No final da década de 1770, a Rainha D. Maria I convidou todas as corporações eclesiásticas de Portugal a enviar missionários para Angola. Foi assim formado um grupo de 20 que embarcou para Angola no dia 22 de Junho de 1779. Entre estes, um grupo de quatro que agora nos interessa e que foi depois destacado para o Reino do Congo:
Padre Mestre Fr. Libório da Graça, religioso de S. Bento, destinado para Vigário Geral do Congo;
Padre Mestre Fr. Rafael de Castelo de Vide, religioso reformado do Nosso Padre S. Francisco da Província da Piedade;
Reverendo Padre Dr. André de Couto Godinho, presbítero do hábito de S. Pedro e Bacharel em Cânones por Coimbra;
Padre Fr. João Gualberto de Miranda, religioso da Terceira Ordem da Penitência do Nosso Padre S. Francisco.
Chegaram a Luanda a 4 de Dezembro de 1779, mas só iniciaram a viagem para o Congo em 2 de Agosto de 1780, primeiro de barco até à foz do Rio Dande e depois em redes, carregadas pelos pretos, acompanhados por 210 carregadores.
A inclemência do clima, a deficiente alimentação e a água contaminada, depressa os fizeram ficar doentes. O P.e Libório da Graça acabou por falecer no caminho a 6 de Outubro de 1780.
Já no Congo, faleceu em 8 de Maio de 1783, o P.e João Gualberto de Miranda. O padre preto, Dr. André de Couto Godinho, faleceu também no Congo, em 1790 ou ainda no ano anterior.
Embora com a saúde abalada, o Padre Fr. Rafael de Castelo de Vide permaneceu no Congo até 1788. Este missionário redigiu quatro relações (datadas de 16 de Julho de 1781, 25 de Setembro de 1782, 27 de Agosto de 1783, e 15 de Dezembro de 1788) narrando a sua ida para o Congo e os seus trabalhos como missionário; constituem o Manuscrito n.º 396, Série Vermelha pertencente à Academia das Ciências de Lisboa. O texto foi traduzido para italiano em 1894 por Marcelino da Civezza que o incluiu no volume sétimo, tomo 4, da Storia Universale delle Missioni Francescane (em 11 volumes) de pags. 312 a 402. Que me conste, não existe nenhum exemplar deste livro em Portugal (*). Já antes, em 1879, Da Civezza referira o manuscrito na sua Bibliografia Franciscana (ver a seguir). A primeira relação refere-se à viagem de Luanda para o Congo e foi reescrita, com ligeiras modificações, para ser assinada pelos três missionários sobreviventes, tendo sido publicada nos Anais do Conselho Ultramarino em 1859 (ver bibliografia). Marcellino da Civezza escreveu na introdução ao volume:
“… Il terzo documento riguarda quel paese africano ancora sì poco esplorato e conosciuto, che è il Congo; ed è una lunghissima relazione inedita, che alla fine del secolo scorso ne inviava ai suoi superiori in Portogallo il nostro Padre Raffaele da Castel di Vide, il quale con parecchi compagni vi evangelizzò per oltre dieci anni, cioè dal 1778 al 1788, e il cui titolo è:
Viagem do Congo do Missionario fr. Raphael de Castello de Vide, hoje Bispo de São Thomé. Ne feci estrarre una copia dalla Biblioteca dell’Accademia di Lisbona, trovandomi per studj in quella capitale, e ne detti notizia nel mio Saggio di Bibliografia Sanfrancescana (pagg. 88 e 89). Tre anni or sono ne ebbi richiesta per pubblicarla tradotta in francese e corredata di studj sul Congo, dal mio chiaro confratello della Provincia del Belgio, Padre Eucherio De Roy; volentieri gliela inviai, e so che molto presto uscirà a stampa. Dell’autore della Relazione, meno le poche notizie che in essa ci dà egli medesimo di sé, nulla potei rinvenire nelle Biblioteche del Portogallo, per essere state barbaramente manomesse e disperse tutte le memorie degli Archivi nostri di quel regno nella rivoluzione del 1834. Ma oltre che dalla sua relazione, apparisce dalle lettere ai suoi superiori in Portogallo, le quali precedono ciascuna delle quattro parti della sua relazione, che veramente Egli era un santo. Le pubblicheremo nel nostro periodico Le Missioni in Palestina ecc.. Fatto ritorno dal Congo, fu ordinato vescovo di San Thomé nell’Affrica stessa, dove già aveva tanto lavorato e patito; e quivi finì la sua vita nel 1805.” (É lapso: a data é 1800).
(*) Os dados sobre o livro foram-me gentilmente enviados pela Biblioteca do Pontificio Istituto Missioni Estere (Pime), de Milão.
Também existe uma narrativa mais concisa, escrita numa carta de Fr. João Gualberto de Miranda, dirigida ao seu amigo e antigo Superior no convento, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas (1724-1814), então Bispo de Beja, que foi publicada por Luis Silveira em 1943 (ver bibliografia). Eis um extracto, com o final de uma extensa carta de 28 de Setembro de 1782:
A Coroação deste Rei D. Jozé 1.º foi a 15 de Dezembro [de 1781], sendo que a sua eleição havia já sido perto de 3 anos. Logo em Janeiro de 1782, nos principiámos a dividir pelas terras mais remotas a missionar. Eu, para Monte Quibango, onde estive 45 dias; meus companheiros têm feito mais, e nunca o tempo está desocupado nestes nossos Santos Serviços, mas eu para ter maior merecimento peço a V. Ex.ª me abençoe os meus passos, mostrando que desejo ser sempre, De V. Ex.ª Rev.ma Subd.º e Disc.º, Fr. João Gualberto de Miranda. (pag. 28).
Na sua preocupação de falar sobretudo do espiritual, Fr. Rafael não refere a data da coroação dos Reis, em que ele mesmo participou.
Em 21 de Junho de 1794, Fr. Rafael de Castelo de Vide foi nomeado Bispo de S. Tomé: “S. M. foi servida nomear para Bispo de S. Thomé, o R. Fr. Rafael de Castello de Vide, Religioso de S.to António, da Província da Piedade” (Gazeta de Lisboa, 2,º Sup. n.º 24, 1794). Por qualquer motivo, só tomou posse do cargo em 17 de Agosto de 1797. P.M. Laranjo Coelho publicou diversas cartas dele, escritas quando se encontrava naquela colónia (ver bibliografia). Nalguns meses de 1798 e 1799, foi Governador Interino das Ilhas de S. Tomé e do Príncipe.
Não se conhecem muitos pormenores da sua vida, nem da sua família. Endossou o hábito aos 15 anos, fez o noviciado e professou no Convento de Nossa Senhora da Consolação do Bosque, nos arredores de Borba. Faleceu em S. Tomé a 17 de Janeiro de 1800, com a idade de 52 anos e cinco meses completos (*).
É o seu manuscrito que vou transcrever aqui. Actualizei a ortografia, sob a minha responsabilidade. Em anexo ao manuscrito, figura uma carta que o mesmo Fr. Rafael escreveu em 16 de Janeiro de 1790 ao Provincial da Congregação da Terceira Ordem da Penitência de S. Francisco, narrando a missão e morte do P.e Fr. João Gualberto de Miranda.
(*) Segundo este site, nasceu em 14-3-1746 e teria sido ordenado sacerdote em 18-3-1770, pelo que teria falecido com 53 anos e 10 meses.
BIBLIOGRAFIA
Fr. Rafael de Castello de Vide, Viagem do Congo do Missionário Fr. Rafael Castello de Vide, Hoje Bispo de S. Tomé (1788) – MS Série vermelha n.º 396, da Academia das Ciências em Lisboa.
Fr. Rafael de Castello de Vide, Padre Doutor André de Couto Godinho e Fr. João Gualberto de Miranda, Relação da Viagem que fizeram os padres missionários, desde a cidade de Loanda, d’onde sahiram a 2 de Agosto de 1780, até à presença do Rei do Congo, onde chegaram a 30 de Junho de 1781, in Anais do Conselho Ultramarino, 2.ªSérie – Parte não Oficial, 1859, pags. 62 a 80.
Fr. Rafael de Castello de Vide – Instrução Pastoral de 7 de Dezembro de 1797, do Bispo das Ilhas de S. Tomé e do Príncipe, às suas Ovelhas. – Ms da BN. Caixa n.º 172, doc. 264, Mf n.º 3541.
- M. Laranjo Coelho (1878-1969), O bispo missionário Fr. Rafael de Castelo de Vide: alguns subsídios inéditos para a história da sua notável acção espiritual e temporal em Angola, Congo, Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Sep. Memórias da Academia das Ciências Lisboa, 1962, 7, 56 pags.
Luíz Silveira, Um missionário português no Congo nos fins do século XVIII, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1943 , 29 pags.
Père Eucherius de Roy, Le Congo : essai sur l’histoire religieuse de ce pays depuis sa decouverte (1484) jusqu’a nos jours par le P. Eucher. Huy : Charpentier & Emond, 1894, 264 pag.
