Viriato da Cruz: um intelectual angolano do séc. XX. A memória que se faz necessária

Por Carlos Serrano

Introdução

O breve século XX pode ser resumido como iniciado com a revolução russa em outubro de 1917, e o colapso prematuro desta em novembro de 1989 (Eric Hobsbawm, Era dos Extremos – O Breve Século 20, Companhia das Letras, 2004). Estes são dois marcadores de tempo importantes politicamente. Nesse período inclui-se o processo determinante para a História de Angola: a emergência da luta de libertação que conduziria à independência, em novembro de 1975, bem como os seus atores sociais relevantes para a História do país. Se bem que pequeno historicamente, este lapso de tempo foi vivido intensamente pelos angolanos e seus líderes na rebelião que conduziu a formação de uma consciência nacional durante a luta clandestina primeiramente e em seguida a luta armada de 14 anos (1961-1975).

Uma das lideranças que desempenhou um papel fundamental neste período foi Viriato Francisco Clemente da Cruz, que deu uma contribuição mportante ao desencadeamento deste processo. Sua reflexão como intelectual, líder político, dissidente e crítico em diversos momentos marca a sua trajetória como ator político deste período do qual não pode ser dissociado. Os momentos cruciais da História do Movimento de Libertação Nacional deverão ser compreendidos por certos “tempos” por nós já definidos em trabalhos anteriores (Serrano, 1988; 2002; 2005).

O Tempo do Imaginário como momento cultural necessário à construção da “comunidade imaginada”, o Tempo da Revolução, isto é, dos Projetos e do Programa Revolucionário que se cristalizam no momento do Tempo da Independência, ou seja, ao tempo de consagração da luta libertária.

Pretendemos analisar os textos, ações e representações de Viriato bem como certos discursos expressos a seu respeito neste período e após, que penso constituir um debate necessário à construção da memória da Nação. Suas posições como humanista, nacionalista e marxista são necessárias para a compreensão e fixação da memória necessária à Historia recente de Angola, para que não resultem distorções e amnésias causadas por conflitos pessoais ou ideológicos a ultrapassar. Memória que se faz urgente e necessária.

Breve nota biográfica de viriato da cruz

Viriato Francisco Clemente da Cruz nasceu em Kikuvo (Porto Amboim), a vinte e cinco de Março de 1928, filho de Abel Francisco da Cruz e de Clementina Clemente da Cruz.

Participou com os jovens de sua geração das associações culturais legais como a Liga Nacional Africana e a Associação dos Naturais de Angola. Foi um dos mentores do Movimento dos Novos Intelectuais de Angola (1948), da revista Mensagem (1951-1952) e da revista Cultura nas quais manteve uma contribuição como poeta, um dos mais destacados da sua geração. Poderíamos dizer que Viriato da Cruz e Mario Pinto de Andrade constituíram aquilo que denominaríamos de ideólogos da angolanidade por terem iniciado o momento de reflexão sobre a nação angolana e a consciência nacional a partir de movimentos culturais.

É neste período que surge o movimento cultural que tinha como postulado “Vamos descobrir Angola”, destacando a necessidade de descobrir no seu povo os seus valores intrínsecos. Viriato mantinha contato com outros intelectuais em outros países e colaborava nos jornais “Brado Africano” (Moçambique) e revista “Sul” (Brasil).

A partir de certo momento o Tempo do Imaginário dá lugar ao Tempo da Revolução e estes jovens intelectuais partem agora para a organização de grupos políticos na clandestinidade não apenas como contestação ao colonialismo mas também com o objetivo futuro de uma ação que pudesse por fim a esta situação.

