Os mestres da palavra nas culturas Kongo e Ovimbundu

Por Domingas Henriques Monteiro

Akulu adya mbá (ngazi), atawul`e nkamfi” (provérbio kongo).

Os antepassados comeram as nozes da palmeira e deitaram fora os sobejos. Os antepassados cumpriram os seus deveres etransmitiram o facho às novas gerações. Agora é a vez destas de se mostrarem dignas da herança recebida” 

Omunu nda figo wafa kami ondalu, ava vasyala vayota” (provérbio umbundu)

A pessoa que morre não extingue o fogo, os vivos continuam a servir-se dele. Apesar da morte, que é uma contingência que afeta os homens, a vida prossegue com os vivos. A substituição e a sucessão são incontornáveis no mundo das relações sociais. A morte não põe termo à sobrevivência comunitária. Não há pessoas insubstituíveis”.

Em África, sobretudo na chamada África subsariana ou África negra, e apesar do processo secular de ocidentalização, a palavra continua a ser, como atrás se disse, uma instituição; é o alicerce que regulamenta a vida social e comunitária. A palavra proferida ocupa o primeiro lugar em todas as manifestações da vida africana, sejam elas artísticas, sociais, clânicas e/ou religiosas. Com valor simbólico, dinâmico e vital, a palavra é uma das principais ferramentas de transmissão e de manutenção do património cultural ancestral. Noutros continentes, essa função, em parte, também pode caber-lhe (variando em grau e de país em país), mas não tem o peso que adquire no continente africano.

Aqui, o seu valor é potencializado e a enunciação é mais importante do que o enunciado propriamente dito. Como declara o historiador Paul Zumthor, na sua obra A Letra e a Voz, obra de referência incontornável para o estudo da oralidade, a enunciação da palavra ganha em si mesmo valor simbólico: graças à voz, ela é exibição e dom, agressão, conquista e esperança.

Mesmo na literatura contemporânea de muitos países africanos (i.e., na literatura escrita) se faz sentir o peso da enunciação e de uma tradição oralizante. A tradição secular vem sendo veiculada através da palavra, explica Laura Padilha no seu estudo.

Entre Voz e Letra – A Ancestralidade na Literatura Angolana; o ato de dizer se fez, de facto, um gesto não gratuito na vasta territorialidade africana, e angolana, em particular (o que aqui nos interessa), adquirindo uma especial matiz entre os sujeitos comunitários, pois tudo, durante séculos emanou da palavra dita.

Nas sociedades de tradição oral, a memória, que preserva a história das comunidades, ancora na palavra, e essa função confere-lhe um poder supremo. Em culturas onde não existe a escrita, o homem está intrinsecamente ligado à palavra que profere. Está é permanentemente comprometido por ela. Ele é a palavra, e a palavra encerra um testemunho daquilo que ele é. E a própria coesão da sociedade repousa no valor e no respeito pela palavra.

A palavra reveste-se de um importante valor moral e sagrado, porque está vinculada ao divino. É através dela que é feito o contato com o mundo invisível e se mantém um diálogo contínuo com os mortos. A palavra é, portanto, poder e deve ser manejada com cautela, sob pena de a ira dos antepassados recair sobre parte da população e dizimá-la. Os antepassados só devem ser abordados mediante uma cerimónia ritualística para o efeito.

Os mestres da palavra nas culturas kongo e ovimbundu de Angola, e nas culturas africanas em geral, são aqueles que Zumthor designa como “portadores da voz poética”, aqueles que detêm a palavra e a manejam em benefício do grupo e da tradição, nos mais diversos rituais, realizados estes com a autorização dos “deuses”, dos antepassados, dos mais velhos e da própria comunidade no seu todo.

Esses homens e/ou mulheres destas duas culturas, à imagem do que acontece noutras regiões de África, são iniciados na arte de falar desde tenra idade. A partir do momento em que são escolhidos, ou quando recai sobre eles tal responsabilidade por herança cultural, tornam-se especialistas da palavra falada e conhecedores da tradição e dos hábitos e costumes do seu povo. A escolha é feita, em primeiro lugar, pela primogenitura, em segundo, pelo destaque no conhecimento da cultura do seu povo, pelo acompanhamento e empenho nas atividades realizadas dentro do grupo, e, em terceiro, por uma escolha aleatória do mestre, que sendo sábio, consegue identificar as faculdades especiais dos seus alunos, selecioná-los e nomeá-los para futuros mestres.