Eucherius De Roy, De katholieke kerk in Congo, 1484-1905, naar het fransch van P. Eucherius de Roy, minderbroeder ; door P. Albanus Heysse, derzelfde orde ; met een voorwoord van den weledelen heer baron Leon de Bethune, met twee landkaarten, Rousselare : J. de Meester, 1906, 267 pag.
Marcellino da Civezza, Saggio di bibliografia geografica, storica, etnografica sanfrancescana, Prato, per Ranieri Guasti, 1879. – XIV, 698 p.
VIAGEM do CONGO do Missionário Fr. Raphael de Castello de Vide, Hoje Bispo de S. Tomé
/ p. 1 /J.M.J.
Reino do Congo
27 de Julho de 1781
Ex.mo Ir. Provincial, a sua bênção.
Como filho obediente, ainda que bem distante, nestas interiores terras de África, em o dilatado Reino do Congo, pela salvação das almas, vou por esta à sua presença, desejando muito que o Ir. Provincial possua muito feliz saúde para a Santa Província ter um tão benemérito Prelado, e se lembrar deste súbdito, de todos o mais indigno, mas que deseja em tudo mostrar sempre ser filho da S.ta Província da Piedade. Eu graças ao Senhor me acho agora com perfeita saúde, depois de muitas moléstias, e trabalhos, já quase no fim da minha prolongada viagem, junto com dois companheiros, que o quarto foi Deus servido levar para si em princípio, ou pouco mais da jornada; ocupo neste Reino do Congo, por ordem de Sua Ex.ª Rev.ma o Senhor Bispo de Angola, o cargo de Vigário Geral e Missionário em este Reino; a nossa conduta é para a Coroa deste Reino aonde se acha a Sé, mas destruída, e é o assento /p. 2 /dos Reis, mas os grandes embaraços que há em este Reino, e os inimigos que ocupam a Corte faz que tanto nos tenhamos demorado no caminho, que ainda não acabámos, mas estamos já com o Rei, perto da Corte coisa de três léguas, para brevemente querendo Deus entrarmos o mais que pertence a tantos trabalhos que tenho padecido, e os poucos serviços que eu indigno Ministro tenho feito ao Senhor em esta Missão vão referidos na descrição que fiz da minha viagem, que remeto ao Irmão Provincial pelas mesmas causas, que ali vão referidas; o que peço é que o Ir. Provincial queira emprestá-la para a ver meu Pai, se ele a pedir para ver, porque como Pai, desejará ter compridas novas de seu filho, o que lhe não mando pela falta de tempo para escrever; o que ele vendo, poderá tornar a remeter; eu me recomendo muito nas orações, e sacrifícios do Ir. Provincial e de todos os meus Irmãos Religiosos, a quem desejava animar fervorosamente a vir melhor do que eu a uma empresa, que não pode deixar de ser muito agradável ao Senhor, acudindo a estas pobres almas desamparadas, que custaram o preciosíssimo Sangue do nosso amado Redentor, e têm gemido há tantos /p. 3 / anos sem um Padre, que os meta no caminho do Céu, sendo muito apegadas à Cristandade. Além do que digo, que é o principal, a que viemos, foi esta Missão de grande empenho da Rainha Nossa Senhora, assim para restabelecer a Cristandade, que aqui foi plantada pelos Portugueses, como também para renovar a antiga amizade, que sempre houve entre o Congo e Portugal, e os Reis de um e outro Reino, o que esperamos conseguir pelo grande agrado, que temos encontrado neste Rei do Congo, e nos maiores fidalgos, anuindo a tudo o que se propõe, e esperamos principalmente nele integrar a Cristandade que aqui achamos muito descaída: ora isto pede particulares súplicas ao Senhor, e como as minhas por indignas não serão ouvidas diante do Divino acatamento, recorro às da minha Mãe, a Santa Província, cujo benemérito Prelado guarde o Senhor na sua divina graça como sempre pedirei ao Senhor, eu – do Ir. Provincial – o mais indigno, mas obediente súbdito. Fr. Raphael de Castello de Vide.
- Os dois companheiros estão de mim distantes, parece-me que mais de trezentas léguas no sertão de Benguela, ainda não tive notícias deles.
/p. 4 /Descrição da viagem que fez para Angola e Congo, o Missionário Fr. Raphael de Castello de Vide, filho do N.P. S. Francisco, filho da Reformada Província da Piedade; seus trabalhos e serviços ao Senhor na sua Missão, escrita pelo mesmo Padre, para glória de Deus, pela obediência, e animar a outros para o mesmo fim.
Entro a descrever a minha viagem de Missionário para Angola, e daí para o dilatado Reino do Congo; mas não é alguma ambição ou vaidade que me impele a fazer esta descrição, mas a glória que espero darão a Deus aqueles que a lerem, vendo como a inescrutável sabedoria do Senhor, que se vale de instrumentos para a sua glória, se serviu de mim, o mais indigno de todos para o seu serviço; move-me também a obediência do maior meu Prelado Provincial me enviou, encomendando-me lhe desse parte de todos os progressos da minha Missão, e a maneira que um filho ausente de sua Mãe sacia a saudade em lhe narrar por escrito, assim os adversos, como os prósperos acon /p. 5/ tecimentos da sua viagem , e desta sorte assim como o filho se satisfaz, a Mãe, em certo modo, se consola; assim o faço eu para com a minha santa Mãe, a Reformada Província da Piedade, esperando daqui animar igualmente a meus Irmãos, os Religiosos, a empreender um tão santo fim, que, ainda que cheio de trabalhos, e tão próprios de Missionários, abunda de consolação, considerando quantos milhares de almas, por meio do nosso Ministério, livramos da escravidão do Demónio, quanta glória damos nisto ao Senhor, quando cooperamos com a Sua Santíssima vontade, e com as obrigações do nosso Sacerdócio; e que, se por este caminho nos expomos a perder a nossa própria vida, não é muito, pois a ganhamos quando a perdemos por um Senhor que primeiro nos deu a sua. Não descrevo os trabalhos, e progressos dos outros dois meus companheiros da mesma Província, Fr. Balthazar e Fr. Raphael de Monte Mor, porque a Providência quis que eles ficassem de mim tão distantes, que apenas nos poderemos comunicar com alguma carta, e creio que eles farão o mesmo, e terão mais que narrar, como mais dignos e esforçados neste caminho do Senhor; só deles falarei até o tempo / p. 6 / do nosso apartamento: pelo mesmo motivo pouco direi dos mais Padres Missionários, que comigo vieram para Angola e só referirei os que fomos depois da repartição para o Congo destinados, e tudo isto em algum pequeno tempo, que me restar do meu emprego.
- 1.º
Tendo a muito Augusta, Pia e Religiosa Rainha de Portugal, Dona Maria Primeira Nossa Senhora, que Deus guarde, mandado convidar toda a hierarquia eclesiástica do seu Reino para ir cultivar a vinha do Senhor, que nos seus Estados de Angola se achava quase de todo dissipada, por falta de diligentes operários Evangélicos, que bem a cultivassem; chegou este convite à minha Santa Província da Piedade, e eu Fr. Raphael me havia muito desejoso de me ocupar em semelhante fim; e dar gosto a meu Senhor, diante de quem me tinha muitas vezes, ainda que indigno, oferecido; e animado com o exemplo de meus antigos Irmãos, que em diversas partes do mundo, tinham missionado, e dado a vida em obséquio de Jesus Cristo, por salvar a do Próximo, me ofereci logo ao meu Prelado Provincial, que então era o N. Caríssimo Ir. Fr. Boaventura de Portalegre, Ex-Leitor de Teologia, para que este de mim / p. 7 / dispusesse, seguindo a sua obediência e vontade do Senhor, querendo que Deus por meio de meu Prelado me mandasse e julgasse de minha suficiência, da qual eu desconfiava com razão, e com justiça. Julgou-me suficiente, mais pela sua bondade do que pelo meu merecimento; em breve me fez partir para Lisboa, para daí embarcar para Angola, o que eu fiz com alegria, desprezando algum emprego literário que tinha em a minha Província, e as esperanças do adiantamento futuro, julgando com razão que era mais acomodado e conforme à minha tenuidade, ir ensinar os rústicos pretos de África, que o necessitavam, os rudimentos da Fé, que alta Teologia, que ignorava, a Religiosos e Seculares Clérigos do Reino bem doutrinados, para o que havia na minha Província Religiosos, sem comparação, melhores e mais sábios do que eu. Parti em direitura para Lisboa, não querendo, nem ainda ir a minha Pátria despedir-me de meus parentes, cuja licença se me dava; para que a carne não pudesse prevalecer contra o espírito, parecendo-me escusada esta diligência, para quem com resolução se despedia / p. 8 / de todas as comodidades do Reino, e ia a sacrificar a sua vida pela glória do Senhor e salvação de suas almas.
