PROFESSOR KIAVANDA AFONSO FÉLIX: “Estudar Muanamosi Matumona e Severino” Ngoenha

“Os filósofos africanos estão espelhados timidamente nos manuais escolares”

Por Gaspar Micolo

Professor de carreira há 33 anos, o filósofo angolano Kiavanda Afonso Félix revisita a problemática do nacionalismo africano na sua mais recente obra. Resultado em parte da sua dissertação de mestrado na Faculdade de Letras da Universidade Agostinho Neto, o livro “Nacionalismo Africano Hoje”, à venda em Portugal, aborda os desafios actuais dos africanos para a consolidação das soberanias conquistadas com as independências. Em entrevista ao Jornal de Angola, Kiavanda Félix lembra que tudo passa pelo desenvolvimento, como aliás defendem renomados filósofos africanos. “Mas o desenvolvimento que devemos buscar deve ser antropológico, diferente daquele que põe a tónica na ciência, na técnica e no mercado, em detrimento do social e do político”, defende.

Acaba de publicar o seu livro sobre o nacionalismo africano, fruto essencialmente da sua dissertação de mestrado em Filosofia. Qual é hoje o papel da filosofia africana num continente com enormes desafios?

A filosofia africana tem um papel muito relevante à realizar no que concerne a consolidação da sua soberania, não só em termos políticos, mas sobretudo social e cultural. Mas isso pressupõe trilhar pelo caminho que leva ao desenvolvimento, um desenvolvimento que tenha o homem como centro e principal destinatário (antropológico). Por outro lado, a filosofia africana deve promover um clima ou ambiente em que predomina uma busca, intersubjectivamente, de soluções para os problemas que nos afligem. Quer dizer que ninguém ou
nenhum grupo de cidadãos deve monopolizar a responsabilidade de resolver os problemas de todos, o que
significa que o diálogo, a concordância e a discordância devem poder imperar no actual contexto.

Lembra no seu trabalho o contributo de Cheick Anta Diop na reivindicação e reconhecimento dos feitos dos africanos para o engrandecimento da humanidade, através do Egipto. Limitando-se à filosofia, como vê espelhados os filósofos africanos nos manuais escolares?

Os filósofos africanos estão espelhados timidamente nos manuais escolares. É mais fácil fazer-se referência a um pensador não africano do que propriamente a um africano. Quando num as- sunto científico se faz referência ou se cita um autor branco, ou quando este, ao explanar qualquer assunto faz o uso de termos técnicos, não se hesita em chamar-lhe doutor. Mas se for um negro igual, dizem logo que está a exibir-se. Por isso é que se assiste a situações em que podendo um negro ter a mesma formação ou capacitação para uma determinada área de trabalho que um negro, ainda assim, o mais remunerado é sempre o branco, o que revela complexo de inferioridade ou crise de identidade. Não tenho nada contra os brancos,  mas entendo que a justiça não tem cor. Um professor meu de psicologia tinha feito um teste, pedindo que desenhássemos uma pessoa, o caricato foi que todos nós havíamos desenhado uma pessoa branca. O que revela o grau de inferioridade que carregamos. Penso que isso pode ser mudado se começarmos a falar de nós com orgulho e sem tabus, citando os nossos pensadores, que são muitos. Issopoderá contribuir para o aumento da nossa autoconfiança, nas capacidades criadoras do nosso próprio estilo de vida.

Como desenvolver uma educação transformadora, ou diria nacionalista, se as realizações africanas e os seus protagonistas não estão reconhecidos nos manuais?

Penso que a resposta é a mesma. Fica muito difícil. Aliás, sabemos que é isso que está e sempre esteve na base da fuga de cérebros em África. A auto-valorização não é xenofobia, é uma necessidade existencial. Paul Ricoeur diz que “eu só não basta para perceber que te-nho valor moral, mas é necessário que o outro reconheça em mim tal valor”. E se os africanos não mudarem a sua forma de olhar, de tratar os próprios compatriotas, corremos (como já tem sido) o risco de sermos predadores de uns e dos outros, e o desenvolvimento que almejamos será sempre adiado para “sine die”.

