Por Rui Ramos
15 de Março de 1961, quarta-feira, oito horas da manhã. Algo anormal surpreendeu a pequena comunidade branca de Kitexi, composta por fazendeiros (roceiros) de café e comerciantes.
Kitexi dependia da jurisdição do Cuanza-Norte até Julho de 1961, quando foi anexada ao Uíge, para a afastar da zona dos Ambundu (de língua kimbundu). A acção do 15 de Março inicia-se, assim, em pleno distrito do então Cuanza-Norte, estende-se pelo Uíge, Zaire e chega até perto de Luanda.
Do “nada”, apareceram pessoas negras com catanas, “canhangulos”, paus e pedras que desataram a matar pessoas brancas. Instalou-se o estado de choque na comunidade branca, habituada à obediência passiva da negra, e a incredulidade perdurou para lá da retirada dos atacantes, já de tarde.
O moral dos militares portugueses não era dos mais elevados porque temiam um ataque para o qual não tinham forças de reacção, embora o Batalhão de Caçadores se tenha instalado na cidade do Uíge, Toto e Maquela do Zombo a 22 de Junho de 1960, nove meses antes do 15 de Março, tendo sido criado um Aeródromo Militar no Norte de Angola, no Negage, a 7 de Fevereiro de 1961, onde operavam aviões Auster, Dornier e Harvard T-6. O armamento dos poucos militares portugueses era constituído por pistolas metralhadoras FBP, pistolas Parabellum e espingardas Mauser.
Kitexi era zona de grande produção de café e os “contratados”, vindos do planalto central em grandes camionetas que passavam pelas ruas de Luanda, eram 4 a 5 vezes mais numerosos do que a população branca da vila e das fazendas.
Quando o cipaio Ferraz “tocou o sino” às 8h, como o fazia há muito tempo, para o início dos trabalhos dos “contratados”, estava dada a ordem de ataque, que foi fulminante, apanhando de surpresa tanto a população branca como os “contratados” negros. Os atacantes actuavam com grande determinação e mataram num primeiro momento, um número desconhecido de pessoas.
À surpresa dos brancos, segue-se a organização da repressão nas aldeias, incendiadas, e à população sobrevivente nada mais restava do que fugir para locais que os protegessem, as matas impenetráveis da Serra de Kimbinda, da Serra do Kitoque e do maciço da Serra da Cananga.
No dia 17 de Março, dois dias depois do primeiro ataque dos nacionalistas a Kitexi, as autoridades coloniais iniciam uma ponte aérea para Luanda, enquanto, nos dias seguintes, a PIDE toma conta da situação, dando ordens aos próprios militares portugueses. Uma “caça ao negro” é, então, desencadeada.
Em Luanda, cerca de 500 brancos cercam o consulado norte-americano e atiram à baía o carro do cônsul William Gibson.
Não se conhecem as ligações orgânicas entre os que se propunham lançar acções armadas nacionalistas contra os colonos e a direcção da UPA no Congo. Mas a acção política clandestina era intensa, absorvendo informações que chegavam desse país. A organização de Holden Roberto já tinha redefinido o seu objectivo de lutar apenas pelo Norte de Angola, alterando a sua designação de UPNA ou UPONA para UPA- União das Populações de Angola.
Militantes ou simpatizantes nas aldeias e alguns pastores da Igreja Evangélica ou Protestante estavam de acordo sobre a necessidade de uma acção nacionalista violenta exemplar em todo o Norte de Angola.
Porquê 15 de Março?
Portugal começava a ficar isolado na cena internacional. O 4 de Fevereiro tinha colocado a questão do colonialismo e da autodeterminação dos povos na agenda da ONU.
Informações “inquietantes” sobre possíveis ataques para muito breve percorriam os meios diplomáticos. O ministro da Defesa português, general Botelho Moniz, encontra-se, a 6 de Março, com o embaixador norte-americano em Lisboa que, seguindo instruções da nova Administração norte-americana de John Kennedy, que assume o poder a 20 de Janeiro e mantém contactos informais com Holden Roberto, pressiona a alteração da política portuguesa em África, posição que o embaixador transmite a Salazar, no dia seguinte.