Saí do último convento da minha Província que no caminho me ficava, o de Santo António, de Estremoz, a 22 de Agosto de 1778, e cheguei àquela Corte nos fins do mesmo mês, cuidando embarcar no seguinte, mas por algumas causas e inconvenientes do Reino, não se seguiu a viagem, se não um ano quase depois. Esta demora, me seria bem pesada, se a não aproveitasse pregando muitos sermões de missão, da outra banda de Lisboa, na vila de Almada, Cacilhas, Caramujo, Pragal, exercitando com frequência o Ministério do Confessionário, fazendo cantar à noite pelas ruas o Terço do SS.mo Rosário de Maria Santíssima, fazendo destes de dia procissões, e fazendo outros exercícios da Religião com grande séquito dos Povos, e não menos proveito das suas almas, e consolação, e desafogo da minha; gastando nisto quase todo o tempo até o penúltimo dia que tive de terra de Portugal, até embarcar, que se determinou ser no dia 22 de Junho do ano de 1779, e não podendo por um vento contrário, que vinha da Barra, a Nau navegar para fora dela, / p. 9 /ali nos detivemos, o espaço de dez dias ancorados no Rio de Lisboa, esperando a melhor monção, e todos os mais que íamos a navegar, no que o Senhor provou algum tanto a nossa paciência, ou o inimigo das almas temendo o grande bem, que a estas ia em esta viagem, a queria impedir, mas como nada se pode opor ao braço poderoso de Deus que nos conduzia, no dia (ilegível), e no dia dois de Julho do mesmo ano nos deu um favorável vento, com que saímos prosperadamente.
- 2.º
Em esta Nau, intitulada Nossa Senhora de Belém, iam comigo missionários para Angola, vinte Religiosos, quatro de Santa Cruz, quatro Religiosos observantes de Xabregas, um da Província da Conceição, um da Soledade, um Religioso da terceira Ordem; um Agostinho descalço, um de S. Paulo, um de S. Bento, nós os três da Província da Piedade, e um Clérigo secular; iam mais três Religiosos Carmelitas descalços, dois para o convento que têm em Luanda, e um para uma sua Missão, dois Barbadinhos italianos, mais dois Religiosos Terceiros Capelães da Nau. O congresso de vinte e cinco sacerdotes infundia ânimo e consolação, todos escolhidos / p. 10 /pelos seus Prelados, e eu o mais indigno, íamos em companhia do Governador e Capitão General do Reino de Angola, o Ilustríssimo e Ex.mo Senhor D. José Gonçalves de Câmara, que a nosso respeito trazia da nossa Soberana particulares recomendações. Era comandante da mesma Nau o Capitão de Mar e Guerra, o Ilust.mo Sr. Manuel de Mendonça e Silva, homem experimentado em os mares, e para esta viagem escolhido, além de muitos oficiais assim da Marinha, como da Guarnição da Nau, o Governador de Benguela, o Juiz de Fora da mesma cidade, duas companhias de soldados, uma de Artilharia, outra da Armada, muitos e excelentes marinheiros, vários destros Pilotos, além de um grande número de degradados, que entre todos os que vínhamos embarcados, se fazia o crescido número de quase seiscentas pessoas, e nós com tanta distinção, cómodo e sustento, e respeito, como pediam as Reais Ordens, que nos faziam conduzir e nos sustentavam a Real Mesa.
Assim, com toda a comodidade, sem saudade alguma do Reino, vento próspero, em dia da Visitação de Maria SS.ma, com grande gosto por ser dia dedicado a esta grande Senhora, / p. 11 /desejando sempre empreender as minhas viagens em semelhantes dias, com a esperança de ter certa a protecção desta minha Senhora, que ardentemente implorava, no que me não tenho enganado, devendo à Mãe de Deus tantos favores, que eu, vil escravo seu, nunca poderei agradecer, entrei pelos imensos espaços do Oceano, e com ser a primeira viagem pelo mar tão dilatado, nunca experimentei, nem enjoo, nem outro algum efeito, que as revoltas e embravecidas águas costumam causar. Assim com tranquilidade cheguei à Ilha da Madeira, primeira terra que encontrámos depois da nossa saída, e passados breves dias. Aportou a Nau à Cidade Capital da mesma Ilha, chamada Funchal; ali deu fundo, enquanto da mesma terra recolhia alguns soldados para a guarnição de Angola.
- 3.º
Saí a terra com o meu companheiro Fr. Balthazar de Campo Maior, e fomos tomar a bênção ao R. P.e Guardião / p. 12 / do Convento de N. Padre S. Francisco, que há em a sobredita cidade, e tem espalhado por outras Povoações da Ilha alguns conventos, que formam uma custódia de Religiosos Observantes. Entrando em o dito convento, falámos ao Guardião e Custódio Provincial, que ali se achava, e neles achámos tanta graça e amor para connosco, que não nos deixou recolher à Nau, oferecendo-nos o convento para enquanto a Nau ali se demorasse, o que aceitámos por aliviar alguma coisa do caminho; por sua ordem mandámos chamar o companheiro Fr. Rafael de Monte Mor, que veio, e mais alguns outros Religiosos, que a todos nos hospedaram com grandeza, e amor. Logo que chegámos nos mostrou o Custódio Provincial uma carta da Abadessa de Santa Clara, que há naquela cidade, em que lhe pedia, que rogasse a algum dos Padres Missionários, que tinha notícia vinham muitos em a Nau, quisesse ir pregar particularmente às Religiosas alguns sermões de Missão; eu, como mais ignorante / p. 13 / e mais atrevido, negando-se algum, aceitei para o seguinte dia, por ter exercitado antes com muita frequência este Ministério, para me ocupar em alguma coisa do meu Ministério e não passar todo o tempo ocioso, e esperar no Senhor algum proveito; preguei com agrado, o que agradeceram, e querendo também as Religiosas ouvir o companheiro Fr. Balthazar, este no outro dia ia determinado, mas por alguns motivos na mesma hora se escusou, eu que estava na sua companhia, vendo a Comunidade junta, me determinei a seguir as suas vezes, com um sermão que a elas lhes custaria muito a sua curiosidade, se a houvesse, ficando muitas compungidas, e querendo lhe continuasse outros, o não fiz por me querer recolher para a Nau pela incerteza de quando partiria. Com efeito partiu esta no dia 16 de Julho, dia de Nossa Senhora do Carmo, e tendo-se feito em a Nau uma devota Novena à mesma Senhora, de quem o comandante era muito devoto, no dia da Sua Festa / p. 14 / se fez, já navegando a Nau, com solenidade, cantando-se a Missa, e pregando ao Evangelho um Religioso Carmelita descalço; de tarde me rogou o comandante, e alguns Padres quisesse eu pregar na mesma festa, e eu desejando sempre, ainda que indigno, dizer as grandezas e excelências de minha grande Senhora, e mover os fiéis para a devoção da mesma Senhora, aceitei, e com a protecção de Maria SS.ma, ainda que com pouco tempo, preguei com agrado dos ouvintes. Daqui se afeiçoou muito para mim o Comandante, e procurando que nós os Missionários, pregássemos de Missão em a Nau ao imenso Povo, que trazia, escusando-se quase todos por não haver comodidade de se estudarem os Sermões, me rogou e a um Padre Carmelita, quiséssemos tomar a nosso cuidado este grande serviço do Senhor, o que eu pelos motivos acima ditos aceitei, com o dito Padre pregando alternativamente duas vezes na semana, continuando-se até ao Rio de Janeiro; e só dois Padres, um da Terceira / p. 15 / Ordem, outro da província da Conceição, pregaram cada um, um só sermão; os mais continuámos ao nosso parecer com muito fruto, em um auditório bem crescido, porque tudo se ajuntava na Tolda, aonde se tinha formado o púlpito, e ao mesmo tempo que a Nau sempre navegava.
Alguma coisa foi demorada a nossa viagem, porque antes da linha, nos deu um vento contrário pela proa, que nos fez andar bordejando por mais de vinte dias, mas pouco a pouco nos fomos chegando, sem que o vento impedisse a pregação, pois a Nau era forte e segura, e passámos a linha a 22 de Agosto com felicidade, e depois com melhor vento chegámos ao Rio de Janeiro no dia 21 de Setembro, por ser preciso arribar, por faltas que já se sentiam, de água, que a gente vinha toda a dois quartilhos, cada dia, e nós três, e pelas muitas doenças de escorbuto, temendo-se, se viéssemos em direitura, que a Nau se infeccionasse toda daquele mal contagioso, e muitas faltas que padecíamos d’água e mantimentos. Chegámos os Missionários com felicidade e apenas algum havia tido alguma pequena moléstia.
/ p. 16 /Deu a Nau fundo em o Rio, saíram a terra os dois companheiros, Fr. Balthazar e Fr. Rafael de Monte Mor, e indo tomar a bênção ao Guardião do Convento de Santo António, que há na dita cidade de Religiosos Reformados, o Guardião mandou logo me fosse buscar à Nau, e todos os Religiosos que quisessem ir para o seu Convento. Todos os da Ordem, e alguns de fora ali nos hospedámos, recebendo-nos com muito amor, tratando-nos com muita grandeza, especializando os da Ordem, e particularmente os Reformados; ali nos detivemos alguns dias, e o Senhor Bispo queria fizéssemos Missão, mas a incerteza da demora da Nau o não permitia. Com alguns convites do Guardião, e Provincial nos despedimos, e no dia 3 de Outubro, caindo nesse ano a solenidade do SS.mo Rosário de Maria SS.ma deu a Nau à vela, mas nesse dia pouco navegámos, e nos dois seguintes, por falta de vento, ficando ao pé de terra, e com alguns perigos. No dia seis de Outubro veio um vento fresco, que em breve nos fez perder a terra de vista, mas o vento não era muito a favor, porque nos deitou para muito perto do Cabo da Boa Esperança, cabo por antonomásia, chamado Cabo das Tormentas, ainda que sempre era preciso tomar / p. 17 / grande altura. O vento, que durou sete dias, alguma coisa se embraveceu, e nos metia já algum susto pela alteração maior dos mares, que antes não tínhamos experimentado, e tanto que não dava já lugar a pregar-se, mas eu sempre continuava em convocar alguma gente à noite para rezarem comigo o Terço de Maria SS.ma diante de uma sua devota imagem, que trazia comigo e a tinha exposta em meu beliche, lugar que me destinaram na Praça de Armas da Nau, onde iam os meus dois companheiros e alguns Padres; esta devoção principiei logo a executar tanto que embarcámos, e no fim dela fazia uma prática aos que assistiam. Esta mesma devoção se continuou até ao fim, ainda que então mais, como direi.
