REVIVER OS BUENGAS DO PASSADO AO PRESENTE

Por Silvino Fortunato

Os primeiros habitantes, do lugar que hoje é Nova Esperança, a sede do município dos Buengas, pertenciam à família de Kinanga Kyia Nsingui que vivia na outra margem do rio Kwilu, no território do Nsoso, que desalojara à força famílias do reino dos Bayaka, da região do Kwangu, actualmente município de Kimbele, conforme contaram ao Jornal de Angola cinco líderes tradicionais desta região da província do Uíge

Buengas é uma designação originária do rio (Mbwenga), um dos mais importantes desta região, com bastantes espécies aquáticas e outros recursos naturais. A designação foi aportuguesada por influência da potência colonial, passando assim a chamar-se rio “Buenga”. Ao nome original também foi acrescentada a letra “s”, por haver duas sub-regiões com a mesma denominação (Buenga Norte e Buenga Sul). Daí a designação município dos Buengas.

“Segundo os mais velhos, o velho Kinanga surpreendeu-se, a dado momento, quando se encontrava na lavra com os seus filhos, com uma fumaça que lhe aparecera do outro lado, mas à beira do rio Kwilu”, começou por explicar Pedro Kagioya, regedor de Kukaka, que controla 19 sobas, acrescentando que ao primeiro impulso para ir ao encontro da fumaça, atravessando o caudaloso rio Kwilu, o velho foi impedido pelos filhos, que lhe pediram para voltarem à aldeia a fim de buscarem reforços.

Com o filho primogénito Panzu Kinanga, o segundo Nzemba Kinanga, o terceiro Nlandu Kinanga, o quarto Nzembele Kinanga, o quinto Ntapa Kinanga e com outros reforços requeridos nos assentamentos Bansoso, atacaram posteriormente os Bayacas com mocas e outros objectos contundentes, insuficientes para desalojar os adversários que se encontravam munidos de flechas. Naquela época Kinanga Kyia Nsingui controlava, entre outros, os clãs Ndembo za Kôngo, Kinguanza, Kimayala, Nlasa Kongo e Nzenza, conforme aludiram os anciãos das regedorias dos Buengas.

Os Bansoso não resistiram, dado o desajuste do arsenal, disse António Panda Mukau, da regedoria de Kanvau, administrada por 25 sobas, que adiantou que os agressores foram obrigados a recuar, indo comprar armas, que chamavam, naquela altura, por “Yangu”, com as quais o grupo dos Kinanga começou a disparar mesmo antes de atravessarem o rio Kwilu, continuando depois em direcção aos oponentes.

O poderio das armas de fogo, provavelmente adquiridas aos primeiros colonos com quem mantiveram contactos a partir de Mbanza Kongo, Mbanza Ndamba e outras localizações bakongo, os bayakas foram forçados a retirar-se, sendo perseguidos até atravessarem o rio Bwenga, que antes se chamava Nkulu Fuku.

“Os Kinanga perseguiram os donos da terra até atingirem o Kwangu, de onde nunca mais regressaram, senão já muito posteriormente, na base das boas relações que se estabeleceram depois e que permite, até hoje, a migração (casamentos) entre os povos”, segundo lembranças das histórias que Francisco António Kisanga, regedor de Kamayadidi, disse ter ouvido dos avós e outros seculos da sua regedoria.

Este mostrou ainda que o exemplo desta relação está na origem da troca dos nomes do rio Nkulu Fuku para Buengas, marcada pela morte de um velho do clã Kimbuku, da região de Yalamu, que se chamava Kambuenga, que pretendia visitar parentes em Kimbele, que fica do outro lado deste rio e que morreu afogado nas imediações do povoado de Kiteke Mpanzu.

O impacto deste triste acontecimento ecoou por muito tempo e por várias regiões, quer deste lado, quer do outro, disse, adiantando que a constante referência do lugar do afogamento resultaria na troca do nome Nkulu Fuku para rio Buengas dos nossos dias.

 Povoamento das terras conquistadas

Com a conquista das terras aos Bayaka, prosseguiu Francisco António Kisanga, as famílias Bansoso começaram a atravessar o rio Kwilu e constituíram novos ajuntamentos populacionais.

Esclareceu que havia quem chegasse sem esposa, sem filhos ou outro parente, e, quando constatava a fertilidade dos solos e as boas condições para se viver, voltava em busca da família e assim foram criando as sanzalas. 

Por causa dessa invasão migratória, que se seguiu à expulsão dos Bayaka, que terá acontecido por volta de 1900, hoje a maioria da actual população que vive no município dos Buengas é Bansoso, embora haja também os Bayaka.