Foi fundador do PCA (Partido Comunista de Angola) juntamente com Antonio Jacinto, Ilídio Machado e Mario Antonio, entre outros. Reconhecem, no entanto, que ainda não era o momento para a formação do partido comunista. Assim, junto com o PLUA – Partido de Luta Unida dos Africanos de Angola e outros elementos progressistas dão origem a um “amplo movimento popular de libertação de Angola” como preconiza o Manifesto de 1956 do MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola, no qual Mario Pinto de Andrade seria o Presidente e Viriato da Cruz o Secretário Geral. Deve- -se dizer que é Viriato que redige o Manifesto do qual ainda existem cópias manuscritas em sua escrita peculiar. A maciça presença de cartas e documentos de sua autoria estão publicados no primeiro e segundo volumes de Um amplo movimento , de autoria de Lucio Lara, um dos outros companheiros que desde o início estão na direção do Movimento. Este foi um período importante para o nacionalismo angolano e para o Movimento. É o início da luta armada e a estrutura primeira para consolidação do movimento, o recrutamento e a militância dos angolanos revolucionários identificados com um programa mínimo que integrasse militantes dentro das aspirações do povo angolano e sua luta pela Independência. No entanto, surgem as primeiras divergências que se vão exacerbar quando Agostinho Neto, ao sair para o exterior, entra em conflito com as idéias de Viriato e no Congresso de 1963 dá-se a cisão-expulsão com a saída de Viriato do Movimento e alguns dos seus companheiros formando um grupo conhecido por MPLA-Viriato dissidência que não vai conseguir catalisar a força necessária para conduzir a luta ou transformá-la em uma etapa superior do processo revolucionário. Há a assinalar o conflito sino-soviético como evento que agrava as discussões em foco. Os futuros conflitos vão colocar os seus militantes em constante perigo físico (como as mortes de Matias Miguéis e José Miguel), e vai levar Viriato, então na Argélia (63-65), a procurar refúgio na China onde ocupou a secretariado da Organização dos Escritores Afro Asiáticos (OEAA). Mas Viriato, apesar de sua primeira simpatia pela Revolução Chinesa, torna-se um crítico dos rumos que ela tomava na época. Isso o levou novamente a uma situação de ostracismo pelos dirigentes chineses ocasionando, pela falta de cuidados médicos necessários, o agravamento da sua saúde, vindo a falecer em Pequim no dia 13 de Junho de 1973.

Testemunho – como conheci viriato (o encontro)

O encontro com Viriato foi para mim um momento significativo em termos de história de vida porque me revela o contexto transformador de um voluntarismo próprio, subjetivo, de um momento vivido, para uma situação objetiva a partir de um diálogo de esclarecimento estabelecido com um dos mais importantes líderes angolanos do século XX.

Viriato é realmente uma personalidade definitiva para a minha formação política e à qual sou muito grato, após a minha saída de Angola, pela oportunidade de esclarecimento de minhas dúvidas, surgidas nas leituras de diversas origens e pelos acontecimentos que se sucediam àquela época. Refiro-me a eventos associados à luta de libertação nacional no contexto do continente africano e em particular a Angola, fonte de nossa motivação política, mas, também, a crise do movimento estabelecida naquele momento.

Vim a conhecer e estabelecer contato com Viriato em Argel, do final de 1963, ao começo de 1965, ano em que saí da Argélia e fui para a Suíça. Em um ano e dez meses que eu estive em Argel, tive a oportunidade de conviver de perto com o Viriato.

Eu era bastante jovem, tinha 21 anos, e o Viriato era para nós, jovens saídos da Casa dos Estudantes do Império (em Lisboa) e vindos de Angola, uma figura quase mítica.

Na minha chegada a Alger eu estava com vontade de conhecer o Viriato. Assim, esperava que alguém que me pudesse apresentá-lo. A pessoa a quem eu estava mais próximo e que era amigo do Viriato era o Sócrates Dáskalos. E o Sócrates prometeu-me apresentá-lo. Oportunamente nós deslocamo-nos a uma cidade próxima de Argel chamada Boufarik. Eu trabalhava numa outra cidade, também próxima de Alger, Blida. No itinerário de Argel para Blida, passamos em Boufarik, onde vivia e trabalhava como médico no Hospital local o Dr. João Vieira Lopes. Sabíamos que o Viriato estaria nesse dia visitando João Vieira Lopes, e deste modo o Sócrates disse: “Serrano esta é a oportunidade de conheceres o Viriato”. Paramos em casa do Dr. João Vieira Lopes, a quem não conhecia, para visitá-lo e deste modo conheci também sua mulher, Gina, e o Viriato da Cruz.

