DON FRANCISCO DE MATA MOURISCA: “Devemos deixar os políticos tratarem da política e os cristãos de Deus”

 

Por Miguel Daniel

A entrevista decorreu num clima ameno, apesar da poeira resultante das obras de reparação da estrada principal do bairro M’bemba N’gango. A sala de visitas da Casa dos Frades Menores Capuchinho, onde, actualmente, reside o bispo emérito do Uíge, foi o local escolhido. Abordado pelo Agora, Dom Francisco de Mata Mourisca lembrou a guerra que atrasou o País, tendo provocado órfãos, mortos, desagregação familiar e destruição das infra-estruturas e o que as autoridades deviam fazer para tocar a máquina do desenvolvimento para frente. Eis a conversa:

O país vai assinalar 40 anos de independência, mas o Bispo cá está há 48 anos e é o primeiro do Uíge, o que vos oferece dizer?

O povo do Uíge, em particular, e de Angola, em geral, é muito generoso. Tendo um povo assim, acredito que venha a ser um grande País, bem como uma potência, não só da região, a exemplo de algumas colónias como os Estados Unidos da América, o Brasil e a África do Sul. A independência deve reconhecer o direito ao povo, de ser ele próprio a escolher e a decidir o seu destino, quer seja na política, na educação, quer seja na vida toda.

Considera que o angolano não é dono de si mesmo?

Não é bem assim, pois muita coisa tem sido feita, mas é preciso reconhecer, infelizmente, que ainda há muito por se fazer, sobretudo naquilo que são as questões básicas. Dizer, igualmente, que a guerra pós-independência só retardou os desígnios do País, porque criou órfãos, desamparou famílias e destruiu todo um mosaico de infra-estruturas que já existiam. Por conseguinte, temos de reconhecer também que Angola é um Estado hoje respeitado pela sábia experiência do Presidente da Republica, que primou pela reconciliação e pela inclusão nacional das partes beligerantes, graças ao poder do diálogo.

O que terá faltado aos três partidos, para que tivéssemos uma idependência eficaz? O colonzizador nâo facilitou ou apenas vincou o egoísmo?

Havia, de facto, um projecto da parte do colonizador em dar uma independência sólida e livre, conforme os acordos do Alvor. Por conseguinte, a falta de sentido de Estado entre as partes levou o País a uma guerra desnecessária e que devia ser evitada.

Há questões básicas a que deviam ser dadas prioridades, pode dar exempros?

Falo da água potável, que é um dos elementos vitais para a saúde e o bem-estar das populações, porquanto a ingestão de água imprópria provoca doenças que acarretam custos
elevados para o seu tratamento. A energia eléctrica e a disponibilização de alimentos a preços permitem que a pessoa viva condignamente. Recordo que, quando cá cheguei em 1967, a primeira coisa que fiz foi diagnosticar onde encontrar o líquido precioso. Muitos não sabiam os motivos que levaram a implantação do Paço-Episcopal, naquela zona, junto ao cemitério. Acontece que, por trás, existe uma nascente de água potável que havia mandado examinar em Portugal, por isso defendo que ainda há muito por se fazer.

Como incentivador do Congresso “PRO PACE” e da semana social da Igreja Católica, acha que a vossa mensagem tem surtido efeitos?

Sim, embora seja difícil de mensurar os seus efeitos, podemos assegurar que a sociedade tem mudado de atitudes, que é um dos nossos objectivos. A igreja está e sempre esteve
preocupada com a paz e o bem-estar social das pessoas, senão a nossa missão não teria
sentido. Tenho dito que a igreja é o arquitecto da paz, que tem como ‘bombeiro’ o Presidente da República, que tudo fez e tem feito para assegurar este bem tão precioso.

Há quem diga que a paz pode ser “minada” se o processo de incerçâo dos ex-militares na Caixa-Social continuar a excluir muitos destes que deram de si por este País?

Não podíamos chamar a isso anti-reconciliação. Existe uma estratégia política que zela por este assunto. É preciso não ridicularizar os outros, enquanto partícipes de todo um processo e que devem beneficiar das benesses que venham a ser destinadas aos ex-militares ou nacionalistas, como queiram. O Estado deve ser um agente dinamizador da transformação espiritual, em particular no resgate dos valores, que hoje deram lugar a uma mentalidade imediatista e, acima de tudo, egoísta. Mas, estas mudanças só serão profundas se tiverem como eixo central a família, para que alcancemos o desenvolvimento real.