Os mestres da palavra são altamente respeitados, porque invocam e comunicam diretamente com os antepassados; são os porta-vozes do mundo dos mortos para o mundo dos vivos. Respeitam-se uns aos outros e reverenciam o legado que carregam gravado na memória, como nos diz o escritor Hampâté Bâ no seu artigo, “A tradição viva”: “Se o tradicionalista ou conhecedor é tão respeitado na África, é porque ele se respeita a si próprio. Disciplinado interiormente, uma vez que jamais deve mentir, é um  homem ‘bem equilibrado’, mestre das forças que nele habitam. Ao seu redor as coisas se ordenam e as perturbações se aquietam”. (1982:190).

Com a experiência acumulada ao longo da vida, o “mestre da palavra” é, por um lado, uma voz autorizada para tranquilizar os maus espíritos que circulam na aldeia, por outro, é a entidade mais respeitada e, por isso, com poder (e saber) para resolver os conflitos que acontecem no seio da comunidade. A sua missão é trazer a harmonia e o bem-estar ao grupo. Especialistas da palavra falada e conhecedores das tradições e dos hábitos e costumes do seu grupo, esses homens e mulheres são os herdeiros das palavras sagradas transmitidas pelos seus antepassados de geração em geração.

A sua palavra é poder e força, e, por isso, conseguem acalmar os espíritos com uma única palavra. Nas cerimónias rituais, a sua voz é lei e tudo quanto proferem se realiza – com o consentimento dos antepassados e com aplicação imediata por parte do grupo.

Administram todos os acontecimentos da comunidade, sejam de alegria ou de tristeza. Como detentores da verdade comunitária, são consultados para a resolução dos problemas sociais e chamados a darem o seu contributo nas mais diversas atividades, como no caso de acontecimentos marcados pela alegria, como são, por exemplo, os casamentos – para que estes decorram com a tranquilidade necessária.

Aos mestres da palavra é exigida a capacidade de ouvir para poderem responder às demandas sociais, na resolução de conflitos e na coesão social. Daí que eles sejam igualmente mestres na arte de ouvir, e é esse dom e arte que lhes confere a facilidade de falar e de fazer falar. Segundo o historiador Paul Zumthor, na obra atrás referida, A Letra e a Voz, pela boca e pela garganta de todos esses homens (por vezes, das mulheres – mas mais raramente) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos. Assim, a palavra desses mestres é investida de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio.

É pela boca desses especialistas que emana a palavra proclamadora de justiça, advertência, sabedoria, experiência e harmonia social. Como se sabe, grande número dos mestres da palavra foram testemunhas oculares das narrativas e dos fatos que relatam, pois viveram-nos nas escolas de iniciação. Por isso, a tradição que eles ensinam é fiel e funda-se na realidade que eles testemunharam e experienciaram. Venerados pela sociedade, revestem-se de poder para a manutenção da coesão social. Uma palavra pronunciada, um gesto, um discreto sinal são o suficiente para amenizar a perturbação ou desordem ocorrida e repor a ordem na comunidade.

Os ritos de iniciação mais propagados nas duas culturas são: os ritos de puberdade, os ritos de nascimento, os ritos de casamento e os ritos fúnebres. As práticas que integram estes ritos variam de região para região e de grupo para grupo. Embora alguns ritos já não sejam respeitados ou seguidos como em tempos passados, há famílias que ainda cultivam estes ritos como os seus antepassados os fizeram.

Os ritos da puberdade têm como finalidade iniciar os jovens na plena vida da comunidade. Constituem a forma de celebrar, de maneira solene e até, por vezes, dramática, a transição da fase de criança para adulto, e, através delas, se completa e se aperfeiçoa a educação que até aí se tinha processado como que espontaneamente. O objetivo principal destas cerimónias é a preparação das crianças e dos adolescentes para a plenitude do estatuto de adulto, o seu fortalecimento físico e psíquico, a sua iniciação no conhecimento integral da cultura do grupo a que pertencem. Constituem também a sua solene aceitação no seio da comunidade. Nesse ritual, faz-se, em primeiro lugar, a separação do rapaz da família e da comunidade. Durante um período de tempo bastante dilatado, que varia entre um e dois meses, e, por vezes, se estende até mais de um ano, os rapazes passam a viver no mato, enclausurados num recinto vedado que previamente foi preparado para o efeito.