Foi assim que conheci o Viriato. Estava também presente a Maria do Céu Carmo dos Reis, que dava aulas num colégio em Boufarik. Escutei calado quando falava das coisas da terra, das risadas abertas do Viriato quando a Maria do Céu declamou alguns poemas dele (era comum na Casa de Estudantes do Império haver declamação dos nossos poetas) e ela os tinha decorado pela força de seus versos e pelo que representavam para nós, jovens nacionalistas. Foi uma tarde memorável. Quando nos despedimos eu demonstrei interesse em voltar a falar com ele, mais demoradamente, em outro momento Ele deu-me as indicações de onde podia encontrá-lo em Argel.

Ao voltar para Argel, em várias ocasiões falei com ele. Era uma pessoa que eu tomava como um conselheiro. Necessário dizer que ele já tinha criado a cisão no MPLA, que tentou fazer um acordo próximo ao FNLA; ele orientava e/ou aconselhava, de certa maneira, o que se podia chamar o “bureau” do FNLA em Argel. O representante era o Johny Eduardo, que ele me apresentou em certo momento (Johny Eduardo após a independência filiou-se ao MPLA).

Ele nunca se integrou à FNLA (a Frente) individualmente, mas como grupo. Como grupo, vinculado ao MPLA-Viriato, não como personalidade, nada disso. E tinha seus co-participantes, em Kinshasa, (ex-Leopoldville), o Matias Miguéis e o Zé Miguel, além de outros angolanos da dissidência. Vi que o boletim do FNLA escrito pelo escritório de Argel era em parte elaborado por ele, e apenas nessa época.

Estes textos são documentos que devem ser compreendidos como importantes daquele momento. Um destes boletins em que ele escreve sobre os “luso-angolanos” é célebre. Denominação essa criada por ele para se referir aos camaradas brancos que militavam no Centro de Estudos Angolanos de Alger. Em nenhum momento há qualquer exclusão do grupo, pelo contrário, ao inserir esta categoria num boletim do FNLA ele estava incluindo este segmento num dialogo político, mesmo que este tenha um sentido crítico, no artigo mencionado. Lembro-me que o Sócrates Dáskalos ficou muito satisfeito com isso, com a visibilidade dos brancos nacionalistas. Enfim, eu tinha essa relação próxima que me levava também a ter consciência dos seus problemas e dificuldades materiais e de reconhecimento político na Argélia.

Momento (tempo da revolução)

