Protagonistas revivem a Revolta de Kitexi

Revoltosos, contabilizam cinco mortes. © Fotografia por: Mavitidi Mulaza | Edições Novembro | Uíge

Por Silvino Fortunato

Às 8 horas do dia 15 de Março de 1961, numa quarta-feira, o cipaio Ferraz Fama Panda tocou, pela última vez, o sino que viria a mudar a vida dos colonos da vila de Kitexi e a sua relação com os nativos. O acto ditou, igualmente, a trajectória da luta até à Independência Nacional, que viria a acontecer 14 anos depois.

Os filhos dos colonos mal tinham entrado na única sala de aula, quando ouviram gritos. Depois foi o pânico que se seguiu por todos os cantos da vila. Eram jovens negros, de catanas e canhangulos (armas artesanais) em punho, prontos para pôr fim às injustiças, aos maus-tratos que sofriam há muitos anos.

O ataque terminou por volta das 14 horas. Os números de vítimas até hoje estão desencontrados. Os protagonistas falam em “inúmeros” mortos no seio dos colonos portugueses.  Entre os atacantes, os registos indicam cinco mortos.

De regresso às sanzalas, um sentimento de medo começou a invadir cada um dos revoltosos. Ninguém sabia que respostas teriam dos portugueses. Mas, estavam certos de que teriam consequências.  Manuel Joaquim, 86 anos, relata  que nem mesmo o pastor protestante Costa Marques Miranda, que ensinava a palavra de Deus, todos os domingos, vaticinava o grau de vingança dos colonos. E as consequências não tardaram. “Nós, que não tínhamos armas, como poderíamos nos defender, se os brancos nos viessem atacar?”, questionavam-se.

Mobilização para o ataque

Mobilizados nas aldeias dos corredores Kitexi/ Ambuíla, Kitexi / Uíge e Kitexi/Ndambi a Ngola, vários jovens concentraram-se no sopé da montanha de Talambanza, a cinco quilómetros da vila. Por coincidência, o mesmo local que acolheu o primeiro posto militar dos colonos portugueses, que se instalaram em Kitexi.

No ataque, participaram jovens e adolescentes, maioritariamente de Ndembu a Mbuíla e Ndembo Kitexi. “As aldeias do Ndembu Ndambi a Ngola não participaram, à excepção de Kimbinda”, revela Azevedo Eduardo Campos, 75 anos.
Os organizadores da acção recomendavam, expressamente, que somente participassem do ataque aqueles que não se tivessem envolvido com as esposas na noite anterior. “Os que tinham mulher e tivessem dormido com elas não deveriam participar, para evitar azares”. Também estavam impedidos de fazer parte dois ou mais irmãos. Apenas um podia participar.

Antes de partir para o ataque, montaram uma barreira com troncos de árvores num ponto da estrada, à entrada e saída do Uíge. Depois, marchariam em grupos de dois a três indivíduos, para o ataque de uma loja ou residência de colonos já identificados.

Cada grupo tinha alguém conhecido ou que tivesse boa relação com o visado, para não levantar suspeitas. Fama Panda, o cipaio ao serviço colonial, era o encarregado de tocar o sino, para anunciar o horário da abertura das lojas e de outras actividades administrativas. Era, também, o sinal para o ataque.

“Partimos ao amanhecer, com as catanas escondidas nas roupas que vestíamos. Às cinco horas parámos, próximo da vila, onde aguardamos ansiosos pelo sino do Ferraz Panda”, como ainda se lembra José António Kidimbo, ainda muito lúcido e interventivo.

“Somos nós mesmos, os dos 14, que agora somos como os tractores caterpillars abandonados depois de abrirem caminhos”, observa José Kidimbo e acrescenta: “Pode escrever mesmo isso”, salienta o actual século (conselheiro) da aldeia Kwale.

