Por Fernando Pereira
“O Uíge estava a tornar-se rapidamente numa cidade, e como tinha acompanhar o progresso, e os seus principais homens de negócios.”
Vou dedicar algumas crónicas à Angola de há sessenta anos. Julgo que é importante deixar aqui testemunhos de gente que viveu esses tempos e nada melhor que as pessoas
que deixaram as suas memórias para que algum passado tivesse futuro.
Recordo aqui António Ferreira Alves (1923-2015) funcionário superior da administração e que no seu livro, “T E M P O I A V U L U -Memórias de Danje Ia Menha – Angola (1949 – 1975)” deixou testemunhos importantes sobre um território que percorreu de lés a lés.
Desse livro, editado pela “Chá da Caxinde” permito-me tirar alguns textos que ilustram bem o que era o interior de Angola, num contexto muito pessoal de um homem que se obrigou a gostar de Angola.
“A antiga província do Congo, depois Distrito de Uíge, era, por excelência, a terra do café.Por aquela imensa área, por todo o lado se encontravam plantações de café, bem tratadas, bons
acampamentos para trabalhadores, boas vivendas para os seus proprietários e bem assim para os seus colaboradores.
A sede de Província, Uíge, crescia e desenvolvia-se a olhos vistos, e não só o Uíge, mas também o Negage, Quitexe, Songo, Bembe, Nova Caipemba, Sanza Pombo, Quimbele e outras mais. O Uíge estava a tornar-se rapidamente numa cidade, e como tinha que
acompanhar o progresso, e os seus principais homens de negócios, alguns seus fundadores, em muito contribuíram para isso, como já destaquei em trabalho anterior.
Agora apenas quero lembrar pequenos episódios que ao tempo em que passaram a fazer parte da vivência daquelas povoações.
O José Ferreira Cagido, um dos comerciantes e agricultores, dos mais importantes e mais bairristas daquela terra, construiu diversos prédios num gaveto de terreno entre a avenida Capitão Pereira e a Rua do Comércio, onde instalou a sede da sua empresa, construiu um
prédio e numa parte do rés-do-chão resolveu montar uma barbearia moderna, onde não faltavam cadeiras com boas condições para o exercício da atividade, outras bem cómodas
para os clientes, que esperassem pela sua vez, bons espelhos, e ainda um mesinha com tampo de vidro e uma cadeira, para ali se instalar uma manicure.
O Cagido mandou chamar o Freitas, que era o barbeiro da terra, que ali operava há já alguns anos, e convidou-o a tomar conta do estabelecimento, em princípio sem encargos, para começar, o que naturalmente agradou ao barbeiro.
Para o Uíge, tal barbearia era sinal de progresso. O Freitas logo tomou providências necessárias, para que no dia da abertura não faltasse nada, muito menos a manicure, e por isso, se deslocou a Luanda onde podia encontrar todo o necessáriobincluindo a manicure, onde havia muito por onde escolher e interessadas não faltavam. Até que chegou o dia da inauguração da dita barbearia, aberta a porta, a casa encheu-se, a manicure já tinha ocupado o seu lugar e a clientela naquele dia e nos dias seguintes esgotava a lotação e os clientes não se importavam de esperar. O negócio ia prosperando e os clientes afluíam de todo o lado, de Negage, Quitexe, etc, mais por causa da manicure, a novidade da terra. A fama
ultrapassou as fronteiras das vilas e chegou até aos recônditos mais afastados, não deixando de chegar aos ouvidos de um fazendeiro do Quitexe, um dos maiores produtores de café, homem já de avançada idade, mas a que não faltava saúde nem entusiasmo e que viva só, en-tretido como andava com as lides do café. Era homem queimado pelos sóis do Quitexe, e era conhecido pelo Bula Matari, que traduzido à letra era o mesmo que o parte pedras; e com os dedos das mãos, tal era a sua condição física que com facilidade dobrava as caricas das cervejas. Quando chegou ao seu conhecimento a novidade da manicure, não perdeu o seu tempo; montou-se no jipe que o negócio continuasse a florese ei-lo a caminho do Uíge à procura da caça. Era um fim-de-semana; instalou-se no Hotel do Uíge, que de Hotel só tinha o nome…
O nosso homem que como já se disse era um fenómeno de força, entretinha-se também a dobrar caricas no Hotel. Na segunda-feira, pela manhã, o Bula Matari lá estava à porta da barbearia para ser dos primeiros clientes daquele dia. Entregou-se aos cuidados da manicure e logo ali iniciaram uma conversa pegada, pelos vistos com um bom entendimento, e de tal modo, que no dia seguinte à hora da abertura as barbearia, estava a manicure de viagem até ao Quitexe, onde o Bula Matari garantiu, pelo menos durante alguns meses, que lhe tratasse das unhas e ela experimentasse uma vida muito diferente daquela que tinha conhecido até ali.
O barbeiro Freitas é que não gostou da graça e não pretendia esmorecer e deixar decair o negócio e lá vai ele novamente a Luanda arranjar outra para o lugar, o que não foi difícil. Suprida a falta, ele lá ia continuar a exercer a sua actividade, enquantocer. Tudo decorria dentro da normalidade, mas, alguns dias passados, o inevitável aconteceu, agora de forma diferente, era a manicure que se despedia por ter arranjado emprego mais lucrativo e mais folgado. Tinha arranjado um fazendeiro que lhe tinha proposto uma vida que antes nunca tinha tido e experimentar: a vida da boa vida. O bom do Freitas teve de aceitar a situação, mas a ver-dade é que a barbearia assim ficaria incompleta. Não fez mais nenhuma diligência para substituir a manicure. Afinal ele estava a fazer uma figura triste, de arranjar mulheres para os outros e para isso ele não estava disposto. Ainda tentou e conseguiu uma meia reformada, mas não era chamariz para os clientes.
Mas mesmo assim, algum tempo depois essa manicure também não escapou e foi para governanta da casa de habitação de um comerciante solteiro ali na mesma rua do Co-
mércio onde mudou de actividade mas não de morada.
A barbearia ficou mais vazia, o Freitas mais triste, mas não tendo cão, preferiu caçar com um gato, e no mato ele não teve outro remédio e deixou-se de modernices.”
Ao tema. havemos de voltar
Via NJ
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