Wyza, sendo Bakongo e cantando em Kikongo, projectou a Kultura Bantu ao mais alto nível

Por Ana Kuloki

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Era Março Mulher de 2009. Estava em Luanda em trabalho de campo para um projecto de investigação que dirigia na Universidade de Stellenbosh, Afrika do Sul. Durante uma visita ao então recém-inaugurado Belas Shopping, deparei-me com um CD cuja capa me atraiu como um íman – uma composição evocando as pinturas rupestres de Tchiundo Ulo, hieroglíficos egípcios e símbolos Adinkra, centrada por uma efígie com o nome do que só depois de o comprar e abrir fiquei a saber que era a do seu autor: Wyza, com as suas tranças tipicamente Bakongo, invocando os troncos/ramos de um imbondeiro, e o título do álbum num dos cantos inferiores – Afrika Yaya.

Só o comecei a ouvir pela primeira vez já no regresso a Stellenbosch, numa experiência que só consigo descrever como um “arrebatamento emocional total e completo”, reverberando o misto de sentimentos que tentei expressar numa das minhas crónicas para o SA, “A Minha Pátria não é a Língua Portuguesa”, sete anos antes: “(…) Não sendo necessariamente identificável num mapa, a minha pátria reside bem no centro do meu ser. A sua essência manifesta-se através daquele impulso instintivo que me provoca um sentimento identitário ímpar quando ouço falar Kikongo, língua dos avós maternos que me transmitiram os significantes éticos e estéticos matriciais que conformam a minha personalidade (…)”.

Fosse a sua música já conhecida na altura, Wyza figuraria, certamente com proeminência, na lista de músicos influentes que citei naquela crónica… E foi assim que ele me entrou pela vida adentro com a sua música: passei a ouvi-lo todos os dias – em casa; na jornada diária de ida e volta dos 50 km entre Blouberg e Stellenbosch; entre Blouberg e a baixa de Cape Town, onde ia aos fins de semana para, no ‘Mercado dos Kongoleses’ local, comprar ingredientes para um funge, uma mwamba, uma kizaka, enfim – passei a ter nele um “compagnon de route” no sentido literal do termo…

wyzzaDe todas as faixas do álbum, uma instituiu-se como o meu ‘Hino Identitário’: Mbangala!… Aquele som grave e profundamente solene de violoncelo (fazendo lembrar a abertura do ‘Elgar Cello Concerto’), abrindo uma sinfonia de voz (solo), corais e violinos dialogando em perfeita harmonia com instrumentos e sonoridades Afrikanas, foi como uma descarga de luz abrindo um céu carregado de nuvens escuras e entrando-nos suavemente pela alma adentro, como que enviada pelos nossos Ancestrais, para nos lembrar das nossas raízes, nossas origens, nossa identidade… Uma experiência enunciada pelo introito, cantado em ‘a capella’, ‘Kana Yá, como que anunciando – “(…) Mbuta Muntu chega lento num rumor de águas no kacimbo de sua longa ausência de séculos no Kulumbimbi/ convoca os Nkisi sobre a Pedra do Feitiço (…)” [‘Epifania’ – A.K. 2011]

Mbangala em Kikongo, mais do que uma palavra, é um conceito que engloba vários significantes: numa vertente mitológica, Mbangala é a mãe de todos os ancestrais que formaram os clãs Kongo; noutra, de caracter político e simbólico, refere-se ao bastão, ou ceptro de poder; numa terceira ainda, refere-se à estação do Kacimbo. A canção é composta de provérbios Kongo relacionados com Mbangala nesta última acepção: do Kacimbo como o tempo de queimada da mata velha, em antecipação do tempo das chuvas, propiciando novas germinações…

Tempo de fecundidade da terra, de semear vida e prosperidade para o futuro e a reprodução dos valores tradicionais a ele associados: o trabalho árduo para o fruir pleno das águas para a autossustentação do indivíduo e da comunidade, o respeito pela propriedade alheia e a resiliência para enfrentar os problemas (mambu) do dia a dia… Valores que certamente D. Elisa Bunga, sua mãe e companheira de jornada na fuga da guerra do interior para a cidade na sua infância, sua mestre, fazedora e tocadora de kissanji, lhe incutiu, como ele nos contou: “Na fuga para a capital não trouxemos muitas coisas materiais, no entanto sempre esteve presente no nosso íntimo a saudade, e o sentimento de amor nos nossos corações”…