Entretanto, um breve historial sobre o município, contido numa brochura da Administração dos Buengas, refere que depois de muitas batalhas e negociações as áreas foram repartidas e as populações fixaram-se, estando cada grupo numa determinada sub-região, até que foram estabelecendo relações de comunicação e outras formas de convívio comunitário com a criação de pequenos grupos familiares (clãs) e de Nfumu Vata (chefes da comunidade).

“Hoje vivemos reconciliados e em harmonia. Até se migamos (contracção de casamentos). Uns vêem buscar mulher aqui, outros vão arranjar ali”, sublinhou Samuel Mpaxi.

 Morte de Kinanga kya Nsingi

Os vencedores da batalha contra os Bayaka, como era costume, foram levar a boa nova da conquista de mais terras ao soberano do Nsoso, que não podia ser abraçado, nem tocado por ninguém, senão pelas esposas. Entretanto, “Kinanga Kyia Nsingui, do Clã Kikunga, quando chegou, esquecendo-se da tradição, pegou e abraçou o homem, um gesto que desagradou os aristocratas de Me Nsoso, que de imediato pediram a sua morte pelo atrevimento”.

Mesmo com os apelos de clemência, para não ser executado, o homem foi mesmo morto, sendo-lhe cortada a perna que foi entregue ao seu filho primogénito. “A perna do seu pai, que matamos, foi cortada e você vai informar isso ao povo de onde vocês saíram, como testemunho do seu falecimento”, disseram os aristocratas da corte aos Kinanga, que foram repassando a notícia do infortúnio por toda a região antes controlada pelo pai, até  às terras de Kingola.

Conforme Samuel Mpaxi, o coordenador da Associação das Autoridades Tradicionais do município dos Buengas, que controla 320 sobados, foi na margem do rio Kwilu que foi enterrada a perna de Kinanga Kixina, num ritual conduzido pelo filho primogénito Panzu Kinanga.

Os primeiros colonos brancos

Os primeiros colonos brancos chegaram a  Kimalongo, no antigo posto administrativo de Kwilu Futa, descendo para o Kwilu Kabonzo. Segundo o testemunho de Pedro Kagioya, o velho Kamalongo, que vivia no Kwilo Futa, foi ao encontro do velho Kukaka, informando-o que recebera brancos nas suas terras, mas que não havia provocação nem qualquer conflito com eles e que também gostaria de  que nos Kimbwenga se evitassem confrontos. 

Ele dizia, de acordo com o mais velho Kagioya, que “se vocês lhes fazerem confusão, eles vão responder e, como eles têm armas, que não temos, então haverá morte do povo, e nós não queremos isso”, conselho que foi aceite pelo velho Kukaka, que garantiu repassá-los aos demais chefes dos clãs que estavam sob sua responsabilidade, indo ainda até às localidades de Kimanfumba.

E assim procedeu o velho Kukaka, apelando aos outros soberanos para a observância da paz numa provável relação com os colonos brancos, encontrando apenas resistência da parte do velho Kamika Mbua (Pêlos de Cão), que foi o único a rejeitar o apelo. Muito depois Kamika Mbua  agrediu mesmo os colonos, e, no meio da contenda, foi morto.

Os colonos seguiram posteriormente para as terras do velho Kukaka, que, entretanto, por medo, se pôs em fuga, conjuntamente com o seu povo, encontrando refúgio na mata de Kisendengele. A sua terra, Kituia Kukaka, ficou abandonada, já que nem velho nem cabrito ficou. “Todos recuaram sem guerra”, explicou Pedro Kaguya, que se apresentou como descendente dos Kukaka.

Mesmo aí, continuou, foram perseguidos pelos brancos, sendo finalmente alcançados. O povo tentou fugir, mas os colonos desaconselharam a fuga, dizendo que não queriam fazer mal algum. E orientaram, então, para que todos voltassem às aldeias que tinham abandonado. 

Os Kukaka disseram que não possuíam capacidade para fazer guerra, pelo que anuíram ao pedido de coabitação feito pelos colonos. E, para simbolizar o início da convivência, “e porque na tradição era assim, não se pode conversar com o visitante com fome”, o velho Kukaka desamarrou um dos seus cabritos e o ofereceu aos brancos. Estes pediram que lhes oferecessem dois homens para engrossar as suas fileiras militares e “para lhes ensinarem a proteger as comunidades”.

Os dois homens entregues foram levados até ao Kwangu, para os lados de Kimbele. “Depois do seu regresso foi fundada a primeira vila nas terras de Kukaka”, disse Francisco António Kisanga, o mais jovem entre os anciãos.