Aplacado o sobredito vento, em breve sobreveio outro mais forte que nos pôs no último perigo, de sorte que tendo este antevindo alguns dias, no dia de S. Simão se pôs tão forte, e os mares tão alterados, que já nada permanecia seguro em a Nau, caindo algumas vezes as mesas com toda a comida, e os assistentes uns sobre os outros. Daí se seguiu rasgar-se a Gávea, que é uma das maiores velas da Nau, e ir pelos ares; em a noite seguinte cresceu mais o vento, e a / p. 18 / alteração dos mares tanta, que quase chegava aos mais altos mastros, entrando a água a rios por cima da Nau, de sorte que dentro dela, nadavam as mais pesadas caixas; outra vez entrou pelas janelas da câmara, quebrando as vidraças, alagando tudo, e pondo-nos em maior perigo. A Nau, com ser tão pesada, e uma das mais fortes da marinha, parecia uma leve cortiça, que impelida pelos mares de três partes levantados, já quase a submergia, caindo sobre um e outro lado, que nada estava dentro em seu lugar, sendo preciso pegarmo-nos a cordas, e outras semelhantes coisas, para não nos despedaçarmos dentro dela. Aqui eram os clamores, as confissões, e ainda a alguns Padres, outros absolvia geralmente como se costuma nos maiores perigos; ouvia-se clamar misericórdia; as deprecações a Deus e Maria SS.ma então eram mais fortes, ouvia-se por toda [a Nau]o seu louvor; e cada um cuidava ser ali a sua última hora; enfim, uma tal tormenta que horrorizava aos mais experimentados deles, e isto sem remédio se não do Céu, que ouviu os clamores, fazendo-se votos de muitas festas a Maria Santíssima, uma ao depois se satisfez em Luanda, assim da parte do Governador, outra também de outros Religiosos, e em Lisboa se faria outra a Nossa Senhora da Boa Viagem, promes/ p. 19 /sa que fizeram os oficiais da Marinha com procissão de penitência, levando o Traquete da Nau, que era a Vela, com que navegava unicamente a Nau, e ameaçando esta ruína, se prometeu a Nossa Senhora, com que ficou inteira, e se sossegaram algum tanto os mares, e passou o maior perigo ainda que a moção dos mares ainda durou por três dias, impelindo a Nau ainda quase da mesma sorte, que antes; e na verdade a turbação e susto foi grande naquela noite da tormenta; e bem diz o Espírito Santo, que quem navega os mares narre os seus perigos; mas ainda esta narração é muito superficial, e o perigo e susto ainda foi maior, mas graças a Deus nunca me faltou o ânimo, e ainda podia no tempo da maior tormenta administrar o Santo Sacramento da Penitência, e animar os companheiros, que algum se achava desfalecido.
Depois desta tormenta, ainda que nunca em todo o tempo até Angola, se não pôde pregar como dantes, pelo maior cuidado, que era preciso no governo da Nau, contudo, da tormenta tirei maior incentivo para continuar a minha devoção da noite a minha Senhora, estendendo o Terço por toda a coberta da Nau assistin/ p. 20 /do muitas pessoas, e fazendo no fim uma fervorosa prática, trazendo sempre os ouvintes para uma santa vida [e] reforma dos costumes e uma verdadeira confissão das culpas; e na verdade, bendito Deus, muitos ainda degradados pelos seus crimes, me buscavam para expiarem as suas almas na piscina da Penitência,, fazendo-se muitas confissões gerais, no que me alegrava por ver com algum fruto o meu trabalho, que sem cessar até ao fim da viagem se continuava.
Chegámos a avistar terra, ainda que alguns já desconfiavam de a ver, porque é dificultosa de tomar, e sempre à vista já desta terra de África, buscámos Benguela, onde desembarcou o Governador para ela, e o Juiz de Fora, e depois de três dias seguimos a viagem para Angola, e chegámos brevemente e com felicidade no dia 3 de Dezembro do mesmo ano em que saímos de 1779, no dia 4 do dito mês, sábado de Nossa Senhora saltámos em terra, e logo fomos tomar a bênção ao Ex.mo Senhor Bispo, que nos recebeu com amor de Pai, e daí nos repartiu pelos conventos, que há em a Cidade, o do Carmo dos seus Religiosos, o de S. José de Religiosos Terceiros, o de S. António de Barbadinhos italianos. Neste nos hospedámos os reformados, não nos faltando o sustento com grandeza, como se estivéssemos no Reino, porque / p. 21 /se dava por cada um de nós aos Prelados uma boa côngrua cada dia por sustento de cada, muito em particular para suas necessidades, tudo da Fazenda Real.
- 4.º
Esta Cidade Capital de Angola, chamada por alguns Luanda, e por outros cidade de S. Paula Da Assunção, este é o seu mais próprio nome, que vai nas assinaturas, é populosa assim de gente branca, como pretos, muito boas casas, ricos comerciantes, de muitas Igrejas, com a sua Sé, e também muitas casas de palha; aqui me detive por oito meses enquanto vinha o melhor tempo, mais fresco, para cada um ir para a sua Missão. Depois de uma pequena moléstia, logo na chegada, procurei não passar o tempo ocioso, porque, querendo o Senhor Bispo, que pregássemos na cidade de Missão, antes de nos apartarmos, , como punha isto com a nossa vontade, se escusaram todos ou quase todos, por não ser, diziam eles, esta cidade para trabalho de estudos, e que pregar um sermão era tirar dez anos de vida. Eu não tive medo disto e me sujeitei ao trabalho, e um Religioso Observante, e adoecendo este no princípio da Quaresma, tempo destinado para a Missão, me foi preciso pregar só duas vezes na semana na Sé, e uma [na] na freguesia de Nossa Senhora dos Remédios; graças a / p. 22 /Deus, com aceitação e não vindo a pregar o dito Padre se não dois sermões em toda a quaresma; ainda isto me parecia pouco, que nos sábados ia a uma Igreja de Nossa Senhora na mesma cidade fazer alguns Catecismos, o que continuei até me apartar da cidade que depois da quaresma mudei para os Domingos, ao tempo da Missa, por ajuntar mais povo, no que me parece se aproveitou muito por muitas confissões e por alguns melhores costumes da cidade, ainda muitos de seus moradores, principalmente mulheres, têm pouco costume de irem às Igrejas. Ocupei mais o tempo em pôr muitos Terços de Nossa Senhora pela sua devoção, que antes não havia; fazendo no dia que os plantava nas mesmas ruas, uma prática de Maria SS.ma em que excitava o povo para a sua devoção, a qual se ficou praticando com muita consolação, e exemplo dos moradores, e júbilo da minha alma. Procurei que [se] fizesse uma grande festa ao SS.mo Coração de Jesus, o que se fez, e ficou estabelecida para os seguintes anos; coisas que a todos agradavam muito, com outros exercícios pios, que não falavam em outra coisa, que quererem que eu aí ficasse, e no que alguns falaram ao Senhor General; mas este segundo o meu maior gosto me / p. 23 / tinha determinado para outra parte; porque trazendo este Senhor particulares recomendações para escolher Missionários para o Reino do Congo e Condado do Sonho do mesmo Congo, até onde, com grande empenho, se estendia o zelo da nossa Soberana, por ter sido aquele Reino criado no Cristianismo pelos Portugueses mandados por seus Augustos Predecessores; e esperando-se também por esta via grande emolumento para o Estado pela aliança dos do Congo com os Portugueses; e o mais por causa da Religião naquele Reino, quase descaída pela falta de muito tempo de Padres, me chamou e me disse me havia escolhido para uma destas partes; e, não se efectuando a jornada do Sonho, por algumas causas de temor não seríamos bem recebidos, se determinou viesse eu para o Congo com outros padres também escolhidos por ter vindo logo que chegámos uma embaixada do Rei do Congo pedindo Missionários, e fomos para aquele Reino destinados: um Religioso de S. Bento, o R.P.M. Fr. Libório da Graça; o R.P.M. Fr. João Gualberto da Terceira Ordem do N.P. S. Francisco; o R. P. Dr. André do Couto Godinho, Presbítero do hábito de S. Pedro, clérigo preto, mas de alma bem branca pelas suas virtudes, e costumes que levou as atenções da Corte de Lisboa, e veio com grande recomendação da nossa / p. 24 / Rainha, já destinado para o Congo; e, depois destes Padres, eu, o mais inferior deles; que me consolava em ter tão bons companheiros, e de me tocar uma missão, que desejava, pelos mais trabalhos, que desejava encontrar, querendo-o assim o Senhor, em cuja santíssima vontade e admirável Providência me havia posto, sem dizer palavra, esperando que ele por meio de quem me mandava permitisse fosse para onde mais lhe agradasse, e lhe fizesse algum serviço.