Manuel Joaquim, outro interveniente, conta que “poucos colonos escaparam”. O Antunes, o dono do único talho do posto administrativo de Kitexi, foi um destes. Tinha conseguido desenvencilhar-se do atacante, mesmo com a catana cravada nas costas. Pegou no seu Jeep, rompeu a barricada. Depois de duas tentativas, atingiu a cidade do Uíge, que dista a pelo menos 40 quilómetros.

Os protagonistas relatam a morte de inúmeros colonos portugueses. Corentino, o adjunto do posto administrativo de Kitexi, foi atacado no próprio gabinete.

Crianças entre os mortos

Questionado sobre a razão de tantas mortes, incluindo crianças, filhos de colonos, o seculo Kidimbo garantiu que, do plano de ataque, não constava a morte de menores. Entretanto, admitiu ter decorrido do fervor dos jovens, durante a acção. Pessoalmente deplorou e ainda hoje repudia.

Ernesto Kabelami tem opinião contrária. Afirma que os excessos decorreram de anteriores práticas violentas dos colonos contra os nativos. “Eles maltratavam e matavam mais crianças negras do que os colonos mortos naquele dia”, afirma, categórico.

Entre os colonos que então viviam em Kitexi, lembram-se do Rei Gonçalves, Abílio Guerra, João Nogueira Gonçalves, Albertino dos Santos, José Rodrigues Nascimento e o José Bastos, “um mulato, que viveu ou ainda vive na província do Cuanza-Sul”, segundo Narciso André Kanga.

Apesar do secretismo da acção, ganhou espaço a traição. José Rodrigues Nascimento não esteve na vila no dia do ataque, por ter sido, na véspera, avisado, pelo gerente negro da sua fazenda, chamada Zalala.

Retaliação ao ataque

Uma coluna das forças portuguesas foi despachada da cidade do Uíge, provavelmente avisada pelo Antunes. Os soldados começaram a queimar os casebres ao longo do trajecto. Antes mesmo de chegarem à vila, foram abatendo, indiscriminadamente, todo o negro que aparecesse nas sanzalas. Em busca de salvação, registou-se uma fuga desordenada para as matas. Mesmo assim, foram perseguidos por aviões, que chegaram depois, para complementar a acção das tropas terrestres.

“Casamento do filho do Nogueira”

Azevedo Eduardo Campos  nasceu na aldeia de Talambanza, arredores de Kitexi. Tinha 14 anos e frequentava a 4ª classe, quando tomou conhecimento e começou a ler os “jornais do Kongo”. Foi um dos que leu vários destes panfletos para os outros. A última publicação tinha instruções precisas para o ataque. Em forma codificada, podia ler-se: “o dia do casamento do filho do Nogueira”.

Norbel Vasconcelos lembra-se de ter tomado conhecimento, pela primeira vez, dos panfletos, num domingo, depois da reza na capela protestante, da sua aldeia, no Kwale.

José Mário da Silva tem 76 anos, tinha 16 quando se informou sobre a circulação dos panfletos por volta do ano de 1958, trazidos por Pedro Vida Garcia, que pedia para seleccionarem as pessoas de confiança para tomarem  contacto e lerem para os outros que não sabiam ler.

A segunda vez que tomou contacto com a presença dos activistas na aldeia foi em 1960. Desta vez, a missão era recolher a contribuição dos nativos, de 2,5 escudos. Foi também sua missão a formação das primeiras células clandestinas na sua aldeia Mungaji, e outras da circunscrição de Nova Caipemba (Kipemba), na actual comuna de Kipedro, Ambuíla.

Pedro Vida nasceu na aldeia Mpete, também na região de Nova Caipemba. Liderou a formação das primeiras células nas aldeias Mungaji, Bumbe e Kakuaku, tendo também estabelecido os primeiros contactos com os pastores das missões da Igreja Evangélica do Norte de Angola, vulgarmente conhecida, na altura, por Igreja Protestante.

José Mário da Silva indica, também, Pedro Vida como o protagonista que ampliou a rede clandestina em muitas aldeias, como Ambuila, Kitoki, Kamababi, Kuale e Talambanza, cujos membros seriam fundamentais na mobilização dos jovens para o ataque contra os colonizadores, que viviam em Kitexi, e mais tarde nas fazendas.