Problemas graves em Angola, como no Congo, são previsões feitas por Washington, que informa ir votar contra Portugal, a 15 de Março. A 10, o Conselho de Segurança da ONU inicia o debate sobre a situação em Angola.
E a 20 de Março de 1961, começa a discussão sobre Angola na Assembleia-Geral da ONU, tendo Portugal abandonado a sessão, como protesto, ante a avassaladora força do grupo afro-asiático. É aprovada a Resolução 1603 (XV), incitando o Governo português a promover urgentes reformas para cumprimento da Declaração Anticolonialista.
Entretanto, no dia 31 de Março, em Luanda, o cónego Manuel das Neves, vigário-geral da Diocese de Luanda, é preso e deportado para Portugal.
No Norte de Angola, Portugal reforça a sua posição, a Damba é atacada pelos nacionalistas, a 17 de Abril, depois de as mulheres e crianças brancas serem transferidas para Luanda, tendo os nacionalistas retirado, sem conseguir levar a bandeira portuguesa.
Sete dias antes, os nacionalistas atacam o Úcua, matando 13 pessoas brancas e, no dia seguinte, outro grupo ataca uma patrulha portuguesa, próximo de Tando Zinge, Cabinda.
Baixas militares portuguesas
As baixas militares portuguesas são já significativas nesse mês de Abril, 18 mortos em combate.
A Damba voltaria a ser atacada pelos nacionalistas mais quatro vezes e, na última, a 31 de Maio, já lá havia militares portugueses.
Tropas especializadas são enviadas de Lisboa, por via marítima, sendo, os primeiros, os pára-quedistas, mas companhias inteiras de caçadores também seguem para Luanda e, no dia 2 de Maio de 1961, chega à cidade o primeiro grande contingente militar português transportado por via marítima, composto por nove Companhias de Caçadores, nove Companhias de Artilharia, duas Companhias de Cavalaria e quatro Pelotões de Polícia Militar. Um dos mais importantes, o Batalhão de Caçadores 109, embarca em Lisboa a 5 de Maio de 1961, desembarca em Luanda a 14 de Maio e, após um mês na capital, viaja por mar para o Soyo e reocupa Quinzau, Tomboco, Nzeto, Pedra do Feitiço, Sumba, Bessa Monteiro e Fazenda Loje. O transporte terrestre das companhias portuguesas era feito em jipes Willys MB 4×4 modelo 1944, “jipões” Dodge 4×4 modelo 1948, camiões GMC 6×6 modelo 1952 e Ford modelo Canada 4×4 (rodado simples).
Mbanza Kongo é atacada pelos nacionalistas
Maio é o mês em que Mbanza Kongo é atacada pelos nacionalistas e, logo no dia 1, chega a Luanda o novo ministro do Ultramar, Adriano Moreira, que no dia seguinte assiste ao desfile das recém-chegadas tropas especializadas de caçadores pára-quedistas que assumem grande hegemonia na guerra.
Nos primeiros dias de Maio, parte de Luanda uma coluna que, no Negaje, se divide em duas, uma avançando para o Songo, Damba e Maquela do Zombo, a outra, para o Púri, Sanza Pombo, Macocola, Quimbele e Santa Cruz, ocupando todas as aldeias.
O Norte estava em guerra total com uma contra-ofensiva colonial demolidora, uma repressão extrema e a fuga massiva de populações que, das matas, tentavam alcançar o território do Congo.
Em Junho, os portugueses sofrem 30 baixas e, na iminência de ataques em Cabinda, forças da Marinha de Guerra portuguesa começam o patrulhamento regular do rio Kiloango.
Junho é também o mês da viragem, com a nomeação do general Venâncio Deslandes para os cargos de governador-geral e comandante-chefe de Angola, o Senegal corta relações diplomáticas com Portugal e de Lisboa fogem dezenas de estudantes africanos por via marítima, para se juntarem à luta de libertação nacional.
