Por Patrício Batsikama
Depois de Holden Roberto (1923-2007) – um dirigente da UPA – União das Populações de Angola –, falecer, como obrigam os costumes, foi enterrado na sua ‘terra natal’, Mbânza Kôngo. Mas o que é mais significativo é o de pretender ser enterrado no cemitério dos antigos ‘reis do Kôngo’. Resultado: as instituições conservadoras da Tradição Oral negaram a pretensão. Mas, em consenso, foi enterrado ao lado do ‘cemitério dos reis do Kôngo’. O que terá originado isso?
Vamos partir de duas versões:
I) Primeiro, Holden Roberto não poderia ser enterrado ao lado dos reis porque ele não era da linhagem dos reis. Esta justificação é, em parte, verdadeira: apenas os Ñzînga poderiam reinar. No entanto, alguns reis ali enterrados não eram da linhagem de Ñzînga, mas de outras (incluída a de Holden Roberto).
II) Segundo, pela dimensão histórica angolana, Holden Roberto é um gigante. Mas, localmente, as instituições costumeiras responsabilizam a UPA pela vandalização de Kûlumbîmbi. Quase todas nossas fontes (ligadas às instituições) expressam “nostalgia” das “tropas da UPA” que expulsaram o colono. E a religião católica? Aliás, os Tokoistas, foram, no período de 1962-1964, interditados a aderir à UPA, no quinto preceito. O próprio Holden Roberto terá dito: “o meu partido assemelha-se à igreja Toko. Entra aquele que quizera (sic)”.
A igreja católica, outrora assimilada à colonização portuguesa e cuja catedral já era ícone, parece aqui significar duas coisas, se partimos da “reação tokoista”:
(i)cristianismo; (ii) pátria. Não se esquecerá que a efectivação da revolta de 15 de Março de 1965 tinha, na sua maioria, militantes tokoistas. Ora, para o tokoismo, a UPA era contra o cristianismo e inimiga da pátria.
Em 15 de Março de 1961, os comandos da UPA massacraram várias famílias portuguesas, Umbûndu, e mesmo os Kôngo que não aderiram à causa. Assim começou a “luta armada pela Libertação Nacional de Angola”. Kûlumbîmbi não foi poupado, ainda que estivesse em ruínas, de acordo com alguns depoimentos. Há depoimentos também que advogam o contrário: todos aqueles que se refugiaram na igreja salvaram suas vidas, porque não foram [não podiam ser] atacados. O quase silêncio dos acontecimentos é de cunho político.
Os arquivos da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE) sobre a UPA, a este respeito, contêm informações gerais, e quase silenciosas. Contudo, nessas versões, há várias incorreções que nos vão permitir compreender o que terá acontecido: (i) os “rebeldes da UPA” obedecem, antes da operação, aos rituais atribuídos ao tokoismo. Ainda que haja a probabilidade de que os rituais pertençam à liturgia tokoista, curioso é que não são “chefes espirituais tokoistas” que operam nesse campo. Quer dizer, pode haver uma imitação (e, por sinal, muito mal feita) dos rituais tokoistas para fins políticos.
Os resultados que, num primeiro instante, levaram Holden Roberto, em Nova Iorque, a negar a autoria das atrocidades, não poderiam agradar a Simão Toko (tão popular na época). Resultado: os cartões de membro proibiam os Tokoistas a aderir à UPA; (ii) as zonas de onde são oriundos os “rebeldes da UPA” são mapeadas como de influência tokoista. A PIDE, tendo consciência dessa realidade, trabalha com a Defesa Nacional portuguesa, a fim de prever as eventuais atrocidades. Resultado: estabelece o mapa onde há concentrações tokoistas. Mas um fator que não é considerado são as incompatibilidades: o tokoismo deparar-se-á com o protestantismo batista e o catolicismo romano na zona do norte.
No mapa de ataque que publica Álvaro e Dalila Mateus44, notamos o seguinte: na província do
Zaire, apenas uma zona poderia ser tokoista e, na província de Uíge, todas zonas são tokoistas, mas aderem à ALLIAZO/PD, que é uma organização quase adversária da UPA. Nessas condições, os “rebeldes da UPA” só poderiam ter influências muito limitadas em relação ao tokoismo; (iii) etc.
É verdade que os “rebeldes da UPA” são angolanos, vivendo nas regiões fortemente influenciadas pelo tokoismo.