É no decorrer de 64, pois eu cheguei a Argel em julho ou agosto de 63, fiquei 64 e saí de lá no início de 65. Quando foi o golpe de Estado aqui no Brasil, eu estava exatamente em Argel, foi em 64. Eu passei o ano todo de 64, Então é no decorrer de 64. E eu, além disso, tinha todo um relacionamento com a Conferência, já nessa altura, com a Conferência de Escritores Afro-asiáticos com sede em Pequim. O Viriato se relacionava com pessoas, não muitas, mas com algumas pessoas dentro do próprio MPLA/Brazzaville, que reconhecia nele méritos de liderança e que nunca quiseram cortar uma relação de amizade, nem o próprio Viriato o queria. Eu, mais tarde, entrevistei um “mais velho”, Felipe Fragata (já falecido), que conviveu com o Viriato quando jovem. Disse-me que na juventude já tinha essa conduta para com os amigos e afirmava: “Olha, jamais corta relações, a gente afasta-se”, o que mostra o caráter do Viriato, que era uma pessoa que, por mais que digam que ele era exaltado, irascível, enfim todas essas coisas que queiram dizer, eu acho que é preciso ter atenção com quem o afirma. Tudo o que indica as pessoas, pelo menos as que conviveram com ele por toda a vida, e mesmo na juventude, lhe dão outro caráter, e eu também, pois convivi com ele muito de perto. Basta dizer que o Viriato vivia em condições precárias em Argel. Todos viviam razoavelmente bem. Evidentemente que vivíamos de qualquer jeito, mas as lideranças viviam bem, e Viriato vivia numa ‘kitinete’, que era um quarto apenas. E me lembro de uma noite em que fui falar com ele, e realmente era um pouco tarde, e a esposa e a filha de dois ou três anos já estavam dormindo, e ele me recebeu à porta de pijama e disse, “Desculpa, a família está dormindo”… “Desculpa-me, eu vou embora”, e ele, “Não, estás aqui para falar comigo, então vais falar comigo”. Então entramos para o banheiro, ele de pé e eu sentado no vaso, e ficamos falando ali não sei por quanto tempo. Quem procede deste modo? É preciso ser muito solidário para agir desta maneira. Eu afinal era um “garoto” de 21 anos.

Este “ato de generosidade” muito próprio de Virato é também citado por Fernando Mourão no livro Viriato da Cruz, O Homem e o Mito3 , que tão bem conheceu e é um dos traços de caráter associados ao Viriato pelos seus amigos tanto pessoalmente quanto politicamente. O demitir-se do comitê diretor do MPLA para dar acesso a novos elementos não mestiços á direção é um ato (exemplo dado por Fernando Mourão) que não vai jamais se repetir por nenhuma das lideranças na mesma ação de generosidade dada como exemplar. Este ato foi alvo de diversas críticas posteriores no entanto Mário Pinto de Andrade, em entrevista da a Michel Laban, vai reconhecer autocriticamente que errou ao não dar o necessário apoio a Viriato neste momento crucial que levou Agostinho Neto à direção e resultou na primeira cisão do Movimento.

Mais tarde manifestei-me dizendo: “Olha Viriato, eu aqui não faço nada, não estou dando conta de certas privações, etc., não consegui bolsa da UGEAN (União dos Estudantes da África Negra de Língua Portuguesa). A UGEAN conseguia as bolsas para os estudantes das colônias sob o domínio colonial português para os países socialistas. Eu nunca consegui uma bolsa, a minha relação próxima ao Viriato foi determinante para tanto. Eu não consegui porque sabiam da minha relação, apesar de ter carta de apresentação do Paulo Teixeira Jorge, grande amigo que me deu guarida em Paris quando eu saí de Angola. Mesmo assim não foi possível. Como não tinha conseguido bolsa, o Viriato disse-me, “Tens que estudar. Se um dia queres ser útil a Angola, é estudando. Não podes ficar aqui fazendo nada, se tens a oportunidade de estudar, vai estudar”. Deste modo pensei voltar à Europa e ir para a Suíça onde tinha alguns amigos. Ele disse, “Está bem, então vou escrever uma carta para um nosso amigo, nosso camarada”. E enviou uma carta a um estudante angolano que ali se encontrava e que se tornou um grande amigo enquanto ali estive. Tínhamos uma amizade próxima com o Viriato, que outras pessoas de nosso convívio desconheciam. Esse estudante era o Manuel Borges Bamba (falecido em Luanda pós independência). Havia em Lausanne (cuja Universidade freqüentei) alguns estudantes militantes do FNLA. Alguns deles, mais tarde dissidentes, seriam os fundadores da UNITA. Os estudantes e militantes do MPLA viviam entre Lausanne e Genève. Entre eles haviam alguns interessados nos escritos de Viriato. Havia também gente da oposição portuguesa, e alguns estudantes portugueses filhos de famílias burguesas da situação que ali se encontravam para não participar da guerra colonial. Então era um lugar onde se precisava ter um certo cuidado. Por vezes o Viriato nos mandava correspondência, que devia ser enviada a Kinshasa, para o Matias Miguéis, o mais velho seu companheiro. Nossa atividade política resumia-se a isso, mas poderia ser comprometedora, pois a polícia Suíça interditava qualquer atividade política. Éramos refugiados com estatuto próprio.

