Testemunhos para Venâncio de Moura, homem que deu a vida à diplomacia

Por Xavier António

São passados 22 anos desde o falecimento do antigo ministro das Relações Exteriores, entre 1992 e 1999. Venâncio de Moura, figura incontornável da diplomacia angolana, foi um dos signatários do Protocolo de Lusaka, pelo Governo angolano, em Novembro de 1994. Dedicou 23 anos à diplomacia, um como embaixador na Itália e 22 nos cargos de vice e de ministro das Relações Exteriores. Na mesa-redonda promovida pela Academia Diplomática, em Luanda, familiares e colegas lembraram o seu percurso político e diplomático.

Venâncio da Silva Moura recebeu a primeira educação do tio Pedro Banza, que tinha a missão de educá-lo. O tutor foi um dos primeiros pastores formados na Missão Congregacional do Norte de Angola, província do Uíge, segundo descreveu Lucas Ngonda. O deputado à Assembleia Nacional contou que o antigo ministro foi para a Missão estudar, ainda em 1948.

“Eu fui um pouco mais tarde, mas frequentámos a mesma Missão. Ele na sede e eu na Missão de Kikiamo”, detalhou.

Ao intervir recentemente numa mesa -redonda, promovida pela Academia Diplomática, sobre a vida e obra do antigo diplomata, Ngonda lembrou que o velho Peterson, missionário que dirigia a Missão de Kicaia, nutria muita simpatia por Venâncio de Moura.

O político realçou que, quando Venâncio de Moura atingiu a 3ª classe do Ensino Primário, o velho Peterson levou-o para a Missão de Kicaia. Na altura, adiantou, não havia ensino nas missões evangélicas. O ensino foi sempre missionário.

“Não havia 4ª classe. Fazíamos a 1ª até à 3ª de forma rudimentar. E depois retomávamos as mesmas classes. Era assim o ensino na época. O Venâncio conseguia percorrer este ciclo com um brio extraordinário”, afirmou.

Foi no Uíge que o antigo ministro das Relações Exteriores concluiu a 4ª classe e depois regressou a Sanza Pombo. “O meu tio, irmão do meu pai, convidou-o para ser professor na Missão de Vila Nova, uma vez que já tinha concluído a 4ª classe”.

Ida ao Congo Belga

Lucas Ngonda contou que Venâncio de Moura viajou para o Congo Belga, a fim de continuar os estudos. “Foi recebido por um tio, Francisco Tomás, que era o nosso patrono em Kinshasa”.

Nesta altura, o povo congolês batia-se pela independência, de tal modo que, no dia 4 de Janeiro de 1960, houve distúrbios em Kinshasa. E os belgas culpavam os angolanos, por terem formado partidos políticos e associações. Com isso, o Governo da Bélgica tomou a decisão de expulsar os compatriotas que se encontravam naquele território.

Venâncio de Moura foi um dos primeiros regressados da República Democrática do Congo, em 1960. “Encontra-me em Luanda, onde eu já vivia há algum tempo. Foi acolhido por um tio, que era cozinheiro na casa do advogado Eugénio Monteiro Ferreira, onde o mesmo fazia as refeições”.

De regresso a Luanda, confrontou-se com o problema do registo de nascimento. Como tinha boas relações de amizade com os padres da Igreja Católica São Domingos, sobretudo com a madre Santana, pediu para ser baptizado. É daí onde sai o nome Venâncio de Moura.

“Mas o seu verdadeiro nome é Venâncio Mwanza Ndengue. Ele, o Makala (um irmão espiritual) e eu formámos um trio e nos inscrevemos no ensino nocturno, no Liceu Salvador Correia (actual Magistério Mutu-ya-Kevela), onde frequentámos os primeiros exames em 1962. O Venâncio e o Makala concluíram o primeiro ciclo. E eu reprovei, tendo concluído apenas no ano seguinte”, esclareceu.

Primeiro emprego

Depois da abertura do curso de auxiliar de enfermagem em Luanda, lembrou Ngonda, Venâncio de Moura decide abraçar o desafio. “O Makala já trabalhava na Companhia de Água e Luz. Eu na Franco Angola, uma representante de medicamentos”.