Durante o tempo de segregação são iniciados nas atividades dos adultos por indivíduos que a comunidade considera como aptos para tal função. São lhes dadas a conhecer as conceções religiosas do grupo e os mistérios do culto, são lhes ministrados conhecimentos sobre as práticas mágicas, e também sobre os mitos do seu povo e as tradições do clã a que pertencem. Também lhes são revelados os segredos que até aí lhes eram interditos e que fazem parte da cultura masculina. Aprendem também as danças rituais, as músicas e os cânticos que acompanham essas e outras danças em uso na região. São igualmente submetidos à aprendizagem de certas artes e ofícios e, durante todo este período de segregação, praticam intensamente a pesca e a caça, aprendendo a fazer armadilhas e a seguir os rastos dos animais.

Normalmente, as cerimónias terminam com juramentos solenes, como, por exemplo, o de nunca revelarem o que se passou durante os ritos da iniciação. E, além disso, juram respeitar sempre as mulheres dos seus tios, dos mestres e companheiros do  rito. Estes juramentos vêm coroar todo o cerimonial de aparato e de mistério que caracteriza os ritos da iniciação e criam uma tensão emocional que jamais se apagará no espírito dos iniciados.

O rito do nascimento está ligado ao enterro do cordão umbilical do recém-nascido, momento em que os pais apresentam a criança aos seus antepassados diretos para ser reconhecida como parte da linha dos seus ancestrais, e altura em que o nome escolhido será pronunciado de forma solene. Os mestres são uma presença imprescindível nestas cerimónias.

O rito de casamento (que comentaremos adiante de forma mais desenvolvida) contempla, por um lado, todo um processo de escolha da rapariga para futura mulher, por parte dos rapazes e das respetivas famílias, por outro, um processo de morosa preparação, de ensinamentos e de indicação de inúmeras regras às raparigas, que estas devem aprender antes de partirem para o seu futuro lar.

O rito fúnebre está ligado aos momentos fúnebres, que são sempre considerados como o momento da última transição, ou seja, aquele que leva à entrada no reino dos mortos, onde o espírito se dirige para o reino dos vivos, sendo respeitado e louvado ao longo dos tempos.

Em cada grupo encontramos especialistas da palavra falada, os pensadores e representantes legais, que conhecem a tradição secular do seu povo. Estes pensadores e mestres da palavra estão subdivididos em dois tipos: os conhecedores da tradição esotérica e os conhecedores da tradição exotérica. Por vezes, mas mais raramente, o mesmo tipo de especialistas domina as duas tradições.

Como explica o pesquisador José Adriano Ukwatchali, no seu artigo, “O Fenómeno Religioso na Cultura Umbundu como Processo do Desenvolvimento de Angola” (2014)privilégio para alguns, a tradição esotérica aprende-se e difunde-se secretamente em locais estabelecidos para o efeito, longe do olhar público não iniciado.

Já a tradição exotérica propaga-se em público para o conhecimento geral e para que fique gravada na memória coletiva.

A tradição esotérica está investida do sagrado, de uma linguagem místico-religiosa. Aqueles que não foram iniciados são tidos como profanos e, por isso, não podem ter acesso a esta cerimónia considerada de sacralidade místico-religiosa.

Entre os segredos que o africano bantu conserva dentro de si, aqueles da iniciação são os mais sagrados, porque exprimem o seu “universo linguístico” com uma simbologia, para além das marcas deixadas no corpo.

Segundo a tradição bantu, a pessoa está em permanente construção, pelo que os ritos de passagem servem a finalidade de os ajudar a entrar nas etapas ou fases decisivas da vida, que modificam a sua história, para poderem penetrar mais no mistério da “vida participada”.

O homem pode penetrar sempre mais no mistério da vida participada, mas nunca pode conhecer, manipular ou dominar as imensas capacidades dos dois mundos, tão fecundos em diversidade e possibilidades.