Entretanto, acrescentou, ao analisarem que a população daqui era pouca, decidiram abandonar a região, seguindo para Kinkanda, que é hoje a aldeia Kinkoxi a Mbua, onde entenderam instalar a vila. Lá ficaram até cerca de um ano. Daí também saíram e foram até uma montanha que chamaram “Montanha de Farta”, que também abandonaram por falta de rios.

Então, disse o ancião Francisco António Kisanga, subiram até à actual comuna do Bwenga Sul, na área dos Kigangu, onde fundaram a vila que naquela altura era chamada Tuti. Isto aconteceu entre os anos 1940 e 1945. “Na nossa tradição, deve haver sintonia entre os sobas e as sereias e eles não se deram bem com elas. O povo dizia que ‘como as sereias não nos querem aqui, vamo-nos embora’, o que lhes fez voltarem novamente para Kukaka, que era já dirigida pelo soba Benkikoxi, natural de Ketele Beni, que tinha como adjunto Mbala Faxi, com quem os brancos conversaram, pedindo-lhes um lugar para colocarem o seu assentamento”.

“Os colonos disseram: ‘Como o espaço é vasto, vocês descem mais um pouco’, indicando aos nativos a parte de baixo do monte para construírem os seus casebres. E os brancos ficaram no cimo do monte, onde edificaram os primeiros assentamentos que chamaram Nova Esperança”, precisou o mais velho Francisco António Kisanga. Sendo assim, o soba Benkikoxi mobilizou a sua população e abandonaram o lugar, indo construir na parte indicada pelos colonos.

Deixaram o Kitekebeni para os brancos chefiados por Ratinho, que orientou a colocação das primeiras residências para os seus compatriotas, enquanto ele regressava em busca de outros colonos. 

Relação com os ocupantes coloniais 

Naquele mesmo período, o velho Kukaka também conquistara a área do Kituia, onde mais tarde se tornaria regedor, indicado já pelos colonos. Kukaka fazia-se acompanhar do velho Kanvuabu, que se insurgira também e fizera guerra contra os ocupantes coloniais, na fase inicial da relação. Na mística popular, Kanvuabu tinha poderes que tornavam as sanzalas  em lagos.

Havia também o Katotina, que se transformava em mulher, truques que “baralhavam” e enfraqueciam os brancos, até que Kukaka determinou que ninguém mais fizesse guerra contra os brancos, enviando recomendações até ao Mbianda Ngunga, que se encontrava nas terras que conformam hoje a comuna do Buenga Sul, “para que a população não continuasse no sofrimento”.

O colono de nome Fernando, que dirigiu a região de 1932 a 1939, e a quem chamavam também Ratinho, teria vindo do Uíge para os Buengas, provavelmente como comerciante. Foi ele quem abriu a primeira fazenda em Kiteke Beni, onde ainda estão os escombros da sua primeira casa.

Ele indicou que a vila ficasse no centro, já que muitos colonos queriam edificar as suas casas no perímetro da sua fazenda, tendo pessoalmente participado na organização da vila de Nova Esperança, quando ainda essas possessões territoriais eram controladas pelo posto administrativo de Sanza Pombo, de onde foram desintegradas em 1971.

Com o Buenga Sul desanexado de Sanza Pombo, e Kuilo Kabonzo do posto administrativo de Maquela do Zombo, foi então elevada à categoria de posto administrativo a localidade dos Buengas, que juntou a sua sede ao colonato da Nova Esperança, que também fora retirada do controlo de Maquela do Zombo. A autoridade portuguesa indicou então, a Flaviano como primeiro chefe do novo posto administrativo, sucedendo-lhe, respectivamente, António Clarim, chefe Mambutu (um colono assim apelidado pela sua brutalidade), Manuel Xambera e outros. “Nós conhecemos todos esses brancos. Dentre eles o mais complicado era o chefe Mambutu, que não brincava, não queria saber se este é soba ou regedor. Quando tivesse de tomar as suas medidas, tomava”.

“Se não tivesse homens para o contrato, que era roçar fazendas, o homem castigava o soba, amarrando-lhe e surrando-o. Mas o senhor Ratinho e mais o Flaviano eram muito bons, na opinião dos mais velhos, que acrescentavam que ‘o Chefe Clavim ensinava e permitia até os autóctones a abrirem fazendas pessoais. Não gostava de ver pessoas no povoado sem fazerem nada’”.