Presentes estavam os nacionalistas (tratados por delegados) Pedro Vida, Pedro dos Santos Manuel, Rodrigues Ngodia e Manuel Bernardo. Alguns panfletos traziam o rosto de Holden Roberto, então líder da UPA, que se encontrava no Congo Belga. Em destaque a frase:  “se não matarem vão morrer, se matarem também vão morrer”.

Numa das três reuniões em que Azevedo Campos participou, os delegados afiançavam que a luta contra os colonos seria generalizada e que duraria apenas 15 dias, o suficiente para poderem alcançar a independência.

Entre os nacionalistas, todos ligados à UPA, constavam Pedro Vida Garcia, que expandia o incentivo à luta no corredor de Kitexi, Ambaca e Ambuíla, Manuel Bernardo, na linha do Uíge e Negage, Laborn, encarregado pela direcção Songo e partes do então Concelho Administrativo do Uíge. Ou ainda Pedro dos Santos, que mobilizava a população na região de Nambuangongo.

Os pastores protestantes

Ernestro Kabelami considera que os pastores da Igreja Protestante desempenharam papéis muito importantes na consciencialização da população para a sublevação em Kitexi. Tirando alguns jovens que sabiam ler e escrever nas aldeias, os pastores eram os mais esclarecidos e, por isso, capazes de interpretar a Bíblia e esclarecerem as razões da sublevação.

Os activistas pensavam que eles podiam relacionar bem a escravatura bíblica do povo de Israel com a escravatura que viviam os angolanos. Daí a aposta nos pastores para lerem os panfletos e repassarem a mensagem para a luta.

Ernestro Kabelami recorda que, no dia do ataque, tiveram a bênção do pastor Loreto António Manuel, que se juntou aos atacantes, tendo lido algum excerto bíblico aos jovens, antes do ataque. “Avante, avante, ó crente, soldado de Jesus”, foi o refrão do hinário bíblico “povo cantai” evocado em canto pelos nacionalistas antes de partirem.

O próprio pastor Loreto, que era “guia de classe” da missão protestante de Kitexi, antes de abraçar a causa da luta, mais tarde se tornaria num dos comandantes da UPA. Além dele, abraçaram o movimento os pastores Pedro Mazengu, Samuel Zacarias Miguel, Matos Matoso e João Gonçalves. Este último era líder de todo o movimento protestante da região de Ndembo a Mbuila. Viria a ser morto, na aldeia de Kikaia, durante a retaliação dos soldados coloniais.

O domínio pelos portugueses da presença destes evangelistas na revolução motivou a morte de muitos pastores, durante a vingança das tropas coloniais, no Ndembu Ambuila e Ndembo Ndambi a Ngola, depois de serem alistados pelos colonos de Kitexi, como patrocinadores da consciência independentista  da população.

Influência do Congo

Inúmeros colonos belgas, fugitivos da revolta independentista, no então Congo Leopoldoville, em 1960, passavam pela vila de Kitexi, usando os corredores de Ambuíla e Uíge. Quando cá chegassem descreviam a situação caótica da sublevação popular no Congo, protagonizada por apoiantes de Lumumba.

José António Kidimbo, 92 anos, foi cozinheiro do chefe do posto de Kitexi. Conta ter ouvido várias conversas sobre o que se passava no Congo, que eram relatadas pelos fugitivos belgas. “Um dia, ouvi um deles, que falava português, a explicar ao meu patrão que havia uma grande confusão no Congo e que os angolanos podiam copiar o que estava a se passar lá”.

Um outro, segundo José Kidimbo, enfatizava que a revolução de Lumumba tarde ou cedo chegaria a Angola e seria melhor que se precavessem de uma possível insurreição, como dos outros lá no Congo.

Na verdade, disse, nos dias subsequentes foram assistindo a cenários de temor e desconfiança por parte dos colonos em relação aos negros e vice-versa, tendo também em conta o permanente clima de confrontações entre os povos Ndembos e colonos, desde que estes se estabeleceram no território.