Os parceiros concorreram a vagas no curso de Enfermagem e foram aprovados. “Não terminei a formação. Desisti, porque senti que não tinha vocação para lidar com ferimentos e curativos que fazíamos enquanto estudantes. Passava o tempo a vomitar. Venâncio era tão corajoso, que conseguiu suportar tudo. Quando concluiu a formação, começou a trabalhar como enfermeiro. Foi o seu primeiro emprego”.

Quando abriu o curso de paraquedistas na Força Aérea, Venâncio de Moura concorre e passa no concurso. Deixou Luanda em 1963 e partiu para Lisboa, Portugal, onde frequentou a Escola de Paraquedistas de Tancos. Lucas Ngonda esclareceu que foi também em Lisboa onde Venâncio deu continuidade aos estudos.

“Foi no dia 4 de Fevereiro que vivemos um dos momentos mais dolorosos no Norte de Angola. O tio que criou o Venâncio de Moura, Pedro Banza, os filhos e o irmão gémeo do Venâncio foram massacrados”, recordou, visivelmente emocionado. “Venâncio teve a brilhante carreira diplomática sem saber onde foram enterrados os seus familiares”.

Para Lucas Ngonda, o facto de o Executivo angolano ter pensando em atribuir à Academia Diplomática o nome de “Venâncio de Moura” revela a importância do seu trabalho, enquanto diplomata ao serviço do país, embora tenham existido outras figuras que muito também fizeram.

Relato lembranças da viúva Mariana de Moura

Com 81 anos, a viúva Mariana de Moura ainda tem presente na memória lembranças do tempo em que conheceu o namorado, e depois marido, em Portugal. “Conheci o Venâncio de Moura a 10 Dezembro de 1968. Foram momentos de muita cumplicidade e companheirismo”, disse.

De acordo com Mariana de Moura, na época, não era fácil estar acompanhada de um homem negro, porque tinham sempre a Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) à perna. “Ele era estudante e também já trabalhava”.

“Só tomei conhecimento mais tarde que ele estava envolvido em política, quando fui alertada pela PIDE. Apesar disso, acabei também por abraçar a política. E quando se deu o 25 de Abril, passei a trabalhar para o MPLA, na Casa de Angola”, recordou em declarações ao Jornal de Angola.

A viúva revelou que foram 33 anos de muita convivência ao lado de um homem de muitos amigos. “Tinha sempre a preocupação de estar informado sobre a vida política portuguesa e do mundo”, disse, revelando que, da relação amorosa, nasceu um filho, já depois da Independência de Angola, mas pouco conviveu com o pai, devido ao seu trabalho.

Sublinhou, igualmente, que o marido dedicou 23 anos à diplomacia, dos quais um como o primeiro embaixador na Itália e 22 divididos entre vice-ministro e ministro das Relações Exteriores.

Por outro lado, Mariana de Moura sentiu-se honrada com a homenagem dedicada ao marido, um dia antes da data do seu aniversário, celebrado a 25 de Fevereiro. O acto serviu para a declaração formal de institucionalização do dia do patrono da Academia Diplomática “Venâncio de Moura”, presidido pelo Ministro das Relações Exteriores, Téte António.

Sobre a Academia, ressaltou que era um sonho do antigo diplomata que se realiza. “O meu marido preocupou-se sempre com a necessidade de se criar uma instituição que apostasse na formação de diplomatas angolanos, para que se tenha nas embaixadas e em outras instituições internacionais quadros competentes, que possam representar condignamente o país”.

 GARCIA BIRES Um companheiro dinâmico

O embaixador Pedro Bires conheceu o ministro Venâncio de Moura em meados de 1974, quando esteve em Portugal, em missão de serviço. “Tal era a sua dinâmica, que, sob a proposta do MPLA, foi um dos dinamizadores para a reabertura da Casa de Angola em Portugal”.

O diplomata reformado relatou que, depois da Independência de Angola, Venâncio de Moura foi o elo para resolver algumas questões essenciais, sobretudo ligadas aos vistos de entrada no país. “Trata-se de um homem que dedicou a vida à diplomacia e, graças ao seu dinamismo, conseguiu estar na linha da frente com toda a firmeza, para a resolução de vários problemas políticos que se vivia na altura. Foi um dos protagonistas para a Independência não só da Namíbia, mas também do Zimbabwe”, concluiu o antigo embaixador de Angola em Moçambique e na China.

