Somos descendentes dos reis do Congo: os Dembos.

Sobas dos Dembos (Foto de tudosobreangola.blogspot.com)

Por Bruno Pastre Máximo

No reino de D. Pedro Bemba houve em S. Salvador do Congo uma fundação notável. Os dembos Gombe á Miquiama dos lados do Encoge e Quibache Quiamubemba do Alto Dande, acompanhado cada um de 200 homens, vieram perante o rei para decidirem direitos de primasia. Ambos se diziam descendentes de filhos dos reis do Congo.

Durante todo o século XIX os potentados dos Dembos, localizados na região norte da atual província do Bengo, trocaram cartas com o Ntotila, basicamente solicitando títulos de nobreza, e bens de prestígios concedidos pelo Ntotila através de ligações comerciais com os europeus. A região dos Dembos, segundo Almeida, “(…) se chama a uma região angolense muito extensa, no interior de Luanda, cujas terras se alargam do Dande ao Zenza e ao Lumbiji; estão ocupadas por potentados gentílicos, outrora dependentes, politicamente, do rei do Congo, a quem consideravam pai (espiritual).”

Não era somente os bens que importavam mas o fato de terem sido adquiridas junto ao Ntotila, que a concedia prestígio e realeza326. Em cartas recolhidas por Almeida junto aos Dembos, fica evidente esta profunda ligação, pelo menos no século XIX, a ponto do português se sentir ameaçado: “Conquanto platônico, era perigoso o prestígio que o rei do Congo ainda exercia sôbre os Estados démbicos, dos quais se dizia pai, e todos êles, orgulhosamente, se julgando o seu primeiro filho.”

Este encontro dos Dembos Gombe á Miquiama e Quibache Quiamubemba com o Ntotila citado na epígrafe foi antecedido por uma grande diplomacia, envolvendo os Dembos e o Ntotila. Envio de embaixadas, presentes, fundações com os representantes para resolver a questão sobre o parentesco estavam no cotidiano do monarca e dos Dembos.328 Estas questões de títulos e bens de prestígio iriam culminar na importante fundação (reunião) ocorrida em 1902, muito simbólica para entendermos o lugar do Ntotila no início do século XX. O Ntotila no momento era D. Pedro Bemba (D. Pedro VI), empossado após a morte de D. Henrique Nteyekenge, no ano de 1901. Para a sua posse a participação portuguesa foi crucial, tendo sido escolhido pelo residente Faria Leal e os padres católicos. A presença portuguesa, mesmo não sendo de controle sobre a região, que estaria “pacificada” somente após a revolta de Buta em 1914, era já relevante a ponto de influenciar decisivamente nas ações e atitudes das lideranças locais.

Estes dois Dembos saíram de suas zonas de proteção, correndo risco de serem perseguidos pelos portugueses (cujo domínio contestavam), para resolver uma questão crucial, perante aquele que detém o poder da ancestralidade.

Vieram do interior de Loanda para que o rei do Congo decidisse um pleito entre ambos. (…) O pleito era o seguinte: ambos se diziam filhos dos antigos
reis do Congo e ambos queriam preferências e nobresa. Comunicava-se que o rei tinha de decidir e consultara a residencia por achar o assunto complicado e
temer que uma decisão mal avisada podesse originar desavenças.(330)

A fundação com os Dembos foi frustrante para eles devido aos parcos conhecimentos do Ntotila, que inclusive se apoiou junto ao residente português Faria Leal
para o ajudar a resolver esta questão. Se isto mostra a decadência do Ntotila, demonstra, no entanto, o grande simbolismo, poder e status que o o seu lugar detinha dentro da região.

O seu lugar na paisagem dos locais era central, referencial de ancestralidade e descendência nobre. Ser filho, parente, descendente de um Ntotila era constituinte único de honra e nobreza. Isto também mostra o alcance do Ntotila entre os kongo da região, e mesmo de outras zonas mais longínquas, ficando muito claro que o lugar do Ntotila permanecia entre os habitantes da região, mesmo do outro lado do rio Zaire. Barroso relatou o envio de presentes do Stanley-Pool (atual Kinshasa, RDC) para o Rei:

Affirmam-me contudo que ao N., não distante do Stanley-Pool, engordam o cão para o comerem. Parece-me verdadeira esta affirmação, pois haverá uns
quatro annos o rei do Congo [D. Pedro V] recebeu d’aquelles logares um bonito cachorro, muito gordo; era presente de um soba que o enviava com a indicação de que era para comer, o que o rei não fez. (331)

Van Wing em pesquisa no então Congo Belga escreveu sobre a relação dos habitantes da sua região com o Ntotila:

Depois de 1885, os Portugueses administram efetivamente o país. Os sucessores dos antigos reis de São Salvador, controlados restritamente, desfrutam, apesar de tudo, de uma autoridade moral bastante grande; ela se estende menos sobre as vilas ao redor de sua residência, que sobre as povoações longínquas que não podem ver de perto o espetáculo da decadência de seu grande chefe.(332)

A obra de Van Wing, de 1923, relata que a autoridade moral do Ntotila ainda era grande, e o interessante é a relação com o imaginário, pois aqueles que guardavam uma imagem idealizada do passado o respeitava mais que aqueles que o conheciam pessoalmente. Respeitavam mais o lugar pois não tinham que conviver com a pessoa.

Outras etnografias relatam esta reivindicação de parentesco de diferentes regiões com o Ntotila, como os bakongo da Lunda norte, denominados de Mussucos, distantes 500 quilômetros de Mbanza Kongo, “Os Mussucos dizem-se emigrados das proximidades de S. Salvador e parentes dos Reis do Congo (…) e afirma-se que conservam religiosamente escondido um sino que, na sua vinda do Congo, trouxeram de S. Salvador”. O Ntotila era vivenciado e experimentado enquanto uma entidade ancestral, possuindo autoridade e legitimidade para resolver as questões regionais e que envolviam um sentido coletivo,
entendido como ancestralidade compartilhada.

330 FARIA LEAL, José Heliodoro. Memórias D’África. 1914. p. 315.
331 BARROSO, Antônio. O Congo, seu passado, seu presente e seu futuro. Boletim da Sociedade de
Geografia de Lisboa. 8ª Série, Nºs 3 e 4. 1888-1889. p. 195.
332 “Despuis 1885, les Portugais administrent effectivement le pays. Les successeurs des anciens rois de San Salvador, étroitement surveillés, joiussent malgré tout d’une autorité morale assez grand; celle-ci s’etend moins sur les villages environnant leur résidence, que sur les populations éloignées, qui ne peuvent voir de prés le spectacle de la déchéance de leur grand chef.” WING, Van. Études Bakongo: sociologie, religion et magie. Bruges: Desclée De Brouwe, 1959. p. 35.
fonte: www.mbanzakongo..com
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