E refere que o nacionalismo significa hoje redefinir o lugar dos africanos no contexto mundial e desenvolver habilidades que lhes permita resolver os seus problemas…

Claro. Se reparar, a partir de um dado momento, os africanos foram deslocados do lugar onde se encontravam – de auto-determinação, de sujeitos da história para uma condição de subalternos, de  inferioridade, por conta do
processo de colonização em que foram reduzidos ao nível da animalidade. E desde lá para cá a sua existência tem
sido caracterizada pela luta pela própria emancipação. E como sustenta Ngoenha, esta luta compreende as seguintes etapas: 1. Livrar-se da condição de animalidade; 2. Reivindicar a sua integração nas sociedades em que se encontram, do continente berço ou na diáspora; 3. Libertar-se do colonialismo, o que culminou com a proclamação das independências nacionais; mas ainda assim continuamos sendo um povo na periferia porque não contamos entre os povos mais desenvolvidos. De tal modo que a luta hoje é contra este desiderato com o intuito de deixarmos de ser eternos mendigos. E isso depende unicamente de nós, ou seja, embora os direitos nos sejam intrínsecos, o seu reconhecimento conquista-se. E só se conquista com a tomada de consciência dos mesmos. Ou seja, não podemos continuar a ser eternos mendigos e admiradores a ponto de querermos ser como eles, renunciando à nossa identidade, ou deixar que os outros decidam e façam por nós o que poderíamos fazer por nós mesmos, a partir da nossa imaginação e capaci- dade criadora.

Os autores africanos que cita partem da observação segundo a qual a economia hoje comanda o mundo, de tal modo que assim são mensuradas as sociedades pelo seu nível de desenvolvimento. Como podemos partir para uma perspectiva de desenvolvimento endógena, que reflicta a nossa cosmovisão?

Penso que o ponto de partida é a valorização do homem africano, combater através de um processo de educação sério o complexo de inferioridade, combater a corrupção, trabalharmos para que se tenha uma governação virada para o atendimento das principais preocupações, dos pro- blemas básicos dos cidadãos, para uma gestão transparente e recheada de sentido ético.

E no caso de Angola….

No caso de Angola, por exemplo, o investimento nas infra-estruturas básicas (vias de comunicação, energia,
distribuição de água potável, escolas, hospitais) deve ser o enfoque da governação. Isso implica que devemos ser mais responsáveis com os nossos projectos, desenvolvendo habilidades para a sua realização com conhecimento científico, e não improvisar, com odiria Muanamosi Matumona na sua obra “A Reconstrução de África na Era da Moder-nidade”. Penso que estes são os pressupostos para um desenvolvimento endógeno, mas que seja sobretudo um desenvolvimento antro-pológico, porque parte do homem e visa unicamente o homem.

Será por isso que defende exactamente que a “liberdade dos africanos está intrinsecamente ligada ao desenvolvimento”?

Pois, enquanto formos subdesenvolvidos, enquanto continuarmos a depender dos outros para a resolução dos nossos problemas, não seremos totalmente livres. Mas o desenvolvimento que devemos buscar deve ser, como o frisei, antropológico, diferente daquele que põe a tónica na ciência, na técnica e no mercado, em detrimento do social e do político.

“África e os africanos precisam de se libertar do actual sistema económico que lhes está a ser imposto pelo Ocidente, através das políticas do Banco Mundial e do FMI”…

O sistema económico imposto pelo ocidente é desleal, beneficia mais o próprio Ocidente e não os africanos. Por outro lado, é fomentador da instrumentalização das relações interpessoais e interesseiras. Neste sistema económico o homem/a mulher vale por aquilo que tem e não pelo que é, o que faz com que o mundo da vida seja caracterizado pela competição, o “salve-se quem poder”. Deste modo, os valores existenciais, nomeadamente a solidariedade, acooperação, o respeito pela vida, o amor ao próximo, até no seio da família, sejam esquecidos ou relegados para segundo plano. É este sistema que faz com que se tenha a exploração do homem pelo homem, e, por conseguinte, o desenvolvimento que se quer antropológico seja uma mera ilusão. Portanto, os governos africanos, perante tal sistema, devem procurar acautelar a soberania do funcionamento das instituições nacionais ou africanas para o bem das próprias populações.

Já não é só o Ocidente: países africanos devem mil milhões de dólares à China… dívida que, em muitos casos, ultrapassa a sustentabilidade dos seus orçamentos anuais, sem que isso tenha reflexo na vida das populações…

As dívidas avultadas que a África tem reflectem a irracionalidade de muitos governos africanos. E naturalmente quem sai a perder são os cidadãos. E o caricato disso é que temos dirigentes que vão à diáspora construir e comprar
grandes mansões e outros meios com elevadíssimos custos, para benefício próprio. Ou seja, isso revela falta de
comprometimento político e social para com os respectivos países. Tudo isso entrava o desenvolvimento, faz com que a soberania não seja total. Revela ainda falta de patriotismo…

“África deve unir-se”. Como contextualizar hoje essa necessidade lembrada por Kwame Nkrumah, numa altura em que os desafios para o progresso só aumentam?