Enquanto decorria a “inactividade na Metrópole”, o comandante da Região Militar de Angola, general Monteiro Libório, em desespero, já em 1961, com Angola em chamas nacionalistas, clama para Lisboa: “Devem ser preparadas rapidamente tropas e as Forças Armadas, dotadas de meios para que possam cumprir a missão, o que, evidentemente, não estão a fazer. Estamos a caminhar para uma situação extremamente difícil que custará à Nação, em sangue e dinheiro, algumas milhares de vezes do que agora, muito mais oportuna e economicamente, teria que se gastar.”.
Guerra está no Ambriz
A guerra está no Ambriz, em Mbanza Kongo e os portugueses especializam as suas forças armadas para a contraguerrilha, enquanto numa operação conjunta terra-ar tentam reabrir a “estrada do café”, na Serra da Canda.
Nambuangongo, tomada pelos nacionalistas desde o início da revolta, começa a ser o foco de recaptura em Julho, pelo exército português, que lança a “Operação Viriato”, com batalhões de caçadores e cavalaria, apoiados pela artilharia, engenharia e força aérea. No dia 18 de Julho, a estratégica vila é cercada pela tropa portuguesa e, no dia 9 de Agosto, as tropas comandadas pelo tenente-coronel Maçanita reocupam Nambuangongo, o principal reduto dos nacionalistas, após cerca de cinco meses de ocupação de que resultaram 21 mortos e 61 feridos entre as forças portuguesas.
Os militares portugueses receberam ordens para decapitarem os cadáveres dos nacionalistas e espetarem a cabeça em estacas, na tentativa de contrariar os ideais de ressurreição dos nacionalistas que, alegadamente, acreditavam que voltariam à vida se o seu corpo fosse enterrado completo.
Dois dias depois, os portugueses fazem a sua primeira operação militar com lançamento de pára-quedistas, sobre a região de Kipedro, e, a 24, iniciam uma operação conjunta, com aviação, pára-quedistas e forças terrestres, na serra da Canda.
Se, a 15 de Setembro, as autoridades coloniais reconhecem a pacificação geral do Norte, 12 dias depois, são obrigadas a encerrar a estrada Uíge-Negaje, devido a novas acções militares dos nacionalistas e há, pelo menos, uma emboscada de forças nacionalistas nas margens do rio Loje.
Seis meses depois do início da guerra, o exército português no Norte está muito mais organizado e municiado, com companhias e batalhões especializados, provavelmente com efectivos que ultrapassavam os 15 mil soldados. Só nesse mês de Setembro de 1961, as tropas coloniais sofreram 27 baixas.
Em Outubro de 1961, já com a situação aparentemente pacificada, Portugal faz uma operação de charme, enviando o ministro do Ultramar ao Norte de Angola, que percorre por terra, fazendo-se fotografar com um grupo de pessoas com a bandeira portuguesa e homenageando o cipaio Baxe, morto em Março.
No dia 7 de Outubro, o novo governador-geral de Angola, Venâncio Deslandes, dá por findas as operações militares no Norte de Angola, “passando-se à fase das operações de polícia”: A 3 de Outubro, o exército português retoma Caiongo, último posto em poder dos rebeldes. Em menos de quatro meses, as Forças Armadas Portuguesas reocuparam toda a região afectada. Durante seis meses, os guerrilheiros, dirigidos por João Baptista Traves Pereira, morto a 6 de Fevereiro de 1962, na zona do Bembe, ocuparam uma área quatro vezes superior a Portugal que, entretanto, e numa operação de urgência, cria o corpo de fuzileiros navais direccionados para o Norte de Angola.
No teatro da guerra, a situação parece balançar para o lado das autoridades coloniais, que lançam a Operação “Fava”, que ocupa o Colonato do Vale do Loje, tendo sido capturado um alegado dirigente da UPA, Pedro Tumissungo Cardoso. No meio do mês, as forças especiais portuguesas conquistam a importante posição da Pedra Verde, entre Luanda e Uíge.