CLEMENTE CAMENHA: Para muitos era “um dirigente 4×4”

Clemente Camenha foi o responsável máximo do gabinete do então ministro Venâncio de Moura, nos seus dois últimos anos de vida. Teve a oportunidade de com ele partilhar bons momentos.

“Venâncio de Moura era considerado por muitos um dirigente 4×4, devido ao seu pragmatismo, capacidade política e diplomática de resolver os problemas que se colocavam na época”, avançou, sublinhando que, no período da guerra civil, o país sofreu alguma hostilidade e, muitas vezes, “era Venâncio de Moura quem intervinha para mediar e reverter as várias situações”.

Conta que em 1998, com o país ainda em guerra, um avião proveniente da Ucrânia, que trazia armamento ao país, ficou retido no Cairo, Egipto, por não ter sido declarado o tipo de carga. Nesta altura, estava a decorrer também uma reunião do Comité Central do MPLA, no Palácio 10 de Dezembro.

“A informação chegou ao Presidente da República, tendo de imediato orientado o antigo ministro Venâncio de Moura para se deslocar ao Cairo, a fim de resolver a situação. O ministro ligou para mim, para que se criassem todas as condições, para que no dia seguinte partíssemos para o Cairo”, detalhou. No mesmo dia, prosseguiu, o ministro deslocou-se até ao ministério e, a partir de lá, conseguiu desbloquear a situação do avião sem necessidade de se deslocar para o Egipto. Tal era a sua dimensão, reputação, aceitação e respeito, o que revela a sua dimensão política e diplomática.

Para Clemente Camenha, Venâncio de Moura não só era um chefe, mas um pai, professor e conselheiro. “Muito do que sei hoje e entendo resolver a nível da diplomacia aprendi com ele”, declarou o também embaixador.

GARANTE JOSÉ ALVES PRIMO, O DIRECTOR; Academia Diplomática pretende estimular estudos e investigação

Um dos objectivos da Academia Diplomática “Venâncio de Moura” é estimular estudos e investigação na conjuntura internacional, assim como alterar o paradigma das formações, para que sejam de carácter permanente, revelou o director da instituição, José Alves Primo.

O diplomata fez saber que a instituição académica vai continuar a promover encontros de interesse científico, político, económico e social, para garantir a qualidade das formações ministradas e o reforço da consciência nacional.

Nesta altura, informou, decorre na Academia Diplomática, além do Curso Superior em Relações Internacionais, formação e capacitação de diplomatas de vários níveis, com destaque para cônsul, vice-cônsul, adidos financeiros e de imprensa.

José Alves referiu, igualmente, que a Academia dispõe de cursos de língua inglesa e francesa, com os padrões internacionais, cuja meta é atingir a excelência e a certificação na devida altura. Está patente, logo à entrada do auditório da instituição, uma exposição fotográfica que retrata vários momentos do diplomata Venâncio de Moura, em vários palcos nacionais e internacionais.

Localizada na Centralidade do Kilamba, a Academia Diplomática resulta da extinção do Instituto Superior de Relações Internacionais (ISRI), criado em 1998, ao abrigo do Decreto-Lei n°11/98, de 3 de Julho. A partir de 2002 abriu o Curso de Licenciatura em Relações Internacionais, através do Decreto Executivo nº 28/02, de 6 de Junho, do então Ministério da Educação e Cultura.

A instituição foi transformada em Academia Diplomática, no âmbito da reforma do Subsistema do Ensino Superior, sendo que o curso superior só será descontinuado nos próximos cinco anos, depois da conclusão da formação dos estudantes que actualmente estão matriculados. Ao longo dos 18 anos de funcionamento, a instituição já formou 455 licenciados.

Capacidade instalada

A obra resulta de uma doação da República Popular da China, no âmbito dos acordos de cooperação existentes entre os dois países.  Foi executada num prazo de 19 meses e foram investidos cerca de 16 milhões de dólares.