De facto, é uma necessidade que se impõe e deve-se encontrar estratégias para tal, como por exemplo empreender acções de solidariedade e cooperação em todas as vertentes: política, económica, social, cultural, regional e continental. Isso nos tornará mais fortes e respeitáveis…

Ngoenha e Matumona, dois eminentes filósofos da África de expressão portuguesa, defendem que os processos das independências não são traduzidos na prática, pois não reflectem os verdadeiros ideais dos povos africanos, sendo apenas “ponto de partida” para tal. Qual será o pontode chegada?

Ngoenha corrobora com Marcien Towa quanto ao ponto de chegada. Esse ponto de chegada deverá ser o exercício do direito que se alcançou com o acto jurídico que conferiu aos africanos as próprias independências. É preciso garantir que usufruam, exerçam efectivamente esse direito, por isso já não se trata de o reclamar. Para M. Matumona, esse ponto de chegada é a abertura à modernidade, que significa domínio da ciência e da técnica, o que pressupõe superação do obscurantismo, das técnicas tradicionais de trabalho. Tal como em Ngoenha, em M. Matumona trata-se de se atingir o desenvolvimento, o qual deverá ser sobretudo antropológico e multifacetado. Essa é a meta preconizada, é a que os africanos almejam hoje, para que possam viver dignamente sem ter que continuar a mendigar.

Fruto da luta de libertação nacional e da orientação socialista, Angola e Moçambique, dois países em destaque no livro, herdaram instituições excessivamente concentradas, enquanto estratégia de governação. Em que medida o federalismo proposto por Ngoenha pode representar uma melhoria na redução dessa concentração?

Os Estados africanos modernos, como se sabe, resultaram do processo de colonização. Uma das principais consequências desse processo foi precisamente a fusão dos grupos etnolinguísticos com características distintas, oque produziu ou tem produzido problemas de coabitação. Tem sido prática grupos etnolinguísticos atribuirem
o controlo do poder político e económico aos seus membros, enquanto aos descendentes de outras etnias é reservado cargos muito secundários, por isso têm pouca ou não têm influência nas decisões chaves do país. O que em muitas situações tem resultado em conflitos de carácter tribal, tal como o que aconteceu no Ruanda, o que desestabiliza estes estados. Então, devemos nos perguntar se o federalismo não seria melhor em vez de estados de carácter jacobino? Porque assim, cada grupo étnico se sentiria valorizado e protagonista dos processos que ocorrem no mundo da vida. Mas temos também um senão : a instauração deste sistema político não poria em causa a unidade nacional? Entretanto, temos a Nigéria onde o sistema federal funciona.

Ngoenha é largamente citado no seu trabalho. E neste momento em que falamos, ele acaba de defender a prova pública para a categoria de professor catedrático. Como avalia o empenho do filósofo moçambicano nas questões africanas?

Positivo, e penso que, enquanto  africanos e lusófonos africanos, em particular, devemos nos orgulhar dele. Ele tem se posicionado no paradigma libertário do africano, dentro e fora do continente, tem estado a difundir o pensamento africano. Louvo o papel que o governo moçambicano tem desempenhado, em termos de apoio financeiro e outros, nas suas investigações e nas dos outros.

Perfil

Kiavanda Afonso Félix nasceu em 16 de Setembro de 1970, na província do Uíge. Estudou Filosofia no Seminário
Maior de Luanda “Sagrado Coração de Jesus”, é licenciado em Ciências da Educação, opção Filosofia, pelo Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de Luanda, e mestre em Filosofia pela Faculdade Letras da Universidade Agostinho Neto.

É professor de carreira há 33 anos. Quadro da Direcção Provincial da Educação, Ciência e Tecnologia do Bengo, é professor do Seminário Maior de Luanda, onde lecciona as cadeiras de Filosofia Africana e Cultura Bantu. Lecciona igualmente no Instituto Superior Politécnico Kangonjo. Comentador da Rádio Ecclésia de Caxito, no programa
“Depois da Notícia”, é ainda catequista na paróquia de São João Baptista, em Cacuaco, Diocese de Caxito.

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