 1.

11 Moreia, Adriano, A circunstância do Espaço Exíguo Diário de Bordo, 2009 pag 278.

12 Santa-Rita, José Gonçalo (1959) A África nas Relações Internacionais depois de 1870. Junta de Investigações do Ultramar. Lisboa, p.18.

13 Pacteau, Séverine et François-Charles Mougel (1988) Histoire des relations internationales (1815-1987) Que sais-Je? Paris, p. 38.

14 Idem, pp.40, 41.

15 Santa-Rita, José Gonçalves. (1959) Op. cit. pp.76 e 77.

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