Chegado o tempo mais apto para os Missionários partirem para as suas Missões, foram uns para os distritos de Angola, dos quais logo tivemos notícia terem morrido dois, um Religioso de Santa Cruz, e outro da província da Conceição e os mais adoecendo logo gravemente; porque Angola na cidade é doentia pelos muitos calores, faltos de chuvas; mas ainda mais é o seu sertão. Ficaram outros para irem para Benguela e para o caminho; para aqui, para o Presídio em a Costa do mar, foi um Religioso observante, e para Benguela, para o seu sertão, foram os meus dois companheiros, Fr. Balthazar de Campo Maior, para o Presídio da Caconda, e Fr. Rafael de Monte Mor para Galanje, ambos também em distrito do Reino, no mato de Benguela, mas distantes desta Cidade, e muito mais de mim.
/ p. 25 /Fui acompanhá-los até ao Navio, em que embarcaram, custando-nos o nosso apartamento, mas conformando-nos com a vontade do Senhor; e partiram para a sua Missão, e até aqui não tenho notícias deles como determinámos dar uns aos outros. Nós porém, os que estávamos destinados para o Congo, ficámos mais algum tempo em a Cidade, e procurando o Senhor General, que tinha grande empenho nesta Missão, que fôssemos bem preparados, o que fez mandando nos dessem boa esmola para isso, e ficando anualmente recebendo côngrua suficiente para o nosso sustento por ordem de Nossa Soberana, determinou com o Ex.mo e Rev.mo Sr. Bispo de Angola a nossa partida enviando-nos o Meritíssimo Prelado e dando-nos uma Provisão de Missionários em a qual destinava para Vigário Geral do mesmo Reino do Congo ao R.P.M. Fr. Libório da Graça, da Ordem de S. Bento; com a qual partimos com resolução para o Reino do Congo; mas antes de descrever esta viagem darei alguma pequena notícia deste Reino.
É este Reino muito antigo, dilatado, e um grande Império, ainda que hoje se acha dividido entre muitos / p. 26 /grandes levantados, que se separaram do Rei, mas sempre se reconhecem seus vassalos, e sujeitos; em a maior parte dele, se abraça a fé Católica e são para com esta mui acérrimos. Foi plantada aqui a Santa Fé, e se principiou no tempo de El-Rei D. João segundo, pelos Portugueses; e o primeiro Rei, que se baptizou, se chamou D. João, tomando o mesmo nome do nosso Rei. Vieram para ele muitos Missionários, que aqui deram a sua vida pela dilatação da Santa Fé. Tem sua Corte, chamada Cidade de Bemba de S. Salvador, nela é o assento dos Reis; teve suja Sé, e nela três Bispos, e antes era governado este Reino no espiritual pelo Bispo de S. Tomé, e o nosso D. Fr. Francisco de Vila Nova, Bispo de S. Tomé, aqui chegou a visitar, acompanhando-o alguns Frades da nossa Província que aqui deram a vida, como consta da nossa Crónica. Fica este Reino metido pela terra dentro, e se estende até às praias do mar, é de gente toda preta, amiga da Religião Cristã, e algum dia mais e mais respeitosa para com os Padres; é terra montuosa, cheia de sertões despovoados e bosques de excelentes árvores de incenso, de pão de encassia, e outras muitas estimáveis; tem muitas povoações cheias de muita gente. Antigamente / p. 27 /se admirava a Corte adornada de muitas Igrejas, mas hoje tudo está em terra. Na Corte, sempre havia um Vigário Geral e muitos Padres, hoje não tinha ninguém, e há muito tempo com falta de Padres e bem se pode julgar de que modo acharíamos este Reino. É país quente como os de África por ficar na zona tórrida, mas alguma coisa melhor que Angola, por algumas chuvas mais continuadas, que não vêm sem grandes e horrorosas trovoadas quase a maior parte do ano. Há tempo em que há muitas névoas que chamam de cacimbo, e o mais fresco como é de Junho até Outubro pela mais distância do Sol, quando se chega para o Trópico de Câncer. Mas, quando o Sol se descobre, é bastantemente ardente, enfim, é despido de todas as comodidades da Europa, e só pelo serviço de Deus se pode vir a estas terras, e na verdade só este é o que tenho diante dos olhos nesta viagem, que continuo a descrever.
Em o dia 8 de Agosto de 1780 nos despedimos os quatro Missionários da Cidade de Luanda, ou de S. Paulo da Assunção para entrarmos pelo mais interior do sertão até o dito Reino do Congo. Embarcámos em um barco de / p. 28 /El-Rei até à Barra do Rio Dande, não muito distante, fazendo-nos a grande honra, o Il.mo e Ex.mo Senhor General de nos acompanhar até ao embarque. Com felicidade, chegámos no dia seguinte à sobredita Barra, aonde pelas ordens do mesmo Senhor General achámos o Capitão Mor do Distrito, esperando-nos com mais de duzentos pretos para nos conduzirem o nosso fato, e um grande presente, que da parte da nossa Rainha, levávamos para o Rei do Congo; ia mais em nossa companhia um preto calçado dos mais graves, para ser o nosso condutor e intérprete, escolhido sobre muitos para isso.
No dia seguinte partimos para o Libongo, última povoação que encontrámos no distrito do Reino. No caminho nos esperava, em sua cadeira no meio do campo sentado, um Manibamba, ou Soba, que é o mesmo que Rei pequeno, mas sujeito a Portugal que, chegando nós, se levantou e nos tomou a bênção, e veio acompanhando até à Povoação. No outro dia, dia de Nossa Senhora das Neves, dissemos todos Missa em louvor de Maria SS.ma para que esta Senhora fosse a nossa protectora, em tão prolongada, e perigosa viagem.
No mesmo dia de Nossa Senhora, partimos de manhã para o Itaíbe, primei/ p. 29 /ra terra do Congo, do Marquesado do Muzul. Neste caminho, vimos descer uma multidão de gente gritando por um monte abaixo, e cuidando ser algum alevantamento, no princípio nos assustou; mas chegando mais perto vimos que eram mulheres e homens com os seus filhos nos braços, e clamavam pedindo o Santo Baptismo; aqui me enterneci bastante, e com os olhos banhados em lágrimas, dei graças ao Senhor por me destinar, sem eu o merecer, para um tal ministério, dei parabéns à minha fortuna, e ou por mais confiado, ou por não querer que ninguém me tirasse aquela glória de trabalhar pelo Senhor, cheio de uma grande consolação da minha alma, baptizei a primeira vez nestes sertões; e, achando serem doze os baptizados, ofereci em louvor dos doze Apóstolos estas primícias do meu ministério. Chegando a uma pequena povoação antes da do Itaíbe, e próxima a ela, mandámos pedir licença ao Manibamba, que assim se chamam alguns grandes Governadores das Povoações deste Marquesado, e do Congo, para entrarmos, o que ele nos concedeu com alegria, como ao depois na nossa presença manifestou. Chegámos à Banza, que assim se chamam as Povoações / p. 30 / grandes neste Reino, e já antes nos vinham a receber os pretos à porfia, de quem nos havia de conduzir sobre os seus ombros em as redes, que nestes Países se costumam, sem as quais ninguém faz jornada, ora dos pretos, pelos muitos agrestes calores, etc. e por satisfazer cada um à sua devoção se alternavam uns aos outros, seguidos de meninos, que se esqueciam dos seus divertimentos, e de mulheres, que deixavam as suas casas, e não se fartavam de nos verem, todos com gritos de alegria nos levavam como em triunfo, com tanta aceleração, que em breve espaço chegámos à Banza, aonde cresceu o concurso, as aclamações e festas de toda aquela gente; e logo nos deram, numa grande casa formada de paus e palhas, segundo o costume deste País, aonde descansámos algum tanto, que não foi muito porque logo o Manibamba nos mandou recado nos queria visitar; a que logo se seguiu um grande som de instrumentos musicais do País, que se chamam Pungis, e um grande acompanhamento de mais de duzentos pretos armados de paus, que aqui ainda são as armas de que usam: no meio deles vinha o Manibamba com sua capa encarnada, agaloada, e alguns melhores vestidos, que só lhe servem / p. 31 /em semelhantes ocasiões. Veio-se chegando o acompanhamento, dando várias voltas, até à nossa presença, que, sentados em cadeiras à porta de nossa casa, o esperávamos. Chegou e prostrando-se a nossos pés, o Manibamba nos tomou a bênção, e ficando o dito em pé com toda a sua gente, e nós sentados, segundo o costume de reverência neste Reino, aos sacerdotes lhe demos parte, como íamos Embaixadores ao Rei do Congo, e lhe levarmos um grande presente da Nossa Rainha de Portugal para o dito Rei, e que vínhamos Missionários para restabelecer a Religião quase descaída em seus países. Tanto que isto lhe foi dito pelo intérprete, logo o Manibamba em sinal de alegria deu vários saltos, ou bailes, segundo o seu costume, deixando cair a capa, e o chapéu, que só então o usam, e o mesmo imitou toda a sua gente, e deram grandes gritos de alegria; e tornando-se a visita pela mesma parte, tocando-se os instrumentos e com a mesma ordem, que tinha vindo a sua gente, então nos entregaram dois porcos e alguns cestos de farinha de milho, que é o pão do País, / p. 32 /presente que nos mandava o Manibamba, o que nós agradecemos [dando-lhes] do que trazíamos ali mais estimado, e alguns Rosários e Verónicas; e até à noite nos cercaram as portas os pretinhos pasmados e cheios de alegria de nos verem , e toda a noite quase, para aplaudirem a nossa chegada, a passaram em danças, e festins perto da nossa casa.