No vosso entender, é normal que isso aconteça em processos democráticos como o nosso?

Sim. Somos um País novo e com uma democracia em construção, por isso considero normal que existam algumas anomalias em muitos processos, como já fiz referência. Em virtude disso, é preciso ter calma e fazer as coisas como devem ser, até porque a pressa é inimiga da perfeição. Daí que muitos destes processos teriam sido mal concebidos e hoje os resultados não podiam ser outros, que não fossem negativos e que espelham exclusão, devido à sua complexidade. Por conseguinte, a autenticidade de uma democracia assenta na boa convivência e no respeito pela diferença, bem como na distribuição equitativa dos seus rendimentos.

Temos vindo a assistir a algumas manisfestações, sobretudo na capital do País. Qual seri o papel da igreja para amenizar este clima?

Em princípio, cada um deve amar o outro como a si mesmo. É necessário que se respeite a liberdade, quer de opinião, quer de expressão e de reunião dos outros, até mesmo dos partidos, conforme o estatuído. A doutrina da igreja é bastante forte quanto a isso, e este conflito deve ser visto desta maneira para se evitarem descalabros entre irmãos.

Levantam-se vozes segundo as quais deve ser dividido em duas províncias. Acha que traria benefícios?

Um dos benefícios primários seriam as autarquias locais, pois elas geram desenvolvimento, crescimento económico e social local. A desconcentração administrativa tem por objectivo a geração de receitas através das iniciativas locais, porque os gestores a serem eleitos devem ter capacidade de atrair investimentos, por um lado, e, por outro, o Governo Central deve criar políticas de equilíbrio na distribuição de projectos estruturantes, para evitar que algumas províncias conheçam um desenvolvimento maior e melhor que outras. Assim, estaríamos a resolver os problemas das assimetrias, bem como o êxodo rural a que hoje se assiste.

Como se deve combater o fenómeno da feitiçaria ainda em facto no País, em geral, e no Uíge, em particular, que tem dilacerado muitas fámílias?

Isso é um problema de desenvolvimento cultural e escolar. Segundo sabemos, toda uma doença tem uma causa natural, que é o micróbio ou coisa parecida e não o feitiço como se ousa inculcar nas pessoas, incluindo crianças. O feitiço é um dos grandes desafios que temos por superar como igreja e o próprio Estado, primeiro ensinando as pessoas, através da catequese e da escola, os valores que norteiam a vida, como filhos de Deus. Nenhum pai há-de dar uma cobra ao seu filho, mas, por meio de uma instrução, é possível, sim, mudar este quadro.

Qual é a experiência do centro que sempre cuidou de criança acusadas desta prática?

Sei que, neste momento, estão no centro poucas crianças, fruto do seu enquadramento na
sociedade. Recordo que, antigamente, em Portugal, existiam situações idênticas, nas quais as pessoas que padeciam de demência eram consideradas malignas. E só mais tarde se descobriu que se tratava de uma loucura e que podia ser tratada.

No vosso entender, a unificação de seitas tidas como ilegais nâo trará desavenças, sendo instituições com fins e objectivos diferentes?

É bem verdade que isso será possível, porquanto a unificação destas seitas viola o princípio da liberdade religiosa, sendo um País laico. Mas, é importante também sublinhar que muitas destas seitas ou igrejas extravasam os princípios que devem nortear o direito à liberdade religiosa. Em meu entender, a unificação vai ser difícil, porque uma igreja deve ser uma instituição que respeita a lei e o Estado. Pelo não cumprimento destes pressupostos, as seitas devem ser suprimidas. Há muitas destas seitas a trabalharem de forma ilegal, isso é que é mau. O drama das divisões deve ser, por ventura, o maior pecado existente entre os cristãos do mundo inteiro, mais de 1000 igrejas a dividirem escandalosamente os seus membros. Digo maior pecado porque o mesmo não é somente a violação do sagrado testamento de Cristo, por Ele exaltado, mas é também o grande escândalo que dificulta a crença do mundo na pessoa e na missão de Jesus. Ao contrário das divisões, a caridade e a união entre os fiéis facilitam e promovem a referida crença. Reconhecendo os seus efeitos negativos de divisões no mundo, as igrejas evangélicas, vulgarmente chamadas protestantes, fizeram uma tentativa de unidade, criando, em Genebra, o Conselho Mundial das Igrejas. Pela mesma razão, em Angola existem três organismos com o mesmo fito, trata-se do CICA (Conselho das Igrejas Cristãs de Angola), da AEA (Aliança Evangélica de Angola) e do CIRA (Conselho das Igrejas Reformadas de Angola). Porém, até agora tem sido difícil cumprir com o legado de Cristo na sua última noite.