A sua operação de 15 de março de 1965 terá facilitado o vandalismo das ruínas de uma ou de outra forma: nem todos eramde origem populacional (étnica) Kôngo, ou daquela região da antiga catedral de São Salvador, para respeitar a memória de Kûlumbîmbi. Ainda que assim não fosse, depois dos terrores nessa zona, Kûlumbîmbi já não era o mesmo.
Consultamos três fotografias do informante Myêzi Álvaro: (i) a primeira é uma cópia de 29 de Setembro
de 1938, que lhe foi oferecido como prêmio de escolaridade por um missionário batista. A catedral está dentro de uma pseudofloresta; (ii) a segunda é cópia de um jornal “Kôngo dieto” e data de 1960 (não figura o mês), onde as ruínas ainda têm as estruturas de outros compartimentos anexos à estrutura da Igreja; (iii) a última, sem data alguma, apresenta a catedral, tal como se apresenta hoje.
Importa salientar que Myêzi Álvaro fazia parte do NTO-BAKO e seu primo era conselheiro do NGWIZAKO, o que talvez poderá esclarecer a sua versão sobre a UPA que, na verdade, não é singular. Há, provavelmente, aqui a ambivalência política da UPA com NTO-BAKO e NGWIZAKO… e procriará (de certa forma) a versão de Myêzi Álvaro, natural de Mbânza Kôngo.
Uma última versão, que reza que as partes da estrutura do edifício de Kûlumbîmbi fotografadas no fim do século XIX, que já não figuram nas imagens atuais, foram suprimidas pelo governo (“Luyâlu”), quando se fez vedação para proteger as ruínas. Duas perguntas: (i) Luyâlu é tradução de autoridades governamentais: será governo provincial ou governo central, ou ainda o governo colonial, a que se refere aqui?; (ii) a vedação? Será para proteger as ruínas da constante profanação ou eventual vandalismo?
Ainda que o governo provincial cumpra com as orientações do governo central, não encontramos placas que classificam as ruínas como património nacional (ainda que assim sejam). Uns pensam que seria uma iniciativa do governo local que, para proteger as ruínas, que já significavam quase nada para as novas gerações, preferiu vedar e colocar polícia a vigiar sobre Kûlumbîmbi. Outros partilham outra opinião, segundo a qual, a administração colonial classificou as ruínas, depois da sua “descoberta”, nos finais do século XIX, de maneira que as orientações definidas naquela altura só começaram a ser executadas recentemente, em 2007, na Mesa Redonda Internacional sobre Desenterrar Mbânza Kôngo. Foi uma medida inteligente porque, até nos nossos dias, ainda se acredita que o fato de uma pessoa possuir um bocado das pedras dessas ruínas no seu próprio domicílio, expulsaria os espíritos maus.
Muita gente vem das repúblicas vizinhas, como peregrinos (para os religiosos e políticos), em busca de bênção. Ora, se tal “crença” existe há mais de um século, é provável que se justifique, ao longo deste período, algum “vandalismo passivo/inconsciente”, como uma das inúmeras causas que terá contribuído para o desaparecimento de outros compartimentos da antiga catedral de São Salvador.
Essa última versão indica as possibilidades das ruínas serem vandalizadas consciente ou inconscientemente (ou ainda passivamente) pelas novas gerações que – se afastando das instituições costumeiras e da memória coletiva – são passíveis de profaná-las. Só que o “mito” sobre Kûlumbîmbi ainda vigora nas repúblicas fronteiriças setentrionais (Congo Brazaville e Congo Kinshasa) e influencia de maneira incalculável as realidades sociais destas comunidades. Neste sentido, isto pode diminuir a ideia segundo a qual tão-somente a UPA seria responsável pelo vandalismo.
Também se insere aqui a ideia de que há um vandalismo inconsciente – mesmo para as populações locais, como autoras – em buscar pedrinhas da antiga catedral como proteção contra os espíritos maus. Finalmente, será impróprio apontar o tokoismo como principal impulsionador desta prática. O que parece se desenhar aqui é: o vandalismo ativo e inativo de Kûlumbîmbi pode ser sustentado pela memória coletiva que se tem sobre as ruínas. Para evitar a sua total desaparição – enquanto não existir um projeto da restauração, talvez – o “luyalu” (provavelmente o governo local) tomará medidas para vigiar dia e noite as ruínas.
Extrato do Livro: O Reino Do Kongo e sua origem Meridional
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