Capim para facilitar a circulação das viaturas 

Sobre o pavimento da estrada, os soberanos disseram que sempre houve muita areia. No tempo colonial, as autoridades mandavam colocar capim sobre o chão arenoso, o que facilitava a mobilidade das viaturas.

“O chefe Mambutu convocava a população através dos sobas para cortarem capim, que era colocado na via. O soba que não colocasse capim na sua jurisdição era sujeito a castigos”, lembrou Pedro Kagioya, o regedor de Kukaka, cujas palavras suscitaram um sarcástico sorriso, que provavelmente teria sido facilitado pelos copos de “malavu ma husu” e “madimba” (bebidas típicas da região, cuja seiva é retirada de plantas de uma família de palmeira), que eram empurrados para dentro do peito.


“Parece que o mundo está a envelhecer” 

O colono Clarim, quando cessou as funções de chefe de posto, de acordo com os interlocutores do Jornal de Angola, dedicou-se à vida de comerciante, tendo erguido na Nova Esperança a sua loja. Para as nossas fontes,  o Clarim não gostava de pessoas preguiçosas ou que vivessem em más condições. Entregava folhas de chapa às populações para a cobertura das casas, que eram pagas no período da colheita de café, que a região muito produzia.

“As casas de pau-a-pique, cobertas de capim, apareceram já depois da Independência, por causa da guerra”, disse Pedro Kagioya.

Quando questionados sobre a existência de inúmeras ravinas ao longo da via ou se a estrada esteve sempre como está agora, e se estava como é que o branco conseguia transportar o café, os mais velhos, cépticos, começaram por dizer que o branco tinha asfaltado três ou quatro quilómetros.

Sustentaram que não havia tantas ravinas, e muito menos com as grandes dimensões de hoje em dia, precisando que existiam três ou quatro ravinas de pequenas dimensões ao longo de 90 quilómetros. “Hoje, não sei se é por vontade de Deus, o Criador, ou se o mundo é que está a envelhecer, para aparecerem tantas e tão grandes ravinas. As ravinas no tempo anterior não são as mesmas do tempo actual”, salientou Samuel Mpaxi.

Para ele não havia sequer cinco ravinas. “Agora, como o mundo está a envelhecer ou se Deus não sei onde quer nos meter, vemos hoje ravinas assustadoras e cada vez mais piores. Surgem e crescem novas ravinas, a cada época chuvosa”.

Infra-estruturas coloniais

No tempo colonial, o hospital da Nova Esperança ficava no recinto do quartel da tropa, onde também foi construído, mais tarde, o tanque (elevador e descarga de água) e um armazém. “Estava dentro do quartel, onde a população ia para ser tratada”, sendo alguns dos próprios militares os primeiros enfermeiros da região. Era um posto hospitalar militar, onde havia também as casernas dos militares, que chegaram a esta região depois dos primeiros colonos.

As escolas tinham sido colocadas nas regedorias, mandadas construir pelos colonos, para o controlo dos sobas das sanzalas circunvizinhas. Todas as sedes das regedorias tinham uma escola, onde estudavam as crianças em idade escolar das aldeias. Até as que moravam distantes tinham de andar a pé para irem estudar nas escolas das regedorias.

Havia casos em que as crianças iam às escolas de outras regedorias que ficavam mais próximas das aldeias em que viviam, para encurtarem as distâncias, que chegavam a mais de 10 quilómetros. Obrigatoriamente tinham de percorrer as longas distâncias para evitar as ameaças do chefe Mambutu, que andava de bairro em bairro para ver se as crianças iam mesmo à escola. De acordo com Pedro Kagioya, “quando encontrasse crianças fora da escola, o soba do bairro a que pertencia a criança levava palmatórias”.

Depois da Independência, somente depois da paz alcançada em 2002 é que começaram a ser construídas escolas em muitas aldeias e reduziram as distâncias percorridas pelas crianças, porque o colono somente deixara escolas em Kituia, Kinpanda Mbunga, Kingumba, Nvuanbu Kinioka Mbuenga e em Kipete.

Como lembra o regedor António Panda Mukau, da região de Kanvau, foram essas escolas que deram a formação de base a inúmeros quadros que dão hoje o seu contributo ao município, à província e ao país como procuradores, engenheiros, doutores, decanos de universidades, administradores municipais, oficiais superiores da Polícia Nacional e das FAA.

Segundo dados da administração local, a população dos Buengas é composta por vários subgrupos etnolinguísticos Bakongo, sendo os Bantsosso 85 por cento, os Banpombu ou Amonyá 10 por cento e os Bankanos 5 por cento. Existem também os Bayaka, igualmente com a última percentagem.

 

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