Tempos depois começaram a chegar aos povoados a informação segundo a qual os sobas e os regedores deveriam seleccionar os jovens, que tivessem alguma escolarização, os catequistas e outros emancipados e encaminhá-los à administração no dia 20 de Março de 1961.

Norbel Vasconcelos, 78 anos, conta que os colonos começaram, depois, a pedir que cada aldeia dispensasse uma pessoa para a construção de uma suposta vedação nas imediações do ainda existente Lago do Feitiço, onde, como diziam, realizariam uma grande festa.

Domingos Cardoso é citado, na narração de José Kidimbo, como sendo um dos mensageiros enviados pelo chefe do posto para transmitir a decisão, recebida com muita apreensão pelos nativos, principalmente por aqueles que já mantinham contactos com os activistas políticos que chegavam do Congo, desde 1958. Estes, já se faziam acompanhar de panfletos, em que ressaltavam palavras como “somos angolanos, temos de sair da escravatura, os outros no Congo já estão livres, nós também teremos de lutar para a liberdade”.

Os panfletos estavam escritos em Kikongo. “Por isso, só podiam ser lidos por jovens que possuíam já a 4ª Classe, que era a classe final naquela época, assim como pelos pastores da igreja, sigilosamente seleccionados. “Nem todos podiam tomar conhecimento da presença dos mobilizadores nem do trabalho que realizavam”, lembra.
De acordo com Ernesto Augusto Kabelami, os panfletos, a que os entrevista-dos chamavam por jornais, vinham dissimulados em lanternas ou em folhas de kikuanga, alimento feito a partir da mandioca.

Ndambi a Ngola

Na região de Ndambi a Ngola, apenas os jovens da aldeia Kimbinda tinham participado na revolta de 15 de Março, porque o Ndembu (regedor), João Wigia, tido como colaborador devoto da autoridade colonial portuguesa, proibiu os homens de irem à luta, naquele dia.

Segundo Azevedo Campos, João Wegia, na véspera, prendeu três homens que o desafiaram a participar no ataque à revelia. Estes seriam libertados durante o enfrentamento, pelo cipaio Luís Costa que, apesar de servir a autoridade portuguesa, abraçou a causa da revolta.

O Ndembu Ndambi a Ngola impedia qualquer manifestação contestatária contra os colonos. Entretanto, durante a resposta da tropa colonial nenhum bairro foi poupado. Todas as aldeias foram incendiadas, porque as casas eram de capim, precipitando os habitantes para as matas. “Muita gente morreu, não havia escolha”, sublinhou Manuel Mbengi, de 82 anos.

O próprio Ndembu João Wegia engrossou o leque dos que se tinham refugiado nas matas, em busca de sobrevivência, o que revoltou os jovens da aldeia contra o soberano. Por isso, pediram satisfação sobre a protecção aos colonos. Suspeitando que o mesmo continuasse a colaborar, denunciando os esconderijos dos fugitivos, o povo da sua aldeia sacrificou-o.

A 13 de Abril de 1961, os colonos, já avisados e reforçados com as forças oficiais do exército português, infringiram pesada derrota aos nacionalistas. “Uns foram levando chumbos nas costas”, lembra Azevedo Campos.
“Diante da resposta firme das forças coloniais, recuamos para as sanzalas, onde passávamos a informação: nós matamos, mas também morremos. E a luta continuou até triunfar, com a Independência Nacional, em 1975.

Morte de trabalhadores

Os oito interlocutores do Jornal de Angola, que participaram no levantamento, desmentem os relatos dos colonos portugueses e que ainda hoje são citados por alguns círculos, segundo os quais foram, igualmente, assassinados, em Kitexi, alguns negros que, saídos do Sul de Angola, trabalhavam nas fazendas, lojas ou residências atacadas.