A proliferação do Islamismo não constitui uma ameaça no que diz respeito às guerras religiosas, como temos vindo a assistir noutras paragens , sendo Angola um País de matriz cristã?

O Estado é chamado a tomar uma atitude prudente, porque o Islamismo, segundo sei, colide com as leis angolanas e com toda uma cultura de um povo cristão. A imposição de uma cultura diferente traria algumas convulsões que podem não ser imediatas. É um problema muito delicado, pois o Islão é protagonista da dita ‘Guerra Santa’ no mundo.

A passagem do País ao nível de Rendimento Médio já se reflecte no desenvolmento do cidadão?

Por um lado, não podemos ser muito pessimistas, porque muita coisa, de facto, está a ser feita, mas é preciso colocar bens e serviços em benefício das pessoas, uma vez que o desenvolvimento só é sustentável quando tem como centro a pessoa e não podemos
orgulhar-nos só porque Angola cresce e ascendeu ao nível de Rendimento Médio, visto que
temos pessoas a morrerem de fome. Por outro, Angola é detentora de muitos recursos, mas
que não são explorados, enquanto nos fechamos apenas no petróleo. Temos terras aráveis e riquíssimas capazes de produzir tudo e mais alguma coisa. Há uma tese de um senhor que viveu cá no Uíge de que o pasto do Norte de Angola é dos melhores do mundo. Num hectare, poder-se-ia criar um boi, aqui podemos ter três, porque o volume de pasto é enorme, mas, infelizmente, tem sido queimado. Olha, muitas destas plantas queimadas são medicinais e outras deviam ser transformadas em carvão, uma das maiores fontes de energia mundial.

O arcebispo falou das florestas. Em que medidas estas devem ser valorizadas?

O Governo deve criar políticas ecológicas, capazes de defender e desenvolver o sector florestal e agrícola, para que as populações respeitem as densas savanas e matas, sobretudo do Norte do País. Ainda persistem as guerras de terras entre povos, incluindo famílias que, em certos casos, terminam em mortes.

Como disciplinar a exploração das terras e das florestas?

Em princípio, o Estado é responsável pela terra, de acordo com a lei, mas deve haver normas ou regulamentos que definam a utilização desta para se evitarem os conflitos que hoje se registam.

Sabemos que é autor de mais de três dezens de livros, tem algum trabalho na forja?

Risos. Felizmente, acabei de lançar a minha mais recente obra, como sempre, de matriz religiosa e com o mesmo pendor de doutrina social. O livro intitula-se ‘Um Retrato de Jesus’, foi editado pelas Irmãs Paulinas e possui 216 páginas. É feito para todas as etapas da vida – crianças, jovens, senhores – e realça a postura que podemos ter perante a riqueza e a pobreza, incluindo como podemos tratar a mulher, visto que Jesus sempre teve uma consideração por ela, apesar de não ter sido casado.

Nas outras exortações e outros escritos, sempre se referiu à passagem “Dar César o que é de C’esar e a Deus o que é de Deus”. Qual deve ser a postura de um crente perante a política?

É eloquente a lição de Jesus sobre o tributo devido a César. Os Fariseus, querendo surpreendê-lo numa rasteira, enviaram-lhe os seus discípulos, com esta pergunta: “Mestre,
é lícito ou não pagar imposto a César”? Ele não disse sim, nem não, para evitar descontentamentos que talvez culminariam no seu descrédito. Contudo, com os olhos postos na moeda, perguntou-lhes: “De quem é está imagem e inscrição”? Eles responderam de César, então retorquiu dizendo “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”. O que, por conseguinte, diria que deixai os políticos tratarem da política e os cristãos de Deus.
Muita tinta tem corrido para comentar a referida resposta de Jesus sobre o poder temporal e o poder espiritual. De facto, estamos de acordo que César é o poder temporal ou, se quisermos, a política, e o de Deus o quê? Será apenas o poder espiritual? A razão e a fé obrigam-me a responder que de Deus é tudo, incluindo o próprio César.

A igreja recuperou as instalações do antigo Colégio João de Deus. O que, realmente, vai surgir no local?