A Academia Diplomática comporta 11 edifícios, erguidos numa área de quatro hectares. Dispõe de 29 salas de aula, com capacidade para albergar, anualmente, 1.800 formandos, nos três períodos. Conta com dois laboratórios de informática, dois de línguas, para 25 estudantes, uma sala de prática consular, outra de prática de protocolo e cerimonial, além de uma biblioteca.

Com a conclusão e apetrechamento, a instituição precederá à rentabilização das instalações, com a realização de cursos de especialização, assim como produção científica, consultoria e cursos profissionais de especialidade, para funcionários públicos e privados.

AMÍLCAR XAVIER, Um crítico do desempenho dos jornalistas, Antigo director de Comunicação Institucional e Imprensa do Ministério das Relações Exteriores, Amílcar Xavier teve o privilégio de partilhar vários momentos com Venâncio de Moura. O jornalista referiu que sempre se dedicou à recolha de documentação dos serviços diplomáticos do Estado angolano. Nesta recolha, revela, inscrevem-se igualmente os feitos do antigo ministro.
Conheceu o diplomata em circunstâncias especiais, enquanto trabalhava em dupla actividade ao serviço da TPA e RNA. Uma das ocasiões foi em 1991, durante a visita do antigo Secretário-Geral das Nações Unidas Boutros Ghali. Venâncio de Moura era ainda vice-ministro das Relações Exteriores.

“Ele era muito incisivo e crítico em relação ao desempenho dos jornalistas. Chegava a perguntar à imprensa o que iam perguntar ao seu interlocutor. Não que duvidasse da nossa qualidade e sapiência, mas tinha essa preocupação. Era assim que o antigo diplomata se posicionava, sempre que estivesse diante de uma entidade nacional e internacional”, enalteceu.

Noutro momento, o jornalista recordou o programa radiofónico que fez a assinalar o fim da Batalha do Cuito Cuanavale, a 23 de Março de 1988, ano da realização da histórica cimeira entre Mikhail Gorbatchev e  Ronald Reagan.

“O ex-Presidente da República, José Eduardo dos Santos, tinha indicado Venâncio de Moura para fazer a leitura do comunicado de imprensa sobre a Cimeira dos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (Palop), que decorreu no nosso país”, precisou.

Amílcar Xavier lembrou, igualmente, o histórico Acordo de Lusaka, a 20 de Novembro de 1994, em que Venâncio de Moura foi quem subscreveu, pelo Estado angolano, e Eugénio Manuvakola, antigo secretário-geral, pela UNITA.
Na sua opinião, é importante destacar a forma como se posicionou em relação a muitas figuras que recebeu, na qualidade de chefe da diplomacia, e a relação cordial fora do quadrante diplomático, que manteve com o antigo Secretário-Geral das Nações Unidas, Kofi Annan, tendo produzido registos fotográficos íntimos.

“Devo agradecer à viúva de Venâncio de Moura, Mariana de Moura, que me ofereceu fotografias muito íntimas, que servirão para constar de um livro, sobre o serviço diplomático”, afirmou, lembrando que a obra não está atrasada, mas, pelo facto de os anteriores ministros não terem dado importância ao serviço de comunicação e imprensa, o trabalho ficou inconclusivo.

Entretanto, considera o trabalho cuidadoso, tratando-se de acervos particulares, pessoais, que é necessário arrumar, para que saibamos reconhecer e prestar a devida homenagem às figuras da diplomacia angolana. Para o jornalista, nestas memórias, enquadra-se também o saudoso ministro Venâncio de Moura, cuja história o regista como o primeiro embaixador plenipotenciário de Angola na Itália, nomeado pelo Presidente Agostinho Neto, em 1977.

“Há uma outra imagem histórica que também reputo de muito importante na sede da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, onde Venâncio de Moura está ao lado de José Eduardo dos Santos, Paulo Jorge, Manuel Rui Monteiro, Alexandre Kito, como integrantes da delegação que Agostinho Neto enviou para Nova Iorque.
Outro facto marcante da sua carreira diplomática, disse, foi a cimeira que institucionalizou os PALOP, na qual Venâncio de Moura, já nas vestes de ministro das Relações Exteriores, trabalhou com os jornalistas em Lisboa.

“Eu estava lá como bolseiro do Estado angolano e, ao mesmo tempo, enviado especial da RNA”, referiu.

Via JA

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