José Kidimbo, o mais velho de todos, garante que não foi morto nenhum negro ou mulato que trabalhasse com os colonos. Por sua vez, Manuel Joaquim assinala terem recebido orientações muito expressas para não matarem os negros que trabalhassem com os colonos, assim como não deveriam saquear as mercadorias, nem outros bens. “A nossa missão  era apenas atacar os colonos e mais nada. Eram eles que nos maltratavam, eram os que deveríamos atacar”, afirma.

Ernesto Kabelami explica que as mortes dos empregados negros ocorreram nos ataques posteriores, já nas fazendas e no segundo ataque, do dia 13 de Abril, contra a vila de Kitexi. Foram mortos, segundo ele, aqueles que se colocavam à frente, a defender os patrões. “Estes sim, não tinham como não serem abatidos”, disse.

No ataque contra os colonos, na vila de Kitexi, só participaram pessoas que eram nativas das aldeias. Nenhum cidadão nascido noutros lugares de Angola foi comunicado ou mobilizado para o ataque daquele dia. “Somente depois da retaliação colonial e depois de entrarmos e nos fixarmos nas matas, onde fomos obrigados a viver até à Independência, em 1975”, explica.

Narciso André Kanga enfatizou o secretismo que se revestiu a preparação dessa acção, mas acrescenta: “nos enfrentamentos não se escolhem os alvos, não há tempo de ver se é do Sul ou do Norte. Os que aparecessem, a defender o colono, morriam. Nesta confusão até perdemos um irmão, o Alfredo André, que era de Kitexi, que defendia o branco dele”, relata.

Abandonados nas fazendas, por morte ou por fuga, pelos seus patrões, juntaram-se à causa da luta e combateram com os naturais de Kitexi. É o caso de Paulino Couve, que trabalhava na fazenda Alegria, que atingiu a elite da chefia guerrilheira, com a categoria de comandante.

Havia ainda o Simão de Almeida e o Zeferino Francisco, bons combatentes, que lutaram pela Independência ao lado de outros chefes guerrilheiros de Kitexi, como o Loreto António Manuel, da aldeia do Mungaji, regedoria de Nova Caipemba, que foi comandante, tendo como adjunto o Ferraz Fama Panda.

Outros saídos do Sul integraram as unidades comandadas pelos natos de Kitexe, como Pedro João Cruz, Bessa Monteiro, Pedro Afamado, Matseiu, Mabuatu, o Ferraz Bomboko, da aldeia do Kolua, que morreu muito jovem, em 1962, por doença, assim como o próprio José António Kidimbo, que começou como logístico e terminou a guerra como comandante de uma frente, depois de passar por várias formações em Kinkuzu, no então Zaíre.

Da região de Negage (Ngaji na língua hungu) tinha o Neves Kapemba, Cristóvão Matos Baquina, o Joaquim Ngunga (o Mulenvu), enquanto na Vista Alegre e região da Vila Viçosa emergiu Adão Kisonde. José Kambandu, natural de Ambuila, e tantos outros eram chefes guerrilheiros que comandavam as tropas, tal como os compatriotas nascidos no Sul, porque a causa era a mesma, enfatizou José Mário da Silva.

José Kidimbo disse que muitos compatriotas do Sul, com os quais combateu, preferiram fixar-se na região, depois de a guerra terminar, tendo formado famílias. Muitos jovens foram acolhidos nas sanzalas por famílias locais. “Lhes deram raparigas para amigar”, disse para garantir que não faz sentido a narrativa de mortes selectivas de negros.

Organização administrativa 

Kitexi era um colonato de portugueses que se dedicavam ao comércio, como confirmam as características das actuais habitações geminadas entre lojas e residências, que resistem ao tempo. Quase todos os colonos conciliavam a actividade mercantil com a produção de café nas florestas que circundam a vila.

À época, a circunscrição de Ndanji a Kitexi dependia da jurisdição administrativa do Cuanza-Norte até à sua desintegração e fixação à província do Uíge, em Julho de 1961 (portaria 11740/26/61) para facilitar a contraposição das investidas dos nacionalistas.