No dia seguinte, celebrámos o Santo Sacrifício da Missa todos, e vindo o Manibamba assistir com o seu Povo com muita devoção, e daí até ao jantar ocupámos em administrar o Santo Baptismo, e o mesmo até à noite, oferecendo-nos algumas galinhas e coisas de sustento. À noite se ajuntou o Povo a cantar o Terço de Maria SS.ma na sua língua, e a Ladainha como se costuma, a que nós assistimos, animando-os nesta santa Devoção; para o que lhe pus diante uma devota e perfeita imagem de Nossa Senhora da Conceição, que trazia na minha companhia, que eles não se saciavam de ver, porque não tinham no seu pobre oratório mais do que uma pouco perfeita imagem do N. P. S. Francisco, e advertia aqui, e para diante serem / p. 33 /estes Povos devotos de Nossa Senhora, pois lhes ouvia de noite, e muitas vezes de madrugada, entoar os seus louvores, os quais eu muitas vezes acompanhava animando-os com algumas práticas. Também reconhecia neles devoção a N. P. S. Francisco, e ainda mais a Santo António, e conheço que a falta de Padres faz que esta gente não seja muito Cristã, além de muitas superstições que neles são como naturais, mas os Padres lhe podiam tirar muitos erros, e instrui-los na doutrina cristã, da qual se acham muito poucos que tenha notícia; porque os pretos deste Reino são fáceis de ouvir os Padres com atenção, e se os Padres os quiserem demorar um dia, e uma noite, ali estarão, e cada vez se hão-de ajuntar mais, porque têm uma santa vaidade de serem cristãos, e baptizar os seus filhos, e trazer grandes cruzes, e crucifixos ao pescoço. Outros trazem uma cruz no bordão por remate, ainda que em outras coisas não condigam com o nome. Nos Países também apenas há só em as Banzas uma cruz em um terreiro, esta é a sua Igreja, aonde se juntam para / p. 34 /as suas rezas, e naquelas Banzas, que não tinham este estandarte sagrado, nós o fazíamos levantar, e benzíamos com assistência de todo o Povo. Ora, estas notícias, que dou em esta Banza, sobre o apego ao Cristianismo em esta gente do Congo, são comuns em quase toda ela pelos outros Povos adiante.
Depois de estarmos nesta Banza do Itaíbe três dias, determinámos partir para diante para chegarmos mais depressa à Corte do Congo, cabeça da nossa Missão para depois podermos correr e missionar pelos seus Povos; achámos tudo pronto, com gente bastante para nos acompanharem, e levarem as cargas, e partimos daí para uma Banza chamada Mualla, indo após nós até os meninos que eu mandei para suas casas, por lhe temer algum perigo em caminhos de feras, e tão agrestes. Na verdade, são muito agrestes todos estes caminhos do Congo, que empreendemos, agrestes, cheios de feras, matos, serras, e tão solitários de gente, que só ouvíamos os tristes gemidos das relas. São mais para feras do que para homens, mas, graças a Deus, ainda / p. 35 /não temos visto alguma fera. As faltas de água são muitas nestes caminhos; apenas no tempo em que não havia chuvas, havia alguma nos caboucos do Rio, que serve nas necessidades semelhantes; os mantimentos, poucos e num total sertão e deserto. E, apenas junto das Banzas, se achavam algumas lavras de mandioca, e milho; e este era o sinal que encontrávamos de estarmos perto da Povoação. Enfim, são horrorosos caminhos, só por Deus se podem tomar; e estes são os que sempre encontramos, e outros piores.
Chegámos à Banza da Mualla com felicidade, graças a Deus. Aqui fomos recebidos com geral contentamento do Povo, e semelhante recebimento e homenagem de grandes presentes. Exercitámos muito o nosso ministério; estivemos aqui outro tanto tempo, detendo-nos sempre três dias, com o que chegávamos e partíamos, para dar lugar a que nos trouxessem os seus filhos para receber o Santo Baptismo, que administrávamos logo que chegávamos, incessantemente, e ainda no dia da partida.
Dali passámos para outra povoação chamada Banza do Congo, / p. 36 / aonde havia um grande Príncipe, e o primeiro que encontrámos que soubesse alguma coisa da Língua Portuguesa, e a escrevia, homem de grande propósito, e cortesão, que nos recebeu com grande contentamento, acompanhando-o alguns pretos com espingardas, que já aqui se principiam a usar e mais para diante. O dito Príncipe nos escrevia muito a miúdo, assinando-se sempre por nosso Filho espiritual, e este é o tratamento que neste Reino nos dão todos, especialmente os Grandes, e o mesmo Rei, que todos se nomeiam nossos Filhos espirituais.
Aquele Príncipe nos visitava a miúdo, e nos pedia fôssemos à sua casa, só pela consolação de falar connosco; não deixou de fazer um bom presente para nós, o que sempre se costuma nos Grandes deste Reino, e nós sempre correspondíamos com o que tínhamos para isso. Sendo tempo de irmos adiante para outra Povoação, foi também grande o cuidado do Príncipe, a que fôssemos com comodidade, enviando todas as nossas coisas e do Rei. Partimos e chegámos no mesmo dia a uma Banza chamada Bube, uma / p. 37 /das maiores e mais bem situada Povoação deste País. Aqui fomos recebidos com as mesmas aclamações. Nesta Banza assiste o maior deste Marquesado do Muzul, com o título de Duque e Marquês, e Capitão General do Reino do Congo, títulos que eles têm imitado dos Portugueses. Este Grande nos veio a receber debaixo de um grande guarda sol com grande acompanhamento de pretos armados de espingardas, arcos e flechas, fazendo diante deles grandes fuscas, já como quem acomete em guerra, retirando-se [ao som de] vários instrumentos; [o] que nos causava algum riso, e por outra parte nos consolávamos de ver a devoção com que nos recebiam, e nos víamos no meio de um exército de pretos armados, sem temor de algum mal; antes, prostrando-se todos diante de nós, nos tomavam a bênção, alegrando-se muito com a nossa chegada. Recebemos também os presentes costumados, a que correspondíamos; exercitámos muito o nosso Ministério, vindo das mais Povoações concorrendo para esta, e para as mais onde nos achávamos.
Desta Banza passámos para o porto do Rio Loge, que divide / p. 37 – lapso de numeração / o Marquesado do Muzul, do Grão Ducado da Bamba. Esta jornada nos foi mais custosa, porque saímos da dita Banza, quase pelo meio dia, pelo maior rigor da calma, no dia 14 de Agosto, véspera de Nossa Senhora da Assunção, pelo que, sendo dia de jejum, quase em jejum saímos. Neste caminho se tinha ateado o fogo, que só os seus estalos atemorizavam ainda longe, e acrescentavam o calor do dia; e a terra mesma parece exalava fogo. E como se tinha ateado no mato, tendo impedido o caminho, nos foi preciso passar por meio dele, não sem muito perigo; mas a protecção do Senhor e de Sua Santíssima Mãe Maria Santíssima, que sempre, bendito Deus, experimentámos, nos livrou de nos abrasarmos.
Chegámos bem aflitos, como bem se pode julgar, ao sobredito porto; e sobre a tarde é que pudemos comer algum pouco arroz, e peixe salgado. Aqui nos hospedámos em uma Libata ou Sanzala, que assim se chamam os Povos pequenos neste País, e o lugar de nossa hospedagem numa pequena casa de palha, enquanto vinha o Senhor daquele povo, que era um Infante / p. 38 /e Príncipe, que assim se chamam os Grandes Fidalgos deste Reino, que morava em outra Povoação maior. Chegou este pela nossa notícia com os semelhantes acompanhamentos de Soldados, instrumentos, etc., e nos recebeu com grande amor, e nos acompanhou, enquanto ali estivemos, que foram três ou quatro dias, enquanto se dava a providência de se passarem as muitas cargas, que trazíamos, nossas e do Rei, as quais se faziam muito custosas para a passagem, porque o rio é grande e arrebatado, e em todo o tempo invadiável, e só tinha uma pequena canoa; e tem de uma e outra parte altas ribanceiras.