Se, em Setembro, as autoridades coloniais experimentavam algum conforto devido à eficácia da contra-ofensiva do seu exército, a verdade é que, dois meses depois, a 27 de Novembro de 1961, o governador-geral de Angola anuncia “nova actividade terrorista” no Norte do território, numa altura em que Holden Roberto se prepara para constituir a FNLA, como resposta à exigência da OUA de o nacionalismo angolano estar unido e não disperso.
Guerrilheiros massacrados
Mas Outubro de 1961 marca, também, de forma negativa, a luta dos angolanos. No dia 9, uma coluna militar vinda de Matadi, no Congo, e comandada pelo nacionalista Tomás Ferreira, líder de um Movimento Democrático de Libertação de Angola (MDLA), com o apoio da recém-instalada direcção do MPLA em Léopoldville, foi destruída por elementos da UPA. Em comunicado datado mais de um mês depois, a 23 de Novembro, o MPLA informava: “A coluna do comandante Tomás Ferreira tinha por missão atingir a Região dos Dembos e levar socorro de urgência à população de Nambuangongo que estava cercada e ameaçada de morte pelas tropas portuguesas. O esquadrão era portador de armas, munições, roupas, calçado, medicamentos, material de propaganda política e, por meio de ciladas capciosas, grupos armados da UPA cercaram e prenderam o esquadrão na região de Caluca, em território angolano, a 9 de Outubro. Depois de submetidos a espancamentos, fome e humilhações, os guerrilheiros foram massacrados por militantes da UPA”
Actividades clandestinas dos nacionalistas no Uíge e Cuanza-Norte
Já com nova sigla, por pressão de Franz Fanon, a UPA, numa primeira fase, surge em Accra, Ghana, por proibição das autoridades coloniais belgas do Congo, mas, com a independência rápida daquele país, muda-se de armas e bagagens para perto da fronteira angolano-congolesa e organiza-se entre os angolanos refugiados no território congolês, sobretudo em Matadi. Frantz Omar Fanon (1925-1961), também conhecido como Ibrahim Frantz Fanon, foi um psiquiatra e filósofo político natural das Antilhas francesas da colónia francesa da Martinica que apoiou a luta de libertação nacional da Argélia e influenciou muitos líderes africanos.
As actividades clandestinas dos nacionalistas estavam muito activas nos corredores de Kitexi, Ambaca e Ambuíla, linha Uíge e Negage, Songo e Nambuangongo, entre muitas outras zonas que atingiam o Cuanza-Norte e proximidades do distrito de Luanda, e o nome de Patrice Lumumba, assim como o exemplo de emancipação do Congo do jugo colonialista belga, era ponto comum de referência para fornecer mais alento à luta. Folhas de kikwanga escondiam muitos panfletos escritos em kikongo.
Holden Roberto, na altura com 38 anos, na verdade, desistira da luta pela “regeneração” do Reino do Congo, onde as elites protestante e católica se digladiavam. O Rei do Kongo, Pedro Buafu, morre a 17 Abril de 1955. Após a sua morte, houve uma crise sucessória, na qual os ramos pela igreja católica e pela administração portuguesa apontavam Dom António Afonso como novo soberano, enquanto o ramo protestante nacionalista apoiava Dom Manuel Quidito. A UPONA surge, então, para lutar pela regeneração do Reino, sob hegemonia dos protestantes, por acção de Manuel Barros Nekaka, que, em 1960, acabaria por pedir a desvinculação da UPA.
Ao telefone, há 31 anos, Holden Roberto disse-me, a partir de Paris, onde, na altura, residia, que, em Janeiro de 1961, houve distúrbios no Congo, “a população atacou muitas lojas de europeus e no meio da população havia refugiados angolanos que foram expulsos pelas autoridades coloniais belgas e entregues à PIDE na fronteira de Matadi. As autoridades coloniais portuguesas espalharam esses angolanos pelas plantações e aí começou a revolta”. E Holden Roberto confessou: “Houve coisas tristes, mas nós estávamos fora e não pudemos controlar o povo. Certos actos que não posso aqui lembrar não tiveram o meu acordo. O povo quis desabafar contra os colonos, não foi uma coisa organizada. Com o tempo, fomo-nos organizando, criámos o ELNA e a luta mudou de aspecto.”
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