Essa correspondência que nos chegava e que tínhamos que remeter eram notícias e relatórios completos de suas reflexões sobre a situação do movimento de libertação e o “que fazer”, orientações sobre o que realizar em termos táticos, questões relativas à mobilização dos militantes e sua formação política, sua preocupação constante. Esse material, se fosse recuperado hoje, daria mais do que um livro. Eram reflexões do ponto de vista da “práxis” revolucionária no contexto da luta de libertação nacional em Angola.

Nesta época, devia realizar-se a II Conferência dos Países Não-Alinhados em Bandung, Indonésia, organizada pelo presidente Sukarno. Mas esta abortou devido ao golpe de Estado de Suharto. Matias Miguéis e José Miguel encaminhavam-se para aquela Conferência, por indicação do Viriato. Mas acabaram por retornar, salvo erro, quando estavam em Delhi ao ficarem sabendo do golpe de Estado. Em Paris, mudaram o itinerário para Brazzaville. Ali deviam atravessar o rio Zaire para se dirigirem a Kinshasa, no ferry-boat, mas foram reconhecidos por alguém do MPLA/Brazzaville, que mandou imediatamente a polícia congolesa prendê-los. E eles foram presos. Nessa altura Viriato estava ainda em Argel e se mobilizou fazendo abaixo-assinados etc., tudo para que o governo do Congo-Brazaville os soltasse. Ou pelo menos não os matassem. Ele nos enviou esses abaixo assinados para a Suíça, e andamos recolhendo assinaturas entre vários estudantes de várias nacionalidades solidá- rios com a luta nacionalista de Angola. Enviamos ao presidente da República do Congo, Massemba-Debat, os abaixo-assinados esperando algum resultado mas, infelizmente, não deu certo: eles foram julgados e fuzilados Mais tarde, um dos companheiros do MPLA/Neto, andou procurando quem estava recolhendo as assinaturas. Queria saber quem enviou as assinaturas para salvar os companheiros de uma morte absurda. Fez-me lembrar os acertos de contas da FLN argelino entre facções rivais, antes da independência. Acho que este foi um aprendizado terrível pelo qual os angolanos passaram, infelizmente. E isso demonstra como a gente às vezes fica quieto sem dizer nada, nem se pronunciar publicamente sobre assuntos graves como aquele, por medo.

Esta mobilização deu-se por iniciativa de Viriato da Cruz a partir de diversos países da Europa e de África onde existiam estudantes, militantes e cidadãos angolanos no exílio, solidários com aqueles companheiros. Não podemos esquecer a passagem do Manifesto do MPLA de 1956 redigido pelo próprio Viriato da Cruz e por ele sublinhado no original: “É indispensável portanto, ter sempre presente, que um bom africano é pelo menos aquele cuja palavra e cuja mão nenhum outro africano honrado pode temer.”