Existe a pretensão de se transformarem as instalações num pólo da Universidade Católica de Angola (UCAN), só não sei em que pé está o projecto, mas já tinham sido dados passos muito importantes. Esperamos que tudo corra bem para o bem do povo.

Passado 45 anos desde que cá chegou, o que gostaria de ver modificado com urgência?

O único aspecto que não considero correcto e que deve ser corrigido de imediato tem a ver com o plano de construção, que, a meu ver, é muito expansionista, quando, na verdade, se houvesse um plano director de urbanização, podia optar-se por uma construção vertical, construindo edifícios de até três ou quatro andares que não necessitam de elevadores e que pouparíamos muito espaço, bem como o desperdiço de equipamentos e materiais, para levar os serviços a estes sítios. Quando fico à janela da Igreja de Fátima, fico bastante constrangido com o crescimento demográfico da cidade. Isso tem a ver com o êxodo rural que continua a flagelar as famílias. A outra questão está relacionada com a água. As populações já não devem consumir água imprópria, para se evitarem inúmeras doenças que provêm da mesma.

Os jovens continuam a responder ao chamamento da vocação?

Sim. Neste momento, temos mais de 30 jovens no seminário, por isso garanto não haver crise vocacional no Uíge. É preciso compreender que a vocação é um chamamento e que não depende das famílias; é preciso que a pessoa seja tocada, até porque não admitimos pessoas que tenham vindo por força de alguém. Agora é bem verdade que nem todos que entram no seminário chegam a padre, como diz Cristo: “Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos”.

Na nossa sociedade, faltam cada vêz mais as boas práticas. Quer comentar?

O meu apelo vai no sentido de as pessoas evitarem cada vez mais o mal e imitarem o bem.
Devemos, também, criar um bom clima de fraternidade entre nós. Angola é um dos raros
países onde não impera o divisionismo e tribalismo, porquanto um homem do Sul pode casar-se com uma mulher do Norte e vice-versa. Por isso, tem sido uma referência a nível internacional, e peço que esta fraternidade continue para melhorar as nossas vidas e as dos nossos irmãos.

Será desta que lhe tem servido a gestão das questões dos grandes lagos?

Sim. Angola não tem e nunca teve problemas tribais que culminassem em guerras entre si, como acontece noutros países da região. Recordo que, após a assinatura do memorando de entendimento do Luena, os generais Apolo e Marques Banza vieram ter comigo, garantindo que a guerra tinha chegado ao fim. Esse foi o dia da minha maior alegria na vida, porque, quando recordo a miséria a que o povo estava votado, me envolvo em lágrimas. Tinha de receber três aviões de comida por dia, para distribuir a esta população que acorria ao paço. Tanto é que naquela altura era o presidente das Caritas. Na verdade, nada é melhor do que viver em paz e hoje já é possível percorrer por 300 quilómetros em três horas, quando antes só se podia fazer em mais de 24 horas.

Tem na memória, algo que lhe tenha marcado durante o conflito?

Recordo o caso de uma das madres, que devia ser morta por um dos militares na região do Bungo, e que, meses depois, o mesmo solda do é atingido e transferido ao hospital onde ela se encontrava. Ela, antes de a tratar, perguntou ao soldado se a conhecia e, ele disse que sim, ao mesmo tempo que respondeu dizendo que apenas cumpria ordens. E que não era sua vontade fazer o que havia feito, implorando que a madre não o amputasse e assim aconteceu, enfim, são coisas caricatas.

O Pérfil

Nasceu Moreira dos Santos, a 12 de Outubro de 1928, na então Freguesia de Mata Mourisca (donde lhe vem o nome), na Diocese de Coimbra, em Portugal. Ordenado sacerdote no Porto, a 30 de Janeiro de 1952, formou-se em Teologia, na Universidade de Salamanca, Espanha, em 1957, vindo a exercer vários cargos, dentre eles, o de ministro provincial. Foi, igualmente, ordenado bispo no Porto, a 30 de Abril de 1967, e primeiro bispo da província do Uíge, então Carmona e São Salvador, onde entrou a 30 de Julho do mesmo ano, tendo sido reformado a 3 de Fevereiro de 2008. É membro da Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST), donde foi secretário-geral e presidente do movimento ‘PRO PACE’. Actualmente, é presidente da Comissão Episcopal para o Ecumenismo e o Diálogo inter-religioso. É autor de mais de três dezenas de publicações com realces para ‘O Por amor de Angola e África Renascida’.

Via Jornal Agora

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