E a experiência repete-se ao longo de todo o álbum, entre ‘Mawe’, ‘Vava Ngina’, ‘Mpasi’, culminando em ‘Nganga Nvuala’: um conceito referente à ‘ciência da vida’ e os usos e costumes de um povo e à sua preservação. Nessa cancão, Wyza apela a que cuidemos desses nossos valores, lamentando que eles estejam sendo perdidos: “Pobres de nós (coitados) cantemos, educando sobre os nossos valores familiares, de linhagem patriarcal ou matriarcal. Para onde quer que vamos, devemos gritar sem vergonha, nem medo, divulgando quem somos” … Algo que ele também afirmou numa entrevista: “A minha estratégia é incentivar os mais jovens a compor e cantar em línguas nacionais, preservando sempre os valores culturais da tradição.”

Melodicamente, ‘Nganga Nvuala’ soa-nos simultaneamente como uma canção de lamento e de embalar, entrelaçando sensibilidade e ternura numa tessitura delicada como asas de borboleta… A canção termina com a voz de uma criança, talvez um anjo emissário dos Ancestrais, chamando por Wyza e este respondendo “espera aí que eu já vou” – como que pedindo aos Ancestrais que o deixassem ficar aqui por mais um pouco, porque a sua missão ainda não estava cumprida: “Na verdade ainda não gravei o disco que pretendo. Quero mais liberdade vocal e melódica, ou seja, a ideia é gravar um disco mais transparente. Um álbum que tenha o meu conceito, e a minha visão sobre os processos de estilização, um trabalho que possa estar identificado com o que de melhor se faz no mundo, no domínio da música africana.” …. Esse álbum ‘ideal’, anunciado “para breve” pouco antes da sua partida, não chegou a materializar-se (em sua vida, embora vaticinemos que venha a acontecer a título póstumo, pois ele deixou-nos material suficiente para tal)…

E também nos deixou ‘Kinsiona’ (que nos remete à fabulosa canção homónima do grande Franco) e ‘Bakongo’ – retraçando as viagens da minha infância, adolescência e juventude, no carro do Ti-Pepe, pelo Norte adentro: Bungo, Damba, Mukaba, Nfuta Makokola, Negage, Sanza Mpuri, Soyo, Mbanza Kongo, Kimbele… E uma profícua produção musical, em colaboração com uma grande diversidade de músicos e produtores nacionais e estrangeiros – pensando e musicando sem fronteiras, (re)tecendo, breve, mas eternamente, a nossa espiritualidade – “do perfil da música ao bico do pássaro” (A.S. in S.O.S. – 1985), sem nunca perder a sua Identidade Angolana…

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Porque Wiza, sendo Bakongo e cantando em Kikongo, projectou a Kultura Bantu ao mais alto nível que lhe foi possível, tendo no processo elevado a música Angolana a patamares nunca antes atingidos. E fê-lo ficando a dever pouco ou nada aos grandes griots do Mali e do Songhai (como a sua rendição de Mbifé o demonstrou) e o seu Afrika Yaya só pecando pela ausência do grande Manu Dibango… O que me levou a fazer este ‘statement’ no meu blog ‘Kongo Blues’, pouco depois de o ter ouvido pela primeira vez, há 8 anos: “(…) Wyza is an up and coming Bakongo musician. Having been humbled, moved, amazed, mesmerised and overwhelmed by his voice and music since recently discovering him, all I can bring myself to sensibly say is: Forget so and so (no offense to anyone intended, but…), Wyza is the Angolan musician with his finger on the pulse of (‘global’) music!”

E com essas palavras, que mantenho até hoje – quando, finalmente, Wyza decidiu responder ao chamado dos Ancestrais (talvez por achar que, como músico, com Mestre Kamosso não poderia estar em melhor companhia) – termino esta minha singela homenagem a um gênio cuja música perdurará certamente no património da Kultura Angolana. E, como é próprio dos gênios, partiu cedo demais para nós simples mortais… Mas não sem cumprir a missão que lhe confiaram os nossos Ancestrais: entregar-nos a sua alma, através da sua música, cantando exclusivamente e sem pedir desculpas, em Kikongo, como se nunca tivéssemos sido colonizados – transportando-nos de volta a um tempo em que não precisaríamos de nos defender por termos escrito “A Minha Pátria não é a Língua Portuguesa”…

 

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