Escritos do viriato

Depois da morte do Viriato tive a oportunidade de ler um documento datilografado que a gente (estudantes próximos a Viriato) denominávamos após sua morte de “Testamento do Viriato” (ainda não se conheciam os textos da China mais recentes). Pensava-se que tinham sido os últimos escritos dele. Pelo menos sobre Angola, acho que eram. Era um documento em que ele, como sempre fazia, deixava certa interrogação sobre quem era que estava na cabeça da revolução, quais os seus méritos, suas estratégias no âmbito interno e externo. Não era um artigo da revista Révolution. Era uma análise marxista com referências de alguns teóricos chineses no que se refere à luta anticolonial e a guerra prolongada. Há uma citação de Alfredo Margarido num seu artigo que sintetiza bem essa sua preocupação com as novas tendências do movimento, ao afirmar que: “Em corrigindo (esses erros) compreendia não somente a importância maior do campesinato pobre no combate anti-colonialista, mas visava também a passagem a uma fase superior do combate, no quadro teórico de Mao.”(Mao Tse Tung ). Durante algum tempo estas leituras eram feitas sigilosamente. As pessoas tinham receio, mesmo depois da morte do Viriato, de ter um documento por ele escrito ou datilografado. Isto demonstra como as pessoas realmente se comportavam, durante esse período, seja antes ou após sua morte, e durante algum tempo, coagidas a não se revelarem próximas a ele. Só há algum tempo atrás, quando alguns camaradas; como por exemplo Antonio Jacinto, (que, na revista Novembro, fala do início do MPLA, da fundação do PCA, e de seu idealizador); ao reafirmarem sua posição pioneira no movimento nacionalista, começou-se então a reabilitação de Viriato da Cruz como intelectual e liderança política. E, realmente, o Antonio Jacinto não titubeou em pôr o nome do Viriato como um dos iniciadores do processo revolucionário, e também claro, mostrá-lo como intelectual, como poeta, como ator político. Há uma ausência de seu papel posterior mas se isenta de fazê-lo porque não esteve presente, estava preso no Tarrafal. No entanto o seu depoimento é importante pelo momento histórico que compartilharam. Depois fica uma amnésia institucional pós-independência.

As iniciativas pessoais de Edmundo Rocha,;Lucio Lara e seus filhos Wanda e Paulo através da Associação Tchiweka; Monique Chajmowiez junto com Michel Laban e Christine Messiant,7 assim como outros amigos e biógrafos ao recuperarem parte de seus escritos e o biografarem ou ainda fornecendo depoimentos, dão início a uma nova fase de recuperação de sua memória, necessária para a História recente de Angola.

Viriato e o marxismo

Uma afirmação que temos constantemente escutado e lido é que o Viriato era o único comunista que havia em Angola. E é possível, mas nem sempre compreendo bem o teor desta afirmação. Às vezes de forma irônica como se isto fosse um estigma, o que conduz “a estar à margem da compreensão do nacionalismo angolano” (como se fosse um modelo externo à realidade angolana). Outras vezes, colocava-se Viriato como o único marxista convicto não só pela sua formação, mas também pela sua práxis política. Assim, desde sua juventude, o Viriato tinha uma enorme leitura de teóricos marxistas que depois no exílio foi aprofundando e discutindo com várias pessoas, não só angolanos, certos fundamentos associados à questão nacional. Viriato e Antonio Jacinto por correspondência com o Brasil (com o escritor Salim Miguel da revista “Sul”, em Florianópolis, Santa Catarina, da qual foram colaboradores, assim como outros intelectuais das colônias portuguesas) conseguiram vasta literatura, não só de jornais como de livros que chegavam clandestinamente a Luanda. Na correspondência com Salim Miguel são nomeados diversos autores marxistas soviéticos e chineses dos quais são pedidos seus livros. Estes momentos poderiam definir-se como Tempos do Imaginário que devem ser compreendidos no seu contexto histórico (ver Serrano, 1988).

O processo é interessante, e acho que é um processo idêntico a outros de esquerda na África, Muitas das lideranças de esquerda marxistas eram também nacionalistas. Mas nacionalistas na verdadeira acepção da palavra. Virado para o povo e virado para a construção de uma autonomia em termos ideológicos até, de uma autonomia que compactua com as pessoas da terra, com todos. Eram na acepção do que Gramsci denominou de intelectuais orgânicos e desta maneira compreendiam as aspirações populares que antes de tudo era a de libertarem-se do colonialismo.