Nas culturas kongo e ovimbundo, os mestres da palavra estão classificados por categorias e segundo a região de atuação. Assim temos: oradores, advogados, sábios, mediadores, comentadores, animadores, tradicionalistas e génios da tradição oral. A incidência, neste trabalho, vai para os tradicionalistas e génios da tradição oral, aqueles que atuam nos momentos e cerimónias de festa e de morte, quando têm lugar as canções de festa e de óbitos (as que elegemos para objeto de estudo deste trabalho).

Os conhecedores da tradição secular dos povos kongo são os “mpovi” e os da cultura ovimbundu são os “onjende”. Segundo o pesquisador Mankenda Costa, o “mpovi” pode ser orador, mediador, advogado, conhecedor ou sábio. Os “mpovi” têm compromisso com o seu “kanda”, ou seja, o chefe de família ou de clã, e são obrigados a serem discretos e a guardarem respeito absoluto para com a verdade. Em nenhuma situação poderão mentir. São orientados pelo seu “kanda” e são consultados em todas as situações. Têm o estatuto de magistrados e estão sempre presentes na resolução de qualquer problema no dia a dia.

São solicitados para intervir na resolução quer dos problemas sociais e litígios intercomunitários quer de problemas intrafamiliares.

Os “onjende” são os sábios anciãos, tradicionalistas, especialistas e conhecedores da tradição secular do seu povo, sendo assim os repositórios da herança cultural comunitária. Guardiões da tradição oral, constituem o elo de ligação entre o mundo visível e o mundo invisível, transmitindo as mensagens do além e fixando na memória coletiva a herança cultural herdada dos seus antepassados. Para eles, é um orgulho ter conhecimento profundo da sua tradição. É um legado que receberam dos seus antepassados, e a sua missão é assegurar a sua perpetuação.

Nas culturas kongo e ovimbundu são eles que detêm o poder da palavra e o vínculo com o sagrado, e nas cerimónias de festa ou de morte tomam sempre a palavra para a resolução das questões e acontecimentos sociais. A sua presença é de vital importância para a realização desses eventos; sem eles, o casamento tradicional e o funeral não se realizam. Por exemplo, a execução de um enterro fica condicionada à sua presença e, sem eles este não se realiza, pois, como porta-vozes da comunidade, os ondjende” estão encarregados de resolverem os problemas e de decretarem a realização das exéquias. Uma das canções de óbito recolhidas coloca-nos perante a “sentença” ou lição de um desses mestres da palavra, que apela à presença de familiares do morto no momento do funeral:

Onambi eyi (Este óbito)

Onambi eyi (Este óbito)

Kayikavole tiñgovali kayikwete epata (Que não apodreça como se não tivesse família)

Onambi eyi (Este óbito)

Kayikavole yaCiyoka yikwete epata (Que não apodreça do Ciyoka)

Onambi eyi (Este óbito)

Kayikavole tiñgovali kayikwete epata (Que não apodreça como se não tivesse família)

Onambi eyi (Este óbito)

Kayikavole yaCiyoka yikwete epata (Que não apodreça do Ciyoka)

Nesta canção fala-se de um corpo que está a entrar em estado de decomposição, porque a família a que pertence o morto não se encontra presente e, sem ela, não se pode realizar o funeral. A canção traduz, antes de mais, um aspeto nuclear da cultura africana: a importância da família em todos os acontecimentos fulcrais da vida humana; por outro lado, a importância dos mais velhos, os “onjende”, os mestres da palavra, na resolução de conflitos, neste caso para a realização de um funeral. Esta canção é cantada por mulheres que dão voz ao mestre e, ao mesmo tempo, ao lamento da comunidade face ao impasse criado pela ausência de familiares para a realização do funeral.

Os mestres da palavra são, portanto, fontes inesgotáveis de conhecimento e de riqueza cultural; é importante reunir condições para extrair toda a sabedoria que vêm acumulando ao longo dos séculos para a conservação e transmissão da tradição legada pelos antepassados.

Extrato do livro: Tradições Nacionais e Identidades: Recolha e Estudo de Canções Festivas e de Óbito Kongo e Ovimbundu.

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