O Concelho do Dange, cuja sede era o colonato de Kitexi, administrativamente era formado pelos Ndembu a Mbwila, Ndambi a Ngola, Ndembu a Mufuki e Ndembu a Kitexi, sendo habitado desde sempre pelos povos Ngola e Hungu, cuja coabitação com os colonos nunca foi pacífica.

Os Hungu encontravam-se organizados em 15 aldeias: Kitoki, Kimasabi, Talambanza, Kwale, Bumbe, Mungaji, Katenda, Aldeia, Nzenza Kamuti, Kimulangi, Kahunda, Tabi, Kombo, Kimukanda e Katulo. Os Ngola tinham seis aldeias: Mbwila, Kimbinda, Lueji, Taela, Kakuacu e Ndambi a Nngola.

A cada um destes Ndembu correspondia a uma regedoria, na organização administrativa colonial. Kitexi acolhia as localidades da Vila Viçosa, Vista Alegre e Kambamba, que na opinião de Arlindo de Sousa, um português que residiu nesta região até 1961, estas eram meras povoações comerciais.

A desanexação de Kitexi do Concelho de Ambaca e Ndanji do Concelho dos Ndembu, ambos integrantes do então distrito do Cuanza-Norte, foi forçada na sequência dos acontecimentos do 15 de Março. O objectivo era corrigir a distância de 300 quilómetros que separam Ndalatando a Kitexi em relação aos 40 da sede do Uíge a Kitexi. Para facilitar as manobras militares contra os insurgentes em Ndanji a Kitexi (Dange/Quitexe na ortografia portuguesa) foi então integrada na jurisdição do Uíge.

Testemunho de Joaquim Camacho *

15 de Março de 1961

Quando a guerra começou, em 1961, o regime de Salazar dava sinais de esgotamento, acompanhando a decrepitude do seu chefe. Salazar tinha, então, 72 anos e presidia ao governo havia trinta anos. No início desse ano ocorrem conflitos já reveladores de que Portugal não ficaria imune aos “ventos da história”. O mal – estar vindo do Congo (antigo Zaire), que se tornara independente no ano anterior, atingiu em primeiro lugar a chamada Baixa de Cassange, no Norte de Angola, com a revolta dos trabalhadores e produtores de algodão da empresa Luso – belga Cotonang, por razões de ordem laboral e maus tratos, mas também já sob a influência do ambiente anti-colonial.

Nos primeiros meses do ano, acompanhando as acções dos guerrilheiros da União dos Povos de Angola (UPA), militantes independentistas assaltaram as prisões de Luanda, o paquete Santa Maria foi tomado nas Antilhas por um comando de opositores ao regime de Salazar sob o comando de Henrique Galvão e, em Lisboa, uma conspiração sob a forma de pronunciamento militar, chefiada pelo ministro da Defesa, general Botelho Moniz, com suposto apoio americano, falhou a deposição de Salazar, mais por faltas cometidas pelos conspiradores do que pela força dos apoiantes do regime. Os acontecimentos de grande violência de 15 de Março de 1961 levados a cabo pela UPA no Norte de Angola, nos Dembos, Uíge e Cuanza-Norte, permitiram a Salazar mobilizar a sociedade portuguesa a seu favor e da sua política de defesa do chamado ultramar.

A sociedade portuguesa uniu-se maioritariamente à volta do regime e do seu chefe, seguindo a proclamação “para Angola rapidamente e em força!” – excertos do discurso de Salazar proferido na ocasião. As operações de reconquista das áreas ocupadas pelos guerrilheiros da UPA, pelos contingentes militares portugueses mobilizados e transportados a partir de Maio foram bem sucedidas e, após violentos confrontos entre as partes, as forças portuguesas, com meios bélicos mais sofisticados, tomaram de assalto a emblemática povoação de Nambuagongo e da expulsão dos guerrilheiros da UPA da região da Pedra Verde, até então bastião e posto de comando dos homens da UPA.

*Jornalista e investigador social

Fonte: JA

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