O nacionalismo de Viriato era, tal como o de Amílcar Cabral e Mário Pinto de Andrade, o projeto de uma nação socialista, solidária com outras nações que buscavam as independências e dos povos que lutavam contra as mesmas injustiças sociais criadas no mesmo contexto colonial. Era o projeto de uma Geração que teve uma trajetória semelhante e no mesmo contexto histórico de combate ao colonialismo português. Geração que Mario Pinto de Andrade chama de Geração de Amílcar Cabral, mas que por isso mesmo também poderia chamar-se Geração de Viriato, ou Geração dos anos 50. Não era uma Geração de Utopia porque o Viriato nunca deixou de ter uma posição crítica ao socialismo vulgar ou de outro tipo que reificasse a realidade objetiva. E isso talvez o tivesse isolado no final de sua vida. A sua luta pela construção de um espaço autônomo de concepção ideológica sem ruptura do diálogo com os seus companheiros, este era um dos elementos de sua práxis.

A questão racial

Viriato, em entrevista para uma revista portuguesa democrática e antifascista em Londres em 1960 ou 61, questionado se o slogan de África para os africanos, não comportaria questões de ordem racial, se não conduziria a comportamentos racistas. Ele disse que não, que há líderes africanos casados com mulheres brancas, e África para os africanos está sintetizado em outro princípio que é um homem, um voto. Então os brancos também estão lá, vão votar e também estão dentro deste princípio. Então não é uma minoria no poder (transformada em ‘maioria’ sociológica como na ‘situação colonial’, tal como nos ensina George Balandier)9 , não é uma minoria branca ou crioula, ou qualquer coisa dessas, é um homem um voto. É um principio simples de ser enunciado, e, no entanto, era esquecido. Ele era convicto em suas concepções nesta matéria. Chegou a dizer-me: Serrano, tu sempre serás um angolano. Tens consciência, sabes isso… Mas essa não é a etapa para nós. O racismo só vai acabar quando a gente fizer da luta contra o racismo um princípio da luta de libertação. Do mesmo modo esta convicção se firmava nas discussões dentro do MPLA sobre quem devia estar na direção do movimento e na condução da luta, visto que havia um grande número de mestiços e de natureza pequeno- -burguesa urbana da mesma. Em 1963, ele renuncia à direção do movimento na qualidade de secretário-geral para dar lugar a um processo de africanização da direção. Criticado por vários dirigentes entre os quais alguns mestiços, foi posteriormente apontado como sendo um erro esta decisão, que nunca foi compreendida por alguns dos seus companheiros.

Como ele me falou em Argel, estas contradições iriam surgir mais tarde caso não se resolvessem esta situação. E ela seria sempre invocada pelos críticos exteriores ao movimento e no seio do mesmo.