Entretanto, exercitámos com frequência o nosso Santo Ministério, e aqui encontrámos um Embaixador do Rei do Congo, que levava carta para o Senhor Bispo de Angola, pedindo segunda vez com muitas súplicas Missionários para o seu Reino, e que não queria entrar na Corte sem primeiro ser abençoado pelos Padres. Esta embaixada dobrou o nosso contentamento; e encontrando o Embaixador em nós o que ia pedir, se tornou para o Congo em nossa companhia bem contente.
/ p. 39 /Chegado o tempo de nós seguirmos a nossa viagem, ou jornada, e passarmos o Rio, entrámos os quatro Padres na canoa, e aqui experimentámos a grande devoção, e amor da gente para connosco, porque tanto que principiámos a navegar pelo Rio se pôs de joelhos e principiaram todos a cantar a muitas vozes a Ave Maria, para que a Senhora nos amparasse naquela passagem e não sucedesse algum mal; o que nos encheu de ternura, e passando com felicidade e todas as nossas coisas, o agradecemos. Logo nos conduziram a um cabeço desta outra parte do Rio aonde se achava junto o nosso fato; e ali dormimos a primeira vez no descampado, porque não havia alguma casa, e nos demorámos ali dois dias, e noites, sofrendo as inclemências do tempo, e o temor das feras, que junto ao Rio são mais certas; enquanto vinha outra Infante com a sua gente para nos ajudar a ir para diante. Aqui entrámos no grande Ducado da Bamba, entrámos em os nossos grandes trabalhos pela maior rebeldia, que desde aí principiámos a experimentar na gente. Logo para contentar esta junto do Rio, foi preciso des/ p. 40 /prover-nos de muitas coisas, que trazíamos para nós, e ainda mal contentes; pelo que daqui nos transportaram, quando nós cuidávamos fosse para alguma Banza do Ducado de Bamba, ficando a primeira daí distante mais de doze léguas, ao nosso parecer; como ao depois vimos, nos foram pôr com as cargas daí a três léguas, deixando-nos em um tal sítio em o interior do sertão, que mais era para casa de feras, do que de homens, sítio o mais solitário entre dois cabeços, ficando entre eles um Rio naquele tempo seco, com alguns charcos de água enlodada, cercado de tristes árvores, profundo, sem casa, no meio de terras, e aí foi a nossa hospedagem por muitos dias, e noites, aonde não podíamos alcançar o sustento, e mais depressa o seríamos das feras, e água encharcada para bebermos, que só podia servir em semelhantes necessidades, e esta bebíamos por não haver outra comummente pelo espaço de seis dias, que ali nos demorámos por falta de quem nos conduzisse para diante a pé, e não se poder viajar / p. 41 / por estas terras, sem ser em redes, que se costumam; ainda que eu quis partir a pé buscar gente para levarem os Padres companheiros, estes me desenganaram, o que conheci ser assim, por algumas vezes o querer empreender; assim pelos grandes calores, maus caminhos e muitos outros inconvenientes, que ocasionariam mais depressa a minha morte; que só desejava depois de ter trabalhado muito por meu Senhor.
Em todo o tempo que aqui estivemos, é indizível o que padecemos e o principiámos a padecer: nós aqui estávamos, não tendo mais cobertura que o Céu, experimentando o maior rigor do tempo: de noite, e de manhã cedo, o orvalho, ou cacimbo, como aqui lhe chamam, e é muito nocivo, nos cobria. Logo, o Sol até à noite nos frigia, quando do monte, que diante nos ficava, reflectia contra nós os seus ardentes raios, além dos que em direitura nos abrasavam. Num muito ralo pavilhão de que usávamos , era pouco para deter o cacimbo, e os ardores do Sol. Contudo, enquanto este Planeta nos alumiava, tínhamos no coração alguma alegria; retirando-se aquele, e vindo as sombras da noite. Nos parecia sermos pasto das feras, vendo-nos sem armas, sem as quais por acaso alguém / p. 42 / caminha nestes sertões; e muitas vezes tão desamparados, que apenas nos acompanhavam alguns rapazes. Pelo temor das feras, mandámos acender de noite grande fogo, e pendurávamos em uma árvore uma grande lanterna acesa que nos diziam afugentava as feras; mas não foi esta a precaução que nos livrou, mas sim a protecção do Senhor, e de Maria SS.ma Sua Mãe, cuja devota Imagem tínhamos em nossa companhia, a quem invocávamos, cantando à noite os seus louvores, e tanto nos protegeu esta Senhora, que não só não vimos ali feras, nem temos visto alguma no caminho, nem ainda chegámos a ouvir os seus bramidos, o que sentiram depois da nossa retirada alguns pretos que ficaram guardando as cargas; vendo-se do mesmo lugar perseguidos delas. Ali, como não podíamos alcançar por ser sertão, e longe de povoados, comidas vegetáveis, nos servíamos de alguma carne salgada, e peixe que trazíamos, vendo-nos precisados a usar da sobredita água. Todas estas inclemência nos iam defecando de tal sorte que no dia 23 de Agosto, apertando tanto o Sol, e sendo comido por jantar coisas bem salgadas, me deu uma valentíssima febre, e a outro Padre companheiro, que continuaram até o Janeiro seguinte, que muito padecemos e ainda ficaram alguns efeitos,/ p. 43 / o que também logo sucedeu aos outros dois companheiros.
Depois de alguns dias de estarmos ali, vieram alguns poucos pretos para nos levarem para diante, e foram tão poucos, que só puderam ir os dois companheiros Religiosos, ficando eu e o P.e Dr. André, esperando outro socorro, que veio no dia seguinte, depois de ali estarmos seis dias, e seis noites; e muito foi o que eu fiquei padecendo no dia mais que aí fiquei, porque sendo-me preciso pela mesma moléstia caldos de galinha, só tive por todo o dia algum pouco de arroz; e partindo no dia sexto do mato, sendo este dia o de maior crescimento, só Deus sabe o quanto padeci, nem a mim me pode lembrar sem horror. O caminho é longo, e tanto que saindo de manhã, só pudemos chegar à noite ao primeiro Povo: é tão escabroso, seco, solitário e medonho o dito caminho, que horrorizava: Rios profundos, e ainda que naquele tempo secos, tão encovados, copados de árvores, e cheios de lagoas, que exalavam terrível cheiro: a passagem por eles tão custosa, que era preciso descer da rede, e arrimado a um pau nos braços dos pretos, passá-los, quem não se podia ter em pé. Os pretos muitas vezes paravam, e queriam ainda naquela noite ficar no mato, e era preciso rogar-lhe muito / p. 44 / se compadecessem de nós; porque para eles isto era nada pelo costume, e para nós era muito custoso assim pelo horror da noite, temor do sertão, , perigo das feras, como pela moléstia e falta de alimento; e deste era tanta, que em todo o dia não tomámos, se não de manhã, algum pouco de chá; e por todo o dia, um pequeno pão seco para beber água semelhante, ou pior, que a antecedente. Assim passámos um dos sertões mais custosos neste caminho do Congo, de distância de nove ou mais léguas, eu e o Padre Dr. André, e ainda este Padre em certo modo padeceu mais, porque, vindo com uma valentíssima dor de cabeça, quase todo o caminho, veio a pé, porque os pretos diziam que não podiam com ele, e o punham em terra, e a mim faziam o mesmo, mas eu nada podia, e lhe rogava me levassem, e que bem viam o meu estado. Contudo, muita paciência me foi precisa para os sofrer, e ainda me fugiram, fazendo-me ir a pé um bom pedaço, sem poder; assim chegámos semeando os ares de suspiros, e pedindo ao Senhor fortaleza e paciência, e tanto que a cada passo me parecia ser a hora da minha morte, pelo que queria que outro Padre fosse sempre perto de mim para / p. 45 /me assistir. No caso que a moléstia mais se adiantasse, o que não deixava de adiantar o calor do Sol, e outros incómodos; mas, graças ao Senhor, com tudo isto nunca perdi o ânimo, nem me arrependi da minha vocação pois sabia que padecia pela causa do meu Deus e meu Senhor, que por meu amor ainda mais padeceu, e por amor de mim morreu.
Chegámos já noite à primeira Povoação, aonde se achavam os dois Padres companheiros, que tinham vindo no dia antecedente, e imaginando achar algum alívio com a sua companhia, quando mais se aumentou a nossa dor, vendo-os prostrados em cama, gemendo e quase a morrer pelas grandes moléstias que também padeceram no caminho, e pela falta de alimento que também ali experimentavam, que nem dado, nem vendido se achava, e apenas uma pequena franga nos deu a todos alguma pouca água por substância, depois de tantos trabalhos. E daqui para diante principiaram a tomar mais ascendente as nossas moléstias. Eu. Cercado das mais penetrantes dores, e febres, que de noite e de dia me tiravam o descanso. O mesmo sucedia aos mais Padres companheiros, não tendo outro remédio que água fria, de que não nos podíamos ver fartos; e com efeito nesta achávamos grande / p. 46 /alívio, principalmente eu, que também com alguns banhos, e fomentações melhorei das dores, e não em as febres; com a nossa moléstia, passámos à povoação vizinha e desta a outra, onde nos diziam haveria melhor cómodo.
Chegámos enfim a esta última, aonde se estabeleceu o nosso hospital, sem alinho, sem médico e sem remédios: aqui não se pode explicar o que padecemos pelo espaço de quase um mês, que ali estivemos. Todos os quatro companheiros doentes, gemendo de dia, e de noite, não podendo tomar se não alguma purga, ou vomitório, que trazíamos, mas não sabíamos aplicar, nem como, nem quando, nem conhecíamos seriam úteis; e era tudo o de que constava a nossa botica, e alguma pouco de Quina. Ocasião houve em que todos nos víamos tão molestos que nenhum poderia a outro aplicar os últimos remédios de Cristãos, e tanto que uma vez vendo o nosso miserável estado e desamparo chamei ao Senhor Misericordioso e este Senhor como Pai nos acudiu; pois, sem médicos, e com algum pequeno remédio mal aplicado, me deu algum esforço para poder olhar pelos meus companheiros, que se achavam mais prostrados, e dizer Missa ao Povo nos Domingos e dias de Festa; ainda que com tanto trabalho / p. 47 /que quase desfalecia no altar, sendo preciso levar alguns cheiros confortativos para poder acabar o Santo Sacrifício: e não só isto, mas algumas vezes me levantava, e outro Padre companheiro para administrar o Santo Baptismo, e o Matrimónio, e ainda mesmo a Penitência em algum pequeno tempo de alívio, sendo às chusmas os Fiéis que os pediam.
Aqui também a falta de alimento e de outros alinhos para doentes, ajudava pouco as nossas forças; a nossa comida quotidiana era apenas uma galinha para todos os quatro, somente cozida em água e sal, que outro tempero não o tínhamos, e nada mais. E se a dieta é boa para os enfermos, esta não nos faltou, mas não nos curou; e falando do alimento, são os pretos tão escassos em o dar, que dando pouco lhe parece dão muito, e ainda que pouco, é necessário ser por via do Baptismo, ou Confissão, que quando recebem estes Sacramentos, é costume introduzido pelos antigos trazerem alguma esmola para sustento do Padre, a qual às vezes é tão pouca, que apenas será valia de um vintém, ou pouco mais, e às vezes menor; e com dificuldade vendem. Contudo, deste pouco nos sustentávamos, e alguns pretos, que nos serviam. Algumas / p. 48 /vezes, porém, tivemos alguns presentes dos grandes, que é algum porco, ou carneiro, segundo o costume, do que não nos podíamos aproveitar; mas recebíamos com amor; e as suas visitas que aqui nos faziam, às quais eu assistia por estar com mais algum vigor.
O sítio desta Banza chamada Mossaba é agreste, triste, metido entre serras, e matos, e pelo mesmo meio da Povoação tantos paus plantados de propósito, que acrescentavam o mato e nos tiravam a vista, não tendo mais que pô-la no Céu, donde só esperávamos o nosso alívio, e consolação, esperando do Senhor remédio para nossos males por meio de Maria SS.ma cuja devota Imagem trazia, e tinha exposto em nossa casa, e na verdade a esta grande Senhora atribuímos o ver-nos livres de tantos males. Um perigo bem manifesto nos ameaçava nesta Banza, de que, cremos, milagrosamente nos livrámos, como os mesmos pretos o confessavam: de nos abrasarmos nós, e mais eles. E foi que um dia 23 de Setembro, o fogo bastantemente ateado, e que devorava o vizinho sertão, tendo o vento bem a seu favor, se veio aproximando à dita Banza, dando tamanhos estalos que atemorizavam , cobrindo o Céu de fumo, e a nós já, de suas cinzas. Chegou enfim a ate/ p. 49 /ar-se a uma casa de palha, como todas as da Banza, segundo o costume do País, a qual ficava bem próxima à nossa, da mesma matéria, e distante dela cinco ou seis passos, tendo até ela bastante pasto para as chamas. Eis aqui nós todos assustados, sem saber o que fizéssemos: salvar tudo era impossível, e muito seria se livrássemos as nossas vidas, quando alguns de nós só podíamos dar um passo, e algum nem da cama [se] levantasse, como podíamos fugir? Gritámos aos pretos [que] acudissem, muitos não faziam caso, porque a roupa é pouca; palha para as casas, havia muita pelo mato. Contudo, alguns acudiram. Entretanto, mandámos separar para longe algumas cargas, que mais estimávamos como os altares portáteis, e principalmente quatro barris de pólvora, que levávamos para o Rei, em que havia o maior perigo, e a maior parte pereceria sem remédio; procurando só salvar-nos, e determinando levar em a cama a um Padre mais doente, e os mais nos braços dos pretos, mas, bendito Deus, contra a natureza do fogo e da nossa esperança terrena, mas não contra a que tínhamos no Céu; o fogo com bem pouca diligência tomou outro caminho pelo mato. Descansados apenas deste trabalho, e susto, eis aqui vem outro maior da parte mesma donde soprava o forte / p. 50 / vento contra toda a Banza, e da mesma para onde se tinham levado os barris de pólvora, se ateou com mais força novamente o ardente e voraz fogo, e vinha contra a Banza toda a abrasá-la; eis aqui o maior temor; aqui imaginei que tudo se queimava. E assim, sem em mais cuidarmos, me peguei a uma Imagem de Jesus Cristo Crucificado, e clamando-lhe misericórdia, não fiz, como fora de mim, que discorrer por toda a Banza, e sair do Campo, e ver se havia algum lugar, aonde livres do fogo, pudéssemos salvar a vida, o que não achei por estar toda a Banza cercada dele. Entretanto, alguns companheiros procuravam salvar alguma coisa e principalmente apartar a pólvora; mas, oh Bondade infinita! Quando eu cuidava que tudo se abrasasse, já os companheiros me mandavam procurar, porque, cuidadosos de mim, me temiam algum mal, como eu deles; e ajuntando-nos, achei a alegre notícia, de que o fogo com pouca diligência se tinha retirado; o que eu fui mesmo examinar, e admirado dei graças a Deus, vendo o fogo contra a sua natureza, e contra o vento, que o impelia arder para trás. Essa seguinte noite sempre o fogo estalou, pegando ainda em árvores mesmo verdes, e ainda que tínhamos / p. 51 /algum temor natural, nos animava a divina protecção, que havíamos experimentado; assim pusemos algumas vigias para nos avisarem dos estragos futuros, mas o fogo cada vez mais de nós se apartava, e, no dia seguinte, [em] que seguíamos a nossa viagem para outra Banza, vimos os grandes estragos que havia feito pelo caminho por onde passámos.
Depois de celebrar o Santo Sacrifício da Missa, ainda que com pouco vigor, como fugindo do fogo, e pelo desejo de mudarmos daquela situação, e passar a outra, que fosse mais salutífera, nos determinámos ir adiante deitados sobre as nossas redes, e com grande cautela com os mais doentes. Daqui foi a dificuldade da gente, em nos levarem e foi preciso gritar eu , já por bem, já por mal para mover os pretos a carregar-nos, e algumas coisas mais necessárias. Entretanto, o nosso condutor ia mandando as outras. Partimos, e muito padecemos no caminho, um dos mais terríveis que encontrámos, e mais que o antecedente, cheio de altíssimas serras, ainda que mais povoados como todos os deste Ducado de Bamba, que são cheios de muitos povos. Era muito dificultoso subir, e descer pelas grandes serras; os caminhos tão estreitos, que apenas cabia uma só pessoa, e todos os deste Reino são assim. Rios profundos, ainda que / p. 52 /naquele tempo secos, de difícil passagem e, se alguma pouca água tinham, encharcada. Estas são as suas fontes, que outras não há. Passámos por muitas Povoações, e só íamos buscar a maior parte delas, aonde pudessem recorrer a nós de todas as partes com maior comodidade. Logo na primeira Povoação, e muito vizinha a donde saímos, nos queriam deixar os pretos, e o mesmo faziam em todas, e ainda no meio do campo, e era preciso que eu muitas vezes gritasse contra eles, porque vinha alguma coisa mais forte, e me compadecia dos Padres companheiros, que algum chegou a chorar vendo a rebeldia da gente, e pela sua moléstia deitado no meio do campo, sem o quererem levar. Eu já os levava por mal, sem temor deles, antes eles o tinham de mim. Outras vezes por bem, que tudo era preciso, e dizer-lhe que era isto serviço de Deus, e se eram cristãos, servissem a quem por eles deixava suas terras para padecer tantos trabalhos; a que eles se sujeitavam, pois têm esse bem de serem sujeitos aos Padres, mas depressa lhes esquecia a repreensão e sempre estavam dispostos a deixarem-nos e fugir, como alguns fizeram, vindo com a esperança de lhes darmos aguardente de cana, de que são muito devotos, e nunca se fartam; e nós não podíamos dar tan/ p. 53 /to, e alguns já se tinham convidado, outros vinham para baptizar os seus filhos, e em toda a parte os queriam baptizados, para, em se verem servidos, nos deixarem, o que nós advertíamos e só os baptizávamos aonde queríamos parar, e assim obrigámos muitos. Contudo, ainda isto não bastava, e punham o Padre no chão sem o quererem levar, pelo que me era preciso adiantar-me, e buscar gente a outros povoados.
Via Arlindo-Correia.com
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