Os mercados e a sociedade kongo

Mercado municipal do Uíge

Por Luena Nascimento Nunes Pereira (*)

O mercado é uma das instituições fundamentais da vida social kongo. Se originalmente os Bakongo são um povo agricultor, a vasta área centro-africana com o predomínio da savana foi palco de intensas trocas comerciais, de média e longa distância, atingindo também os Bakongo, desde antes do século XIV, quando da emergência do Reino do Kongo. Essa dinâmica comercial foi posteriormente aproveitada pelos europeus para o estabelecimento de relações comerciais desta parte da África com a Europa e depois com a América.

A região kongo, particularmente, abriga diversos sistemas ecológicos – litoral, savana, planalto e floresta – favorecendo a complementaridade das suas economias. Assim, a necessidade de sal e peixe seco produzidos no litoral veio ao encontro dos produtos agrícolas produzidos no interior, bem como tecidos de ráfia (fibra vegetal) e outros produtos manufaturados. As trocas econômicas engendraram as rotas de comércio possibilitando a cobrança de taxas e, por conseguinte, o estabelecimento de poderes centralizados, como Reino do Kongo e outras formações menores, sobretudo no litoral. Havia vários tipos de moeda no Reino, como as conchas (nzimbu), recolhidas na Ilha de Luanda, tecidos e outros produtos, demonstrando o desenvolvimento do comércio alcançado já nesta época.

O controle das rotas de comércio, deste modo, está na base de boa parte da história política do Reino do Kongo e explica tanto o seu desenvolvimento econômico e sua centralização política como, em certa medida, também o seu declínio, em decorrência da disputa do controle do comércio escravista com os portugueses e com os emergentes reinos do litoral (Thornton, 1983).

A presença européia alterou profundamente a dinâmica de comércio regional na África Central com a abertura de novas rotas (e a disputa pelo controle delas) e, sobretudo com o impacto da demanda por escravos, redimensionando todo o sistema de produção e o circuito de trocas anterior. Com o fim do tráfico de escravos, entraram em cena novos produtos nas transações entre africanos e europeus, como a borracha e o óleo de palma. Ainda aí, foi importante o papel dos africanos na estruturação das redes comerciais, sobretudo os Bazombo, sub-grupo Bakongo referidos extensamente neste trabalho, que se constituíram, desde essa época, numa classe comerciante, que jogava um papel de intermediários desde o período do tráfico.

Eles ocupam uma zona extensa: desde ao Kwango ao leste, do rio Congo até o norte; suas caravanas são tão numerosas e sua audácia tão impressionante que a via Láctea, orientada segundo um dos eixos de seus deslocamentos, recebeu o nome de Nzila Bazombo: caminho dos Bazombo. Um estudo recente73 os apresenta como ‘os grandes intermediários do comércio e os principais difusores dos elementos culturais introduzidos pelos portugueses’; eles foram incontestavelmente os agentes da modernização – e isso explica, por uma parte, o atual papel de seus descendentes no seio do movimento de independência. (Balandier, 1965: 130, tradução minha)

Centrais na estruturação da economia kongo, os mercados podiam ser considerados “fenômenos sociais totais”, pois se constituíram em espaço de trocas econômicas – produtos e serviços – mas também num lugar de trocas sociais. O mercado era o espaço privilegiado do trânsito de pessoas e diversos grupos, fazendo circular as informações, introduzindo novos costumes, como também possibilitando o controle social por parte dos diversos poderes (Verger e Bastide, 1992; Bohannan e Dalton, 1962). Os mercados tinham também neste tempo vários tamanhos, convergindo várias aldeias de uma mesma área, como cruzando diversas regiões, rotas e grupos até os grandes mercados próximos aos portos fluviais e ao litoral atlântico. Eram a concretização do poder e do prestígio de um chefe local, configurando-se num lugar ao mesmo tempo neutro – pois abrigava vários grupos de diversas áreas – e também espaço sagrado (Balandier, 1963 [1955]: 345).

O mercado entre os Bakongo era considerado sagrado por estar associado ao exercício do poder e à administração da justiça. Aconteciam nos mercados os julgamentos, as resoluções de diferendos entre famílias e grupos74 e a execução das penas atribuídas aos criminosos. Também nos mercados se resolviam não somente as grandes negociações comerciais, mas também os acordos entre as famílias para a realização dos casamentos de seus filhos.

A associação estreita entre mercado e justiça e mercado como lugar privilegiado para o exercício da vida pública não mais se verifica atualmente, embora permaneça a dimensão de mercado como espaço de troca social, ainda que esvaziada da sua dimensão política. Tanto os crimes e conflitos de maior monta são remetidos para a esfera do Estado, como os conflitos entre famílias kongo são remetidas para os debates inter-familiares nos quintais das casas. As disputas entre famílias que são resolvidos nas “sentadas”, ou seja, no modo tradicional, atualmente têm se restringido aos casamentos, problemas matrimoniais, situações de óbito e acusações de feitiçaria. Outros espaços dividem com o mercado a função de circulação de pessoas e troca de informações, como as comunidades das igrejas, considerando o âmbito de um bairro como o Palanca.

Todavia, permaneceu a noção de debate público e resolução de conflitos como, essencialmente, a busca pelo consenso e pela afirmação do direito. Estes fatores, de obtenção do consenso e do grande desenvolvimento da prática jurídica, estão relacionados ao fato dos Bakongo constituírem-se como uma sociedade comerciante onde a resolução pacífica dos conflitos é tida como fundamental (Balandier, 1963: 329). Vamos retomar este tema mais adiante.

 

(73) – O autor refere-se a Manuel Alfredo de Morais Martins “Contactos de cultura no Congo Português”. Lisboa, 1958, pg. 96.

(74) – As disputas entre indivíduos nas sociedades kongo fora da esfera ocidental são quase sempre disputas entre famílias, pois o clã sempre responde pelas faltas cometidas por um membro seu, bem como cada indivíduo precisa em geral ser representado por um membro da família com autoridade para tal.

(*) – Luena Nascimento Nunes Pereira é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Extrato da tese: “Os Bakongo de Angola: religião, política e parentesco num bairro de Luanda”

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