Debate, crítica interna e continuidade da luta

Ele sempre colocava que as críticas que fazia eram sempre de uma ordem, de certa maneira, teórica. Ele proporcionava sempre um debate permanente com seus companheiros nas mais diversas ocasiões que conduzisse ao esclarecimento de pontos dúbios no encaminhamento da luta de libertação, para isso fazia-se necessário uma crítica interna que nem sempre era bem acolhida. A crítica principal era por vezes a direção do partido ou do movimento, não se referindo ao MPLA ou à FNLA, não há uma reprovação aos partidos em si, eles representam um segmento do povo e dos movimentos de libertação. Nas análises dele sempre se colocavam as forças que estavam em jogo. Tenho pena de não ter visto nenhum escrito, e talvez não tenha aparecido outro que se refira ao surgimento da UNITA, naquele momento Mas as forças que estavam em jogo eram do MPLA e da FNLA. E a questão que se punha era se as lideranças desses partidos, que no fundo eram lideranças formadas por uma pequena burguesia que muitas vezes desconheciam ou tinha certa alienação em relação às massas camponesas. Havia uma crítica muito grande associada a este distanciamento. Eu tive a sorte de falar com pessoas que combateram desde o início, 1961, na frente de Cabinda e na Frente Norte, e que, se tiveram uma formação política, deveu-se ao Viriato. Tomo como exemplo uma conversa com o comandante Anselmo João em Argel (mais tarde morre em combate segundo me informaram). Ele estava regressando da Bulgária de um curso militar, e sua passagem por Argel possibilitou-me falar com ele longamente do passado e do presente. Eu conhecia-o de Cabinda antes da minha fuga. Ele também teve que exilar-se para não ser preso pela PIDE. Esteve desde o início na luta em Cabinda e recebeu treinamento e formação política em Boma ou Matadi quando o MPLA se transferiu para o Congo/Leopoldville. Foi num desses lugares que se formaram os primeiros centros de formação revolucionária. E, segundo Anselmo, foi Viriato quem iniciou a sua formação política, assim como a de outros militantes daquele momento. Se ideologicamente alguns desses indivíduos tinham uma boa formação, determinação e objetividade em relação à luta de libertação nacional, deviam ao Viriato. E para quê? Para que exatamente esses indivíduos fossem os continuadores, que pudessem transmitir esta formação a seus camaradas e deste modo contar com suas próprias forças dentro da guerrilha e possivelmente tornarem-se futuras lideranças pelas suas capacidades, como sempre Viriato afirmava. Não eram indivíduos que tivessem que recorrer apenas a palavras de ordem quando da ausência do partido dentro da guerrilha como muitas vezes aconteceu. O partido muitas vezes está ausente, tem o comissário político, etc., mas as lideranças estão distantes. Ali eles têm que resolver os problemas de verdade, e precisava-se que estes militantes tivessem esta formação para que no futuro eles fossem certamente, de certa maneira, os dirigentes. Penso que apesar de tudo, muitas vezes, houve uma ruptura nesse processo. E ele tentava alertar para isto.

Um dos princípios que o orientava era de que devíamos contar com as próprias forças. Biograficamente lembro que desde jovem esta orientação estava presente. Quando cria com outros camaradas o Partido Comunista de Angola, criou-o independentemente da célula do Partido Comunista Português em Luanda e sem dar-lhes a conhecer a fundação daquele, apesar dos contatos pessoais com alguns destes camaradas; mais tarde, já no exílio, durante a luta de libertação reitera novamente a necessidade de limitar a influência dos “reseaux de soutien” (redes de ajuda) dos partidos de esquerda na Europa porque tinham tanta influência quanto ingerência nas decisões dentro do Movimento (ver seu artigo na revista Révolution10). E, por fim, lembro-me em Argel de seu entusiasmo ao narrar sua ida ao II Seminário Econômico Asiático – AES que se realizou em Pyongyang na Coréia do Norte entre 14-23 junho de 1964. As discussões realizaram-se em torno deste princípio “contar com as próprias forças” na construção do socialismo.

Seu humanismo e os valores por ele perscrutados com perseverança persistiram desde sua juventude até aos últimos dias da sua curta vida, mas afirmativa e significativa para os angolanos e sua História.

Um poema, de sua juventude, resume esta caminhada e sua luta como intelectual e revolucionário.

MAMÃ NEGRA

(Canto de esperança)

(À memória do poeta haitiano Jacques Roumain)

(…)

Pelos teus olhos, minha Mãe

Vejo oceanos de dor

Claridades de sol-posto, paisagens

Roxas paisagens

Dramas de Cam e Jafé…

Mas vejo (Oh! se vejo!…)

mas vejo também que a luz roubada

aos teus [olhos, ora esplende

demoniacamente tentadora – como a Certeza…

cintilantemente firme – como a Esperança…

em nós outros, teus filhos,

gerando, formando, anunciando –

o dia da humanidade

O DIA DA HUMANIDADE!…

 

11 São Paulo, Brasil, Novembro de 2011.

 

Consultar a versão original em pdf:

Viriato da Cruz: um intelectual angolano do séc. XX. A memória